Elisabete Oliveira, cientista: “Seria ingénuo dizer que temos a cura contra o cancro”

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Nanotecnologia proteómica. É com estes palavrões que Elisabete Oliveira, de 32 anos, passa os dias. Ela é cientista em pós-doutoramento e está a desenvolver desde 2011 uma tecnologia médica que permitirá combater o cancro, onde o cancro está, de forma a não afetar células saudáveis. O projeto que lidera chama-se Síntese de Nanopartículas Luminescentes Biodegradáveis para o Transporte de Fármacos Para o Tratamento de Células Cancerígenas. Este foi um dos três estudos vencedores das Medalhas de Honra L’Oréal Portugal para as Mulheres na Ciência. Elisabete recebe-nos no seu laboratório, no Bloco de Química da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Lisboa, apresenta-nos a equipa e deixa-nos espreitar para as salas de experiências. Adora mostrar o que faz e imagina a nossa curiosidade porque é a curiosidade que a move.

Começou muito jovem a interessar-se pela investigação. Hoje dedica-se em exclusivo ao laboratório ou também dá aulas?
Sim, nós como investigadores de pós-doutoramento damos a maior parte do nosso tempo à investigação, mas dentro desse tempo dedicado à investigação temos também uma função orientadores de novos formandos, uns que estão a terminar a licenciatura, outros mestrados. E também me dedico às aulas aqui na Universidade, dou aulas práticas.
Em laboratório…
Sim. Aulas práticas aos alunos.
Ensina os alunos fazer experiências com químicos…
Exatamente.
Com reagentes…
Exato.
Da mesma forma que aconteceu quando era aluna? A sua licenciatura foi em…
Eu licenciei-me aqui, nesta Universidade, em 2006, em Química. A minha base é Química. Fiz três anos de Química Geral e depois dois anos de especialização, no ramo da Biotecnologia. Daí que surgiu o meu interesse na criação de dispositivos e fazer coisas mais precisas.
O que é que é a Biotecnologia?
No fundo, a Biotecnologia é o desenvolvimento de pequenos dispositivos ou pequenos aparelhos tecnológicos que podemos utilizar no nosso organismo ou em sistemas biológicos.
Em seres vivos.
Exatamente, em seres vivos, que é um bocadinho o que é este projeto. Este projeto é a síntese de nanopartículas, de partículas minúsculas, que nós não conseguimos ver a olho nu. Na superfície dessas nanopartículas há pequenos poros, dentro desses poros são introduzidos fármacos e na superfície dessa nanopartícula pomos uma espécie de uma sonda. É como se fosse um recetor, que vai diretamente à célula cancerígena deixando as células saudáveis de parte. É por isso que o tratamento com o fármaco muito mais incisivo.

É essa eficácia que faz com que ganhe o prémio da L’Oréal?
O projeto que eu ganhou o prémio é a Síntese de Nanopartículas Luminescentes Biodegradáveis para o Transporte de Fármacos para o Tratamento de Células Cancerígenas.
É a introdução no corpo do doente de um pequeno dispositivo que leva a medicação às células doentes. É um trabalho completamente novo?

