A quimera do sono: o seu filho não dorme?

bebé chorar

Clementina Almeida é Psicóloga Clínica e investigadora na área do desenvolvimento cerebral dos bebés. Foi depois de perceber que a maioria dos pais que procurava a sua ajuda na clínica ForBabies tinha como principal problema o sono dos filhos que lhe surgiu a ideia para este livro. “Olívia, a ovelha que não queria dormir” conta-nos a história de uma simpática ovelhinha que, apesar de estar muito cansada, não quer ceder ao sono. Combinando na sua história subtis técnicas de integração sensorial e relaxamento muscular progressivo, com a narração que inclui instruções de leitura para os pais e dicas de como tornar o ambiente mais propício ao descanso, este livro destaca-se ainda pelas páginas perfumadas pelo aroma a lavanda, um indutor natural do sono. Ao longo de uma conversa informal, Clementina Almeida explicou-nos por que razão alguns bebés não dormem a noite toda (e outros sim), e o que deve e não deve fazer para ajudar o seu filho a dormir melhor.

Porquê Olívia, a ovelha que não queria dormir?

Este é um livro dois em um: é para a criança, mas também para os pais. Comecei por reunir as dicas para os pais, e só depois se criou a história da Olívia. Acho que escolhi “Olívia” por ser um nome redondinho, fofinho. Ao ler livros, encarnando um pouco as personagens, fazendo diferentes vozes e sons, estamos a estimular o desenvolvimento da criança. Quando ela nos pede para ler a mesma história vezes e vezes sem conta, estimulamos tudo aquilo que tem a ver com o raciocínio lógico, com a previsibilidade dos acontecimentos, para que mais tarde consigam fazer raciocínios lógicos elaborados. Por si só, a leitura já estimula o desenvolvimento cerebral, e quanto mais novinhos forem, melhor, já que o número de palavras que ouvem no primeiro ano de vida está muito relacionado com o desenvolvimento da linguagem e com o sucesso escolar até aos 10 anos de idade. No primeiro ano de vida recebemos 700 mil sinapses por segundo, e nunca mais ao longo da vida beneficiamos desse crescimento, desse “fogo de artifício”. Há que tirar partido de todo o potencial desta fase.

Para que idades recomenda o livro?

Já fiz várias experiências com bebés em berçários, outras com meninos mais velhos, e neste momento creio que qualquer bebé pode usufruir dele, nem que seja de apenas duas páginas. A partir dos 2 anos já conseguem perceber muito bem a história e identificar os personagens. Depende muito, mas o feedback que tenho tido diz que até os pais adormecem, por isso acredito que seja recomendado até aos 90! [risos]

A Clementina considera que muitas das supostas dificuldades relacionadas com a hora de dormir que trazem os pais à sua clínica não são dificuldades, mas sim fases de desenvolvimento que integram o crescimento natural do organismo do bebé. Quer explicar melhor?

Exatamente. O que acontece é que, ao contrário de outras áreas do desenvolvimento do bebé, o sono é uma em que os pais sentem imensa pressão desde logo. Por exemplo, aos seis meses do bebé a mãe já tem de regressar ao trabalho, e para isso precisa de dormir. Então há uma pressão enorme para que os bebés correspondam às expetativas da nossa sociedade, que nada tem a ver com a programação milenar com que eles vêm em termos de evolução de espécie. Não é normal um bebé dormir a noite toda no primeiro ano de vida; pode acontecer, mas sabemos que 70 por cento não o faz. E não é sequer recomendável que os bebés não acordem, porque o acordar faz parte do seu instinto de sobrevivência; eles são pequeninos e precisam de ser alimentados várias vezes, precisam de segurança. Se reparar, não existe este tipo de pressão em relação ao andar e a outras competências. Os múltiplos despertares podem muitas vezes ser explicados pela fase de desenvolvimento em que o bebé se encontra. Aos 8-9 meses, por exemplo, passam por uma fase em que se apercebem de que eles e os pais não estão ligados, o que faz com que acordem com pesadelos e angústias, o que para nós pode ser um perfeito disparate, mas para eles faz todo o sentido. Também há bebés que de facto têm perturbação do sono, e aí temos de criar medidas para que se resolva o problema, e é aí que eu entro. O trabalho que faço na clínica é muito de tradutora de bebés – eu traduzo o que os bebés querem transmitir e que os pais não conseguem perceber. Depois de se compreender, é muito fácil ajustar medidas. Esta avaliação é feita através de uma recolha do histórico do bebé, desde o momento anterior aquele em que a mamã engravidou, para perceber toda a evolução do bebé dentro da barriga, e vou recolhendo informação com os pais e observando a forma como o bebé reage ao que vou dizendo. Os bebés, mesmo não respondendo, percebem quando estão a ser entendidos e muitas vezes consigo ver alterações logo após a primeira consulta. Securizando os pais, o stress diminui imenso e ajuda logo a melhorar o final do dia.

