Ana Kotowicz: “Não fazia sentido na minha cabeça ter um filho feito em laboratório”

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Lisboa, 26/05/2016 - Decorreu esta tarde no jardim em Campo de Ourique a Entrevista á Jornalista Ana Kotowikz que lançou o livro infantil. ( Nuno Pinto Fernandes/ Global Imagens )

Aos 41 anos é jornalista e acaba de lançar a sua “primeira aventura na escrita”. Na verdade Ana Kotowicz passa os dias a escrever no jornal de economia Dinheiro Vivo, mas esta é a primeira vez que publica um livro. ‘Reis procuram príncipes’ tem como subtítulo ‘uma história de adoção’ e, ao mesmo tempo que se liga às fases dos processos reais de adoção e tem todos os ingredientes que os contos de encantar têm: reis e rainhas, fadas madrinhas, príncipes e gavetas que crescem… A história começa com um casal de reis muito feliz em que a rainha, apesar de querer, “nunca mais ficava grávida”.

‘Reis procuram príncipes’ é um livro só para crianças?

É um livro para crianças e para pais.

Há um paralelismo evidente com a realidade dos processos de adoção.

Sim, isto é uma história praticamente autobiográfica, pelo menos até à parte de chegarem as crianças. Essa é a parte que ainda não aconteceu… Eu baseei-me no que nos foi acontecendo, a mim e ao meu marido, e depois tentei transformar essa história numa linguagem infantil, porque ao longo do nosso processo de avaliação, uma das coisas que fui aprendendo e percebendo, uma vez que as assistentes sociais e as psicólogas insistem muito nisto é que é muito importante que a criança saiba desde sempre que foi adotada, que não haja esse segredo, que não haja um momento em que se senta toda a família à mesa para dizer “tu foste adotado”. O ideal é que isso vá acontecendo de uma forma natural.

Esta história é uma história para os teus filhos que hão de vir?

Esta história foi escrita mesmo para os meus filhos, antes ainda pensar que o livro ia ser editado. Não é exatamente a história que eu escrevi. O que aconteceu foi que senti necessidade de começar a criar, ainda antes deles chegarem, maneiras de introduzir a história da adoção, o que é a adoção, até porque não encontrei no mercado muita coisa de que gostasse. Há manuais de adoção, histórias infantis sobre adoção, há algumas coisas e do que eu fui vendo nada me satisfazia. Então comecei a escrever uma história, que ficou muito maior do que a que depois dá origem ao livro. Era uma história para ler aos meus filhos. Numa conversa com a [jornalista e escritora] Isabel Stilwell, completamente por acaso, estava a contar-lhe o que estava a fazer e ela achou que podia dar um livro infantil. Depois de fazer uma série de alterações – é diferente escrever uma coisa que é para ler aos filhos e outra que é para ser publicada – nasceu este livro.

Neste livro, é referido que os meninos vivem na Montanha das Crianças Sós, mas já tiveram uma família anterior. É importante falar das famílias biológicas com as crianças adotadas?

Sim. Esta é outra coisa que eu fui aprendendo com base na formação. Dizem-nos muitas vezes que é importante não diabolizarmos os pais biológicos, que não se ganha nada com isso. Dizer que os pais eram maus ou que cometeram erros não é bom nem para as crianças nem para quem adota e que é bom dizer que existiu uma família antes e que por algum motivo não pode cuidar deles.

No livro falas do espaço que as crianças ocupam no coração das famílias de origem. É importante mostrar às crianças adotadas que provavelmente elas eram amadas pelas famílias em que foram geradas?

Eu acho que sim, acho que é muito importante. Acho que é muito importante saber-se qual é a nossa origem e saber que não fomos abandonados. Saber que não foi por falta de amor. Daí a ideia, que está o livro, de que há pais que tiveram doenças e não puderam tratar dos filhos – a toxicodependência é uma doença, o alcoolismo, a esquizofrenia, são coisas que não se conseguem controlar e é por isso que os filhos acabam que ter de ir para um sítio melhor. Mas acho que é importante eles terem sempre a ideia que não nasceram do nada.

O Zézé, o primeiro príncipe a chegar, é da cor do chocolate. Presumes que os teus filhos venham a ser dessa cor também?

