Dolores Silva: “A mãe de um colega insultou-me quando descobriu que eu era rapariga”

Dolores Silva
Fotografia de Pedro Rocha / Global Imagens

Dolores Silva começou a jogar futebol desde muito pequena, incentivada pelo pai. Na rua, entre os rapazes, aperfeiçoou a técnica e foi mesmo numa equipa masculina que jogou até aos 13 anos, altura em que se mudou para uma equipa feminina.

Aos 19 anos mudou-se para a Alemanha, onde vestiu as camisolas do Duisburg e do USV Jena. Na próxima temporada regressa a Portugal, para representar o Sporting de Braga, mas até lá só quer aproveitar ao máximo um dos seus maiores sonhos, que alcançou aos 25 anos: chegar à fase final de um Europeu com a seleção feminina de futebol.

Como nasceu o gosto pelo futebol?

Desde pequena, lembro-me de ser pequenita e andar sempre atrás da bola com os rapazes, com os meus amigos na rua. O meu pai incentivou-me, também jogava com ele sempre que podia. Esta paixão começou muito cedo na rua.

Quando decidiu fazer carreira?

Com 8 anos fui jogar para uma equipa de rapazes, mas aos 13 anos tive de mudar para uma equipa de futebol feminino. Logo aí senti que queria fazer o percurso até chegar a jogadora profissional.

Foi difícil chegar a jogadora profissional?

Sim, foi difícil. Agora a realidade no nosso país está melhor, mas há uns anos não havia nem metade dos apoios que já se começa a ter. Tínhamos de fazer muitos sacrifícios, treinar das 21h30 até às 23h00 apesar de termos de nos levantar às 7h00 no outro dia para ir para a escola. Fazíamos esses sacrifícios sem sermos remuneradas, sem qualquer suporte ao contrário do que acontece com os rapazes desde muito cedo. Quando cheguei à seleção nacional abriram-se portas no estrangeiro e consegui realizar esse sonho.

Alguma vez se sentiu discriminada por ser rapariga e jogar futebol?

Por acaso não, nunca tive nenhum episódio caricato apesar de ter colegas a quem isso já aconteceu uma vez ou outra. Quando era mais nova e jogava com os rapazes, a mãe de um colega insultou-me quando descobriu que eu era rapariga. Foi um episódio desconfortável, mas tirando isso nunca me senti discriminada.

Considera que hoje em dia os pais já reagem melhor ao facto de as raparigas quererem jogar futebol e esses episódios acontecem com menos frequência?

Sim, ano após ano na federação as atletas têm vindo a crescer e isso prova também que, ao nível da formação, os pais também estão a apoiar mais as filhas que querem jogar futebol. Já não há tanto o estereótipo de maria-rapaz e os pais até já sentem orgulho no facto de as filhas jogarem à bola.

Joga no FF USV Jena, um clube alemão. Acha que se tivesse ficado por Portugal a sua carreira teria sido diferente?

Tive muitos anos no 1º de Dezembro, conquistei muitos títulos em Portugal por esse clube. Aos 19 surgiu-me a oportunidade de ir para a Alemanha, onde fiquei a jogar até agora. As diferenças são grandes, embora às vezes se tenha uma ideia errada sobre a realidade na Alemanha. Lá também temos de fazer alguns sacrifícios, mas tudo vale a pena.

Notam que, neste momento, se dá mais importância à seleção feminina de futebol em Portugal?

Sim, sem dúvida, notamos cada vez mais essa diferença. As pessoas estão a mostrar cada vez mais interesse e a comunicação social tem feito um excelente trabalho em conjunto com a Federação Portuguesa de Futebol, que tem apostado bastante no futebol feminino. Tudo isso tem ajudado a criar mais interesse nas pessoas, é bom sentirmos que estão interessados no nosso trabalho e que nos apoiam.

Quais são as maiores diferenças entre o futebol feminino e o masculino?

Ainda existem muitas diferenças, comparar os dois é quase impossível. São realidades bastante diferentes. Os rapazes são remunerados desde muito cedo e chegam a remunerações muito elavadas que nunca são alcançadas no futebol feminino. Nem as jogadoras de topo mundial conseguem atingir a média que um jogador de futebol masculino ganha ao ano.

Quanto ganham, em média, essas jogadoras?

Não tenho bem noção. Uma jogadora de topo a nível europeu já é capaz de atingir grandes valores, mas nunca chega sequer perto dos milhões que os homens ganham.

Que cuidados especiais tem antes dos jogos?

Tento descansar ao máximo, isso é fundamental, ter uma boa alimentação, hidratação e conjugar tudo isso com o descanso. Preocupo-me muito com tudo isso.

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Quais são as suas referências no futebol?

Sendo portuguesa é óbvio que tenho de referir o Cristiano Ronaldo, por todo o percurso que ele tem feito. Na minha posição gosto muito do Lika Modric. Do lado feminino tenho a guarda-redes portuguesa Carla Cristina, a Sónia Matias e a Carla Couto. Tive o privilégio de jogar com elas, para mim são referências e pensei muito nelas quando concretizámos este sonho de chegar à fase final do Europeu. Este feito não se deve só a nós mas também a todas aquelas que já cá estiveram e às que estão para vir.

Até quando quer continuar a jogar futebol?

Até quando o meu corpo me permitir. No futebol é muito relativo, nunca há uma data certa. Jogamos até quando o nosso corpo nos permite ter um bom desempenho.

O que planeia fazer depois da carreira de futebolista?

Estou a licenciar-me em Ciências do Desporto. Não sei se gostaria ou não de ser treinadora, mas espero continuar ligada ao desporto.

É difícil conciliar os estudos com as competições?

Sim, os estudos não ficam para trás mas é sempre complicado. Quando se quer tudo é possível. Incentivo sempre todas as jogadoras a conciliarem as duas coisas.

Em termos de carreira, quais são os seus maiores sonhos e objetivos?

O maior sonho era estar com a seleção numa fase final do Europeu, felizmente consegui realizá-lo. Estar numa fase final de um campeonato do mundo era outro dos objetivos que gostava de atingir. Depois, consoante o clube em que estiver, é ganhar o máximo de títulos que conseguir.

Neste Europeu, qual é o adversário mais temido?

Respeitamos todos. Sabemos que Espanha e Inglaterra são duas seleções fortíssimas, estão muito bem classificadas no ranking mundial, mas a Escócia também é uma equipa forte.

Como está de expectativas para este Europeu?

Jogo a jogo dar o nosso melhor para dignificar a camisola. Estar no Europeu é um feito inédito e isso, por si só, já tem um grande peso. Sabemos que temos uma responsabilidade muito grande por estarmos no Europeu e queremos, jogo a jogo, dar o melhor de nós.