Mas há bebés que dormem a noite toda. O que têm de diferente dos outros?

Muitas vezes é a carga genética: os pais dormem bem? Dormiram bem quando crianças, dormem bem agora que são adultos? Sabemos que 50% dos bebés dormem e outros 50% não dormem, e ninguém percebeu ainda muito bem porquê. Essencialmente, aponta-se para a parte hereditária, depois para os hábitos culturais, mas não se conseguiu descobrir ainda a explicação concreta. O certo é que quando conseguimos ajudar o bebé a ajustar o ritmo e a dormir a noite toda, isso ficará para toda a vida. Aqueles métodos de treino de sono, totalmente contraindicados, fazem com que haja depois repercussões mais tarde, quer nos padrões de sono, quer em termos de vinculação de personalidade. Tudo o que se fizer nos primeiros anos de vida ficará para sempre, nomeadamente as rotinas. O que acontece às vezes com os pais é que hoje experimentam uma coisa e não deu resultado; amanhã experimentam outra e se acontecer o mesmo, passam à frente e experimentam outra… E a verdade é que não importa o tipo de rotina, importa sim que seja consistente, para criar segurança e tranquilidade.

Além das dicas do livro, o que mais recomenda aos pais que possa facilitar a hora de dormir?

Há algo que interfere muito com o sono, e que os pais não parecem ter em atenção: o pouco tempo que passam com os filhos. Eles precisam muito da mãe e do pai, porque é através deles que conhecem o mundo. Esta necessidade de sobrevivência em termos psíquicos que os bebés têm de tempo com a mãe e com o pai não é claramente satisfeita, a sociedade não é amiga dos bebés. O que acontece é que de noite eles acordam porque querem certificar-se que a mãe e o pai não vão a lado nenhum, e entretanto querem aproveitar para brincar. Falando de crianças mais velhas, é ridículo a quantidade de trabalhos de casa que trazem. Estamos a falar de um tempinho tão pequenino e tão precioso que têm para estar com os pais, que se vamos prescindir dele, é bom que seja por algo que esteja provado trazer grande proveito. Na verdade, todos os estudos que existem sobre os trabalhos de casa apontam para a nulidade dos benefícios. Não é de espantar que, sendo privados deste tempo de qualidade com os pais durante o dia, tão fundamental para o seu desenvolvimento, depois tenham tanta “sede” de convívio durante a noite: e “mais uma história”, e “tenho fome”, e “tenho sede”, e “quero chichi”… Eles só estão a pedir contacto com os pais, mais nada, fazem-no da melhor forma que sabem, e por vezes os pais ainda ralham…

Co-sleeping, sim ou não?

Tudo a favor, com algumas condicionantes. A Sociedade Americana de Pediatria lançou novos guidelines que já afirmam que é recomendável que a criança durma até um ano de idade no quarto dos pais. Mas a verdade é que temos de ter em atenção alguns cuidados: avaliar se os pais são fumadores, se o local escolhido tem condições, se o bebé não corre o risco de sobreaquecimento, etc., mas a minha postura é muito diferente da que tem a maior parte dos pediatras, que geralmente desaconselham o co-sleeping à partida. Os estudos demonstram que os bebés que dormem na cama dos pais crescem em média 43% mais diariamente do que outros que dormem no berço. Isto acontece porque os bebés se sentem bem, alinham o registo cardíaco e pulmonar com o dos pais, e o cérebro emite algumas substâncias de prazer que fazem com que o intestino expanda e haja assim maior área de absorção de nutrientes. Mais: retirar a criança do quarto dos pais muito precocemente (i.e., antes do ano de idade) não é favorável, a não ser que o bebé durma a noite toda. Se não for o caso, isso vai gerar angústia no bebé, o que gera stress e eleva os níveis de cortisol, que por sua vez queima neurónios. A sociedade japonesa, por exemplo, faz co-sleeping desde sempre e têm o índice mais baixo de Síndrome de Morte Súbita no mundo inteiro. Quase todas as famílias fazem co-sleeping em algum momento. Não vale a pena dizer aos pais que não podem ou não devem colocar o bebé na cama, porque irão eventualmente fazê-lo se assim o desejarem. Devemos sim explicar os cuidados a ter.