Presumo que sim. Durante o processo de adoção definimos uma série de parâmetros, desde idades, sexo, doenças, raça, uma série de coisas. E nós na questão da raça e da etnia não pusemos qualquer tipo de entraves. Não sei porquê, imagino que seja assim. Não quer dizer que se venha a concretizar.

Como é que decides tornares-te numa mãe adotiva?

Tem tudo a ver com uma história de infertilidade. Tentámos engravidar durante vários anos, nunca aconteceu. Eu sempre fugi um bocado dessa ida ao médico para tentar descobrir porque é que não acontecia essa gravidez.

Porquê?

Por um lado, não fazia muito sentido na minha cabeça ter um filho feito em laboratório. Era como eu via as coisas naquela altura, em que tinha vinte e tal anos ou 30. Essa ideia fazia-me alguma impressão. Não sei explicar porquê mas não era uma coisa que eu quisesse muito.

Por alguma questão religiosa?

Não, nada. O meu marido é do mais ateu que existe. Não era por isso… Durante muito tempo fomos tentando e parando, tentando e parando, porque quando se tenta durante muito tempo e não se engravida começa a haver uma pressão enorme. Há pessoas que estão sempre a perguntar porque é que não engravidas… Depois de bastante tempo a tentar e nunca acontecer houve um dia em que finalmente disse “temos de perceber porque é que isto acontece, porque se calhar temos que dar o passo em frente ou desistir completamente da ideia de ter filhos.” À medida que eu ia envelhecendo, a história do relógio biológico por mais cliché que pareça começa a pesar se a ideia é engravidar. Fomos ao médico e o que nos foi dito é que, tendo em conta que há tantos anos que tentávamos, teríamos um caso de infertilidade grave. Acabámos por fazer uma inseminação artificial, já tinha o tema mais pacífico e naquela altura já fazia parte do processo. Naquele momento senti que tinha que fazer aquela. Fiz só uma e não engravidei.

Só uma inseminação artificial?

Sim. O que o médico nos explicou é que o nosso problema era uma incompatibilidade genética, ou seja, eu não sou infértil e ele não é infértil, mas os espermatozoides dele e os meus óvulos não se reconhecem. É uma coisa um bocado esquisita.

Essa notícia abalou o vosso amor?

Não, quando muito tornou-o mais forte. Mas não deixa de ser estranho pensar “como é que é possível que com a pessoa que eu escolhi para estar comigo, que eu amo tanto, geneticamente não funcione comigo nem eu com ela.” Se soubesse o que sei hoje, é sempre fácil olhar para trás e pensar o que é que se mudava, eu teria feito isto tudo mais cedo. Tinha medo de descobrir de qual é que seria a culpa. Achava que se o problema fosse meu até seria mais tranquilo, achava que se o problema fosse dele ele podia lidar mal com isso, sentir-se culpado e isso trazer problemas para a relação. Quando percebemos que a culpa não é de nenhum dos dois, acaba por ser tranquilizador. Foi o melhor que me podia ter acontecido, perceber que não há nada a fazer, portanto mais vale esquecer e partirmos para outra.

E a decisão de adotar foi automática?

Para mim foi. Três dias depois eu já estava a pensar nisso. Ele não. Fui eu que introduzi o assunto. Desde muito cedo que pensava em adotar, desde adolescente que eu pensava que adotar era uma coisa bonita. Imaginava-me com uma família numerosa, com uns seis filhos ou sete.

Porque vens de uma família grande?

Venho de uma família numerosa, tenho 4 irmãos, do lado da minha mãe tenho sete tias e um tio, sempre me habituei a famílias muito grandes. Claro que na altura não tinha ideia nenhuma dos custos de ter um filho. Na altura até achava que podia ir aos 14, como a minha bisavó.

Como é que introduziste a ideia de adotar?

Falei disso. Introduzi o assunto e durante algum tempo andámos a discutir sobre todas as dúvidas que tínhamos, todos os receios. Discutimos muito sobre que idade é que deveria ter, de que sexo, de que raça. Talvez durante um ano, foi um processo em que andámos a falar os dois um com o outro sobre isso.

E em que é que se tem que pensar, concretamente?

