Diário de uma voluntária, cap. VI, o artista e a mulher grávida

Chinese artist Ai Weiwei helps an Afghan migrant as he arrives with other refugees and migrants on a raft on the Greek island of Lesbos, file
Artista chinês Ai Weiwei ajuda um migrante na chegada a Lesbos, a 25 de janeiro. REUTERS/Giorgos Moutafis

Há dias felizes. E este foi um deles. Tinha terminado mais um turno, das 01:30 às 9:30, e este tinha sido especialmente duro, em todos sentidos. Normalmente a equipa reúne-se num café, por coincidência, sírio adotado pelos voluntários e jornalistas como o ponto de encontro, para tomar o pequeno-almoço e aliviar as emoções da noite. Falamos de tudo e de nada, rimos para não chorar.

Eu já sabia que o artista plástico Ai Weiwei estava em Lesbos, mas não esperava encontrá-lo e, muito menos, tirar uma fotografia com ele. Quando o vi sentado numa mesa ao lado da nossa não hesitei e fui ao seu encontro, pronta para receber um não. Abordei-o a medo. Ai Weiwei respondeu-me: “Claro que sim. Estava mesmo à tua espera.” Foi amor à primeira vista.

Ai Weiwei e Leila Campos
Ai Weiwei e Leila Campos

Ai Weiwei, é um artista plástico chinês, pintor, comentarista e ativista social, conhecido pela sua oposição ao regime de Pequim. Em 2011, passou 81 dias em isolamento na prisão por alegada fraude fiscal. Hoje vive em Berlim onde, no início deste mês, estreou a sua nova instalação dedicada a chamar a atenção para a crise de refugiados. Nesta obra, o artista adornou os pilares da famosa Konzerthaus com 14 mil coletes salva-vidas e um barco insuflável, recolhidos nas praias de Lesbos. Como Weiwei diz:

“Criatividade é o poder de rejeitar o passado para mudar o status quo e buscar novas possibilidades no presente.”

Encontrar-me com o meu artista plástico favorito foi um momento feliz e a recompensa por uma noite em que tive de me aguentar como pude. O mar estava calmo e a chegada de barcos era esperada, mesmo com uma maior vigilância por parte das guardas costeiras turca e grega. Mesmo com a presença da NATO no Mediterrâneo, o campo de registo de Moria estava a rebentar pelas costuras, havia muitos refugiados a dormir ao relento, segundo informações de voluntários com acesso ao seu interior. Fiquei na equipa de atendimento à chegada de autocarros. Conseguimos coordenar com membros da ACNUR e a Danish Refugee Council a nossa ação e fizemos que todos os refugiados que chegassem seriam levados para o campo Beter Days for Moria.

Um atrás do outro, chegaram 11 autocarros. Mais de 500 pessoas, entre eles muitos casos vulneráveis. Nunca vi tantas crianças, bebés e mulheres grávidas numa noite só, encharcados e exaustos. A penosa subida até ao nosso campo é feita com lentidão. Vi uma família a ficar para trás e tentei ajudar com as crianças. Agarrei numa ao colo, outra pela mão e olhei para a mãe. Estava grávida de 7 meses, de gémeos. Incrédula, olhei para a cara dela – parecia estar ganhar as forças perdidas na travessia de barco. Como era possível fazer aquela viagem naquelas circunstâncias? E as fronteiras que ainda tinha pela frente. Não é justo, pensei. Se ela conseguia eu também tinha de conseguir atravessar aquela noite.


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Encaminhei o grupo para a tenda de distribuição de comida e encarreguei-me daquela mulher. Viajava com o marido e um filho, a irmã com dois filhos, um deles, um bebé de 9 meses. O bebé estava embrulhado num cobertor de emergência e quando olhei para ele não se mexia. Pensei o pior. Na fila para a tenda de distribuição de roupa pus-me aos gritos para me deixarem passar. Coloquei o bebé no chão do provador improvisado e verifiquei que estava só a dormir. Respirei de alívio. Olhei para as duas mulheres e tentei tirar-lhes as medidas. Com o coração aos pulos e depois de algumas tentativas consegui encontrar roupas adequadas para elas e para as 3 crianças. Não pronunciaram uma palavra, mesmo quando as tentei despir. Sorri e pedi desculpa. Encontrei roupas para o bebé encharcado e levei-os para a tenda da equipa médica, feliz e aliviada. O campo parecia uma zona de guerra. Voltei para tenda de distribuição de roupa onde os meus colegas andavam numa busca incessante de roupa e sapatos. Muitos já davam sinais de desânimo, frustrados por terem de negar um bem essencial, como sapatos, a pessoas descalças e encharcadas.
O Tini, um voluntário espanhol, olhou para mim e ofereceu-me um abraço. Desabei. Pela primeira vez deixei as lágrimas correrem numa liberdade contida de 10 dias a assistir a miséria e histórias desumanas.
A imagem daquela mulher acompanhou-me pela noite dentro e povoou os meus sonhos. Sonhei que a guerra tinha terminado, que os homens tinham baixado as armas e escutado o seu coração.