Cristèle Alves Meira: de Paris para Trás-os-Montes

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Uma cineasta lusodescendente brilhou este ano em Cannes com uma curta filmada em Trás-os-Montes, ‘Campo de Víboras’. Cristèle Alves Meira quer filmar histórias de emigrantes portugueses. De Paris falou ao Delas e contou o seu próximo projeto, de novo no local onde passa sempre as suas férias, Trás-os-Montes. Fica apresentada uma cineasta que também aposta forte no azeite feito nas terras transmontanas da mãe.

Vem do teatro. Como foi a passagem para o cinema?

O meu primeiro desejo foi ser atriz e até tive formação nesse sentido. E na escola escolhi ser atriz de teatro, embora no terceiro ano começasse a sentir outros desejos. Os desejos de filmar…Queria contar histórias. Ao mesmo tempo que comecei o meu percurso teatral, fui fazendo documentários enquanto realizadora. O primeiro foi em Cabo Verde e o segundo em Angola. Senti que o cinema, com ou sem ficção, era uma maneira de voltar às minhas raízes. Desde 2012 que quis começar mesmo a contar mais histórias, neste caso com as minhas origens e através da ficção. E filmar em Trás-os-Montes foi uma necessidade. Além de ser lá a aldeia da minha mãe, é o local das minhas férias de verão e onde tive uma ligação muito grande com a minha avó.

As duas curtas que fez, ‘Sol Branco’ e ‘Campo de Víboras’, e a longa que agora prepara são filmadas lá. Há mesmo um fascínio.

Um fascínio completo! E passa muito pelas pessoas locais, gente inteira e com uma generosidade tremenda. Por todas as suas cores, são personagens que merecem cinema. Mas também sou muito atraída pela beleza da região. E, depois, há aquela luz. Uma luz extraordinária! Para além de tudo isso, surge a questão das lendas.

Lendas sobrenaturais que ouvia enquanto menina nas férias de verão?

Exatamente… Eram aquelas histórias de aldeia que metiam sempre bruxaria ou crimes passionais. Com o passar do tempo começou a interessar-me todos os casos e histórias de aculturação. Enfim, há um microcosmos muito fechado que me fascina, mesmo que por vezes até me meta algum medo.

Por outro lado, há uma procura pelas personagens femininas. Tem uma maneira muito própria de filmar os corpos das mulheres e das meninas…

Torna-se mais fácil para mim, é uma coisa de intimidade entre mulheres. A sensualidade feminina atrai-me enquanto realizadora e gosto de trabalhar com não-atrizes, embora a Ana Padrão ter sido a minha escolha para a protagonista de ‘Campo de Víboras. Seja como for, ela é originária de Santulhão, aldeia perto de Junqueira, a minha, ou seja, não só uma atriz que ali estava. Ela conhece bem tudo aquilo.

Sente que filmar os emigrantes que vêm de França é como que um filão inesgotável? Será o seu tema como cineasta?

Interessa-me muito filmar essa dualidade de pessoas que quase têm duas vidas. Tanto podem ser franceses como portugueses. É um tema muito vasto, uma cebola muito grande com muita casca para descascar. Toda essa complexidade identitária e cultural é muito interessante, sobretudo quando se confrontam as gerações. Entre a minha geração, a da minha mãe e a da minha avó, surge uma palete de uma família. Esse será o tema da longa Alma Viva, neste momento em preparação e que deverá ser rodada em 2017. Um tema que passa pela maneira como as crenças mais antigas e arcaicas são transmitidas nos dias de hoje.

O filme está agora em fase de casting

Sim. Será a história iniciática de Salomé, uma menina de quinze anos que vai passar férias à aldeia dos seus pais em Trás-os-Montes. Umas férias em que se diverte com os jovens da sua idade mas ao mesmo tempo cuida da sua avó doente, que entretanto morre. Será então confrontada pela primeira vez com a morte e o luto, ao mesmo tempo que também é confrontada pela brutalidade do mundo dos adultos materialistas, que chegam de urgência para o enterro e que não querem pagar a sepultura. Mas Salomé, tal como a tragédia de Antígona, acredita que a morte é sagrada e que os mortos não podem descansar em paz se não tiverem uma sepultura digna e, a dada altura, entra em comunicação com a alma viva da avó. Será um filme para questionar a nossa relação com os mortos.

Já agora, como foi a sensação de estar em Cannes a mostrar Campo de Víboras?

Para mim, que estou a começar, a chegada a Cannes deu-me muita força. Senti-me muito orgulhosa, foi muito forte. Deu-me uma certa legitimidade para continuar a contar nas minhas histórias. Foi o concretizar de um sonho.

E em Vimioso, este verão, mostrou a curta à população local.

E aí tive muito stress! Estavam ali as pessoas que eu tinha filmado e aquelas eram as suas histórias! Nesse sentido, era importante para mim receber o aval deles. Trava-se de um tema difícil do ponto de vista social…Quis perceber se estava com o meu ponto de vista justo perante aquelas pessoas da região. Era muito importante…