Tens que ter a certeza, tanto quanto possível, que a adoção faz sentido na vida do casal. É muito importante teres a certeza que tanto tu, como o teu marido ou a pessoa que está contigo, ou até no caso se seres solteira, é importante saberes que essa decisão faz sentido. O que acho fundamental é que não podes partir para uma candidatura quando um tem uma certeza absoluta e o outro está vacilante. Até porque durante os seis meses em que se é avaliado, passa-se por um processo bastante intrusivo.

Porque vão a tua casa?

Vão a tua uma vez e até foi bastante mais tranquilo do que aquilo que eu pensava. Tinha a casa impecavelmente arrumada como eu acho que nunca esteve. Eu achava que a assistente social e a psicóloga que nos acompanharam durante a avaliação, as duas amorosas e super queridas, eu achava que iam abrir todas as gavetas, procurar coisas escondidas… e não. Foi uma coisa super tranquila para ver se a casa tinha espaço e condições para receber uma criança. A parte mais intrusiva é a avaliação psicológica, em que tens que falar de ti, da tua história de vida, dos teus traumas, e é sempre a dois. Podes estar a contar coisas de que o teu marido nunca tinha ouvido falar, não era o nosso caso.

Estão juntos há quanto anos?

Desde 2002, portanto há 14.

É um processo em que se pensa muito na própria infância também?

Muito. Acabamos por falar muito dos nossos pais e das coisas que nos marcaram muito na infância. Se tivermos coisas mal resolvidas e se tivermos segredos pode ser complicado. Felizmente não foi o nosso caso.

A avaliação resulta em quê? Dão-te uma nota? Dizem-te que podes ser mãe?

Não dão uma nota. Mas basicamente diz que estamos aptos. No fim da visita em nossa casa dizem-nos se sim ou se não.

No livro ‘Reis procuram príncipes’ é mostrada a espera, o primeiro encontro e a sucessão de encontros. É assim que acontece na vida real?

Sim, é o que acontece. Depois de uma espera que normalmente acaba por se longa, e é importante que se diga que essa espera é longa de acordo com os parâmetros que colocamos, com aquilo que procuramos num filho. Há uma ideia que os processos de adoção são muito longos por causa das burocracias, do nosso lado não são as burocracias. A burocracia está despachada em seis meses. Se quiseres uma criança para cima dos nove anos, se calhar ao fim de três meses ela está contigo, se quiseres adotar uma criança com uma deficiência física ou mental profunda, se calhar ao fim de um mês ela está contigo. Se estiveres disponível para receber quatro irmãos, se calhar na semana a seguir. Se vais pedir uma criança branca até dois anos se calhar vais espera seis ou sete. O tempo de espera tem a ver com isto. Depois desse processo de espera, que normalmente é longo, telefonam-te um dia e dizem que encontraram uma criança que se adapta ao teu perfil. A procura é sempre de pais para aquela criança e não a criança para aqueles pais. Depois há uma sucessão de encontros até as assistentes sociais e as psicólogas decidirem que está na altura de se tornarem uma família.

Quando se espera por um filho que já existe consegue-se não ter expectativas em relação a esse filho?

É difícil não ter mas ao mesmo tempo é difícil ter. Nós pedimos crianças até aos cinco anos. Eu não sei se vem uma criança pequena ou maior, pode vir um rapaz ou pode vir uma rapariga, podem vir dois ao mesmo tempo. Nós candidatámo-nos até dois. É difícil imaginar. Aliás, isso eu também conto no livro: sabes que eles vão chegar mas não sabes como vão ser.

Há já amor, daquele que se diz que existe pela barriga?

Já. Completamente. Essa é a parte mais estranha e mais difícil de explicar às pessoas. Um dia tive de me sentar com o meu marido e explicar-lhe isso, só para ele não pensar que eu estava a ficar louca. Porque aquela coisa de parar nas lojas a ver a roupinha pequenina e a ver os biberões… tudo isso me começou a acontecer também. Essa necessidade muito grande de construir um ninho para os filhos que aí vêm. A grande diferença é que não sei quanto tempo vou estar à espera que eles cheguem e também não sei como é que eles vão ser. Não sei se vou comprar roupa para menina ou para menino, coisas para uma criança quase bebé ou para uma criança de cinco anos. É um bocadinho difícil de gerir.

reis procuram principes

‘Reis procuram príncipes’, Livros Horizonte, 11,90€