Desespero por uma barriga de aluguer, pelo filho que a lei não deixa

Desespero por uma barriga de aluguer
Desespero por uma barriga de aluguer

Ana nasceu sem útero; Maria Fernandes perdeu-o para o cancro; e Filipa Costa para o que diz ter sido uma negligência médica. Em comum têm um desejo, tornado sonho: ser mães. Mas as alternativas para o concretizar parecem distantes. O transplante de útero, realizado com sucesso na Suécia e tentado também nos Estados Unidos, não se faz por cá; a gestação de substituição, conhecida como barrigas de aluguer, é ilegal no nosso país. E nem a discussão mais recente o tornou uma possibilidade.

O tema tem sido alvo de debate no Parlamento. Falou-se sobre o assunto, mas o projeto-lei do Bloco de Esquerda (BE), que propõe a sua legalização e que foi votado pelo Grupo de Trabalho da Procriação Medicamente Assistida, mereceu os votos contra do PSD, CDS-PP e do PCP, o que, a manter-se até ao plenário, inviabilizará esta possibilidade. Ainda nada está decidido e quem vê nesta a única solução para ter um filho espera. E desespera.

Um desejo impossível
Maria Fernandes não esconde o desalento. A chegada dos 42 anos não fez diminuir o desejo de maternidade, mas a esperança de vir a ter um filho, essa começa a desaparecer. Depois de várias gestações sem sucesso, há oito anos uma gravidez ectópica levou-lhe a trompa direita e colocou-a no caminho das técnicas de procriação medicamente assistidas.

“Fiz dois tratamentos de fertilização in vitro e penso que o tratamento hormonal a que fui submetida ajudou ao desenvolvimento de um cancro”, conta Maria Fernandes ao Delas.pt.

Há dois anos foi-lhe diagnosticado um tumor maligno no endométrio, que obrigou a que lhe tivesse sido retirado o útero. “Fiz radio e quimioterapia e é-me impossível gerar um filho.”

A única alternativa para o conseguir é, reforça, a gestação de substituição. “Infelizmente não tenho possibilidades financeiras para ir ao estrangeiro. Se tivesse, não hesitava”, refere. Sabe que são muitas as vozes que se levantam contra as chamadas barrigas de aluguer, com argumentos que não entende. E não aceita. “Dizem que o bebé não é, geneticamente, da barriga que o carrega. Mas quando estive a fazer tratamentos de infertilidade, uma das alternativas que me foi colocada foi receber óvulos de uma dadora. Não ia então gerar um filho que não é meu? Não é isto a mesma coisa?” Fica a questão. E o desespero.

“O nosso colo, os nossos braços, o nosso amor são iguais aos das outras mulheres. Só o nosso corpo é que não funciona a 100%”, lamenta Maria Fernandes.

Questionada sobre a possibilidade de adotar uma criança, responde com os tempos de espera e com a burocracia. “Já falámos, eu e o meu companheiro, sobre essa possibilidade, mas quando é que me vão entregar uma criança? Daqui a sete anos? E isto se o chegarem a fazer.”

Acusa os decisores de falta de sensibilidade, de ignorarem “a dor e o sofrimento” que é presença constante na sua vida. E pede pelo menos algum apoio. “Se esta não é uma possibilidade por cá, ajudem-me a poder ir ao estrangeiro. Assim estamos de pés e mãos atados. Quem tem dinheiro, tem tudo. Quem não tem…”

Da Ucrânia veio a solução
Filipa Costa (nome fictício) sabe o que é ter um bebé na barriga. A pouco mais de uma semana do fim da gestação, um problema de saúde ditou que perdesse a filha que se preparava para receber nos braços. E a possibilidade de voltar a engravidar.

“Retiraram-me o útero, um caso que de negligência médica que há três anos está à espera de resolução”, conta Filipa Costa ao Delas.pt.

Para ser mãe, tinha dois caminhos: a adoção ou a gestação de substituição. “Tentei os dois. No caso da adoção, passamos pelo processo: entrevista, avaliação psicológica, sessões de esclarecimento. Já lá vão quatro anos…”

Foi a morosidade de um processo que, refere, não lhe dava quaisquer garantias que a fez pensar na gestação de substituição. E a fez optar por esta alternativa. Durante meio ano, pesquisou. Procurou informação e dados sobre o tema, contactou agências e acabou por optar pela Ucrânia, país onde é legal recorrer a uma barriga de aluguer.

Há três anos deu início ao processo que, confirma, “não foi nada fácil”. Não só foram dos primeiros portugueses a recorrer ao serviço naquele país, como foi preciso ultrapassar barreiras óbvias, como a língua ou uma cultura que é muito diferente da nossa. “Contactámos uma agência, que funciona desde 2003, e foi através deles que tudo foi organizado”, recorda. “Mas fomos completamente às escuras.”