Qual é a sua opinião sobre os suplementos de melatonina?

São muito maus. Nem sequer existem estudos que nos digam os efeitos que têm a longo prazo. A verdade é que muitos pediatras os prescrevem, mas são extremamente prejudiciais para as crianças. Quando o bebé nasce ainda não distingue o dia da noite, isso terá de ser adquirido. Com a exposição à luz do sol produzimos cortisol, que nos dá atividade, e ao fim da tarde, com o anoitecer, produzimos a tal melatonina. Se injetarmos no organismo níveis elevados de melatonina, o cérebro reconhece que a substância já existe, e não a vai produzir. Ou seja, precisamente no momento em que estamos a tentar ensinar ao cérebro que necessita de produzir aquela substância naquelas quantidades todos os dias, ao mesmo tempo estamos a dizer que não é preciso, ou seja, essa capacidade não vai ser desenvolvida nem aí, nem mais tarde. Conheço alguns casos de meninos que tomaram esse tipo de suplementação e em alguns casos funciona, noutros excita-os ainda mais, mas na maioria o que acontece é que apenas os ajuda a adormecer, mas não os mantém a dormir a noite toda.

Sesta até que idade?

Até aos 10 anos, mas a verdade é que por cá não usamos isso. Sabe-se que durante a sesta estimulamos áreas cerebrais, em termos de memória, que não são estimuladas durante o sono da noite, e por isso os nossos “vizinhos” estabeleceram o hábito da siesta na sua cultura. Para crianças até aos 4 anos a sesta deveria ser “obrigatória” e, infelizmente, em alguns infantários públicos, a partir dos 3 anos já não está instituída, o que é contranatura. Os mais velhos também beneficiariam da sesta, mas preferimos pô-los no inglês e na informática, e sobrecarregar o cérebro sem lhes dar tempo para recuperar.

E os pais que impedem a sesta para tentar que as crianças durmam melhor à noite?

Não o devem fazer. Ao longo do dia vamos produzindo cortisol, e ao fim da tarde muitas crianças acusam o efeito cumulativo do mesmo, ou seja, só fazem “asneiras”, ficam elétricas, etc. A sesta tem a capacidade de libertar essa pressão, e se esta não for libertada, o sono da noite será muito pior. É como quando andamos muito cansados e queremos dormir, mas parece que o cérebro está sempre em alerta a disparar ideias e não desliga: é exatamente como eles ficam. A velha máxima “quanto mais se dorme, mais se quer dormir”, é mesmo verdade.

Há algum esquema de cores recomendado para o quarto?

Tudo o que seja alaranjado, ou seja, que simule o entardecer, é mais agradável. O ideal são cores suaves, que ajudam sempre a produção de melatonina. Mas isso não funciona por si, ou seja, é importante que a criança seja exposta à luz solar, para que haja diferenciação dia/noite. Estar todo o dia dentro de casa exposta a luz artificial não ajuda em nada, pelo contrário.

Além da alfazema, que perfuma o livro, há outros aromas indutores do sono?

A camomila também é, mas a alfazema é sem dúvida a que nos dá maior tranquilidade. Se os pais colocarem um pouco de alfazema num difusor 10 minutos antes da criança ir para o quarto, cria-se uma atmosfera muito calmante que ajuda a relaxar. Ou podem também colocar uma gotinha no boneco de dormir, para prolongar o efeito.

Ficha técnica do livro:

olívia, a ovelha que não queria dormir

Olívia, a ovelha que não queria dormir, de Clementina Almeida. Porto Editora, 10,90 euros