Os tratamentos para a recolha do material genético foram feitos em Portugal, aos quais se sucedeu uma tentativa, a primeira, sem sucesso. O mesmo aconteceu com a segunda. À terceira foi de vez e, em dezembro passado, Filipa Costa e o marido deram as boas vindas aos gémeos, um menino e uma menina. Seguiu-se um processo burocrático, que ainda não terminou. É que, se foi fácil registar as crianças como filhas do marido, já Filipa Costa não é considerada mãe. Por isso, uma vez em Portugal, o casal teve que dar início a um processo de adoção. E porque não é vista como mãe dos gémeos, também não teve direito a qualquer licença de maternidade.

Contas feitas, foram necessários qualquer coisa como 60 mil euros para concretizar o sonho de serem pais. E muito trabalho e emprenho.

“Trabalhei dia e noite, sábados e domingos e mesmo assim tivemos que recorrer a um empréstimo bancário. Não é justo que tenhamos que suportar tudo… mas valeu a pena. É uma felicidade enorme”, diz Filipa.

Nascer sem útero
Felicidade que Ana, 38 anos, gostava de também poder sentir. Considera que a gestação de substituição é, por cá, ainda um tema “tabu”, não só para a sociedade, mas também para os políticos. “Sinto que ainda associam a prática a um contrato monetário, como assistimos em filmes e novelas diariamente, e também a uma hipótese para os casais homossexuais, o que se faz noutros países.”

Confessa que lhe custa, sobretudo porque acredita que não se têm ponderado todas as razões “que pesam para a aprovação desta lei, que pode ajudar muitas mulheres e casais que se sentem incompletos por não conseguirem gerar um filho da forma natural, seja por ausência de útero, infertilidade ou negligência médica”.

A gestação de substituição é, para Ana, uma hipótese em aberto, já que não pode ser mãe de outra forma. “Nasci sem útero”, conta, um diagnóstico feito depois de um longo percurso de exames médicos e consultas. A culpa é da síndrome de Mayer Rokitansky Kuster Hauser, um problema que, ao contrário do que pensou durante anos, afeta muitas mulheres. Através das redes sociais encontrou outras como ela e, juntas, criaram um grupo em Portugal que visa ajudar quem mais precisa. E embora não se sinta discriminada, considera que faz parte de “uma minoria esquecida e posta de parte”. É por isso que pede para ser ouvida, para que sociedade e decisores percebam que estas mulheres têm, como qualquer outra, o desejo de ser mães.

“Por várias vezes pensei na adoção, mas o meu marido recusa essa opção. Diz que se recusa a ser avaliado e ter a vida escrutinada, para dizerem se irá ser bom ou mau pai. Poderá parecer um ato egoísta da parte dele, mas… em parte compreendo-o, sendo infelizmente a adoção no nosso país um processo cada vez mais burocrático, uma desilusão e desespero para os casais”, conta Ana.

Resta-lhe a gestação de substituição, aquela que, por cá, a lei não permite.

“Um gesto de amor e solidariedade”
A proposta apresentada pelo BE quer legalizar a gestação de substituição mas apenas nas situações em que não existe, para a mulher, outra possibilidade de ser mãe biológica. E isto de forma altruísta, sem recurso a qualquer troca de dinheiro. “Será, unicamente, um gesto de amor e solidariedade. Não percebemos o porquê de os deputados negarem a mulheres que precisam de recorrer à gestação de substituição por uma questão médica a possibilidade de serem mães”, questiona Cláudia Vieira, presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade (APF). “Não é por capricho nem por não quererem interromper a vida profissional; é, pura e simplesmente, por terem nascido sem útero ou por o terem perdido. É justo impedir estas mulheres de concretizarem o seu projeto de maternidade?”.

A APF considera que não. E acredita que se a lei não for mudada isso não vai impedir algumas mulheres de recorrerem à gestação de substituição, deixando-as “completamente desprotegidas a nível legal. E isso não é aceitável em pleno século XXI. Sobretudo, não é justo que continuem a alimentar o sonho destas mulheres e que lhes estejam sistematicamente a retirar o direito de serem mães. Por favor, não matem o sonho de quem não escolheu não ter útero. Permitam que as mulheres que não escolheram não ter útero tenham a oportunidade de serem mães”.

Onde se faz
Dinamarca, Grécia, Reino Unido e Ucrânia são países que contemplam a possibilidade de gestação de substituição, por motivos altruístas. A Bélgica apresenta um vazio jurídico nesta matéria, o que tem permitido que, também por lá, sejam conhecidos casos. E é também possível recorrer em Israel, Rússia, Índia, Brasil, EUA e Canadá.

Por cá, a lei 32/2006, de 26 de julho, proíbe-o, confirmando serem “nulos os negócios jurídicos, gratuitos ou onerosos, de maternidade de substituição”. Mais, quem o pratique, ou leve outros a fazê-lo, arrisca-se a uma “pena de prisão até dois anos ou pena de multa até 240 idas”.