Já existem muitas coisas do género, mas não desta forma, Hoje em dia a quimioterapia é administrada via oral ou pode ser também via injetável. Mas normalmente temos de administrar grandes doses, o que os efeitos secundários são bastante…
Devastadores.
Devastadores, exatamente. O objetivo deste trabalho era criar um comprimido que tivesse um antibiótico no seu interior, percorresse todo o organismo e fosse diretamente à célula cancerígena e tratasse só aquela célula. Assim íamos diminuir a quantidade que o doente ia tomar e os efeitos secundários seriam menores. A grande ideia aqui está relacionada com um fármaco que é a doxorrubicina. Esse fármaco é utilizado para o tratamento de cancro nas suas mais variadas formas mas ainda de forma endovenosa, ou seja, é injetável.
O que muda no tratamento do cancro com este projeto?
O objetivo seria criar um comprimido ou uma forma oral desse antibiótico e torná-lo mais eficaz.
Há quanto tempo é que esta investigação decorre?
Desde que eu comecei o meu pós doutoramento, foi em 2011.
Qual é o tempo expectável até termos uma conclusão, até termos a certeza que este comprimido, que a Elisabete está a inventar, vai funcionar?
Neste caso ainda temos só resultados-piloto, ou seja, já foi testado em células. Nós compramos as células num banco de células. Nesse banco podem disponibilizar-nos desde células saudáveis até diferentes células com diferentes tipos de cancro.
Porque precisam de ter células saudáveis para fazer o comparativo…
Exato. Temos de ter sempre um controlo. E depois, estes testes… agora estamos a fazer estes testes-piloto, ou seja, estamos ainda testar em células, e depois de testar em células se os resultados forem, estão a ser satisfatórios em termos de toxicidade, então já podemos avançar – que é o próximo passo – para o desenvolvimento da via oral.
De momento põe em contacto com células saudáveis essa nanopartículas que estão a criar e se elas não reagirem muito significa que elas não têm problemas com aquele medicamento e em contrapartida outra célula que está doente…
Tem de morrer na presença do fármaco. E é a partir dessa célula que morre que sabemos que este é o medicamento certo para aplicar, que é efetivo, neste caso. Nós conseguimos ver o que acontece por termos células, fluorescentes. Se elas degradam, ou seja, se o tratamento é efetivo, significa que essa fluorescência desaparece.
Os cancros têm características diferentes entre si. Quimicamente uma célula cancerígena pode ser de um tipo ou de outro, a reação do corpo em que essa célula está a desenvolver-se pode ser muito diferente. Este comprimido vai ser eficaz para todas as patologias, todas as neoplasias?
Eu penso que, dado que nós conseguimos colocar na sua superfície qualquer sonda, ou seja qualquer recetor que encaminhe a célula ao destino, introduzimos o fármaco que é utilizado para cada tipo de cancro, eu penso que poderá ser uma via satisfatória nesse sentido.
Então essa sonda vem do corpo do que está doente?
Vem do corpo doente sim. Primeiro temos que pegar nas células cancerígenas, estudamos todos os biomarcadores ou proteínas que são sobrexpressadas, que existem em exagero na célula, e há de haver alguma que é sobrexpressada naquela célula cancerígena, mas não é nas células saudáveis e nós descobrimos essa molécula e pomos na superfície o análogo para ir lá diretamente.
Isto vai implicar o desenvolvimento de um comprimido específico para cada paciente?
Exatamente. Imagine que uma pessoa sofre de uma determinada doença, nós podemos fazer uma colheita de sangue dessa pessoa e ver nas suas células quais é que são as proteínas que estão sobrexpressadas, ou seja, que encontram um nível mais elevado ou menor e criar um target, ou seja, um comprimido com o alvo específico para o tratamento daquele tipo de cancro.
E isto não vai encarecer muito os tratamentos de cancro ou vai diminuir os custos?
Vai diminuir os custos porque estes materiais, do ponto de vista de síntese, como é feito no laboratório são bastante baratos. O objetivo é criar um dispositivo que seja barato, fácil de manusear, fácil de criar e que seja incisivo, ou seja, seja seletivo para determinado tipo de doença o que faz com que o tratamento tenha um sucesso muito mais elevado.
Isto significa que o cancro está quase, quase, a ser curável?
Significa que estamos no caminho certo. Eu acho que não, seria um bocadinho ingénuo da minha parte dizer que temos a cura contra o cancro, mas digo que estamos no caminho certo.
Agora está na fase de laboratório, quando é que passa para a fase de testar em pessoas?
Ainda estamos a testar em células, eu penso que, digamos num prazo de cinco anos, cinco, seis anos, já estaremos a testar em pessoas.
Primeiro vai testar em animais.
Sim. O objetivo primeiro seria testar, estamos agora in vitro, nas células, depois vamos testar em animais, como se costuma fazer nos ratinhos, e depois avançamos para a parte dos humanos. Todo esse período, às vezes é mais demorado, não pelo tanto de tempo que passamos a fazer a experiência, mas pelas partes burocráticas, porque temos que ir ao hospital pedir as amostras, depois as pessoas tem que ser, as amostras tem que ser dadas voluntariamente e temos umas determinadas burocracias que têm de ser feitas.
Há o Conselho de Ética também.
Exato, exatamente, temos que…
Custa esperar tanto tempo para ver se há uma pessoa que fica curada?
Não. Na investigação não podemos ser muito ansiosos, porque às vezes, quando somos muito ansiosos, quando corremos muito, às vezes podemos não estar a ver bem… Eu prefiro ir passo-a-passo e fazer o passo-a-passo certinho e ter a certeza, porque até para publicarmos os nossos trabalhos temos de ter mesmo a certeza daquilo que estamos a publicar, às vezes temos de repetir mesmo, a mesma experiência umas dez ou vinte vezes para vermos se é reproduzível. Não é só chegar ao laboratório pôr como no CSI e ao fim de um minuto sai o resultado. Tem muito mais tempo e trabalho envolvido.
Este prémio que ganha agora, que a L’Óreal lhe atribui, significa o quê?
Eu gosto muito daquilo que faço, adoro investigação, comecei em 2005 quando terminei a minha licenciatura e não me vejo a fazer outra coisa, adoro. Neste momento, é uma esperança, porque aqui no nosso País… Eu costumo dizer somos muito bons a formar doutores, mas não somos nada bons a mantê-los e entretanto o que eu noto é que muitos colegas, assim como eu, são obrigados a…
Emigrar.
A emigrar. Como eu, eu tenho um contrato que é de tempo certo, é uma bolsa. Sei que, naquele período, naquele ano, vai terminar e não temos mais nada, ou o que existe é muito pouco para o número de investigadores que nós temos e…
E este prémio permite-lhe trabalhar…
Sim e é uma motivação…
Mais descansada?
Exato. Um bocadinho. É uma motivação para seguir com o meu trabalho, que aqui também precisamos de ter motivação para seguir, porque é um trabalho de muitas horas.
Este valor é aplicado na investigação?
É, é aplicado na investigação, sim.
Já tem ideia de como é que vai utilizar este prémio de 20 mil euros?
Sim. Vou investir particularmente na parte dos reativos que nós utilizamos para fazer os trabalhos, a síntese… Vai ser todo inserido no projeto, também em cursos de formação, no sentido de instrumentação, que nós algumas não temos, tenho que ir fora do País, a Barcelona, ter acesso aos instrumentos e poder trabalhar com as minhas células e, também, em formação para conseguir ter mais conhecimento da parte da Biologia e depois conseguir atingir o objetivo.
Como é que vê a ciência em Portugal?
Eu acho que ainda estamos muito atrás de países como, por exemplo, a Finlândia ou como os Estados Unidos, porque eu acho que a ciência sim é o desenvolvimento do País. Nós temos muito bons investigadores, que a maior parte deles são obrigados a emigrar. É o que acontece. Portugal não é para cientistas. (risos)

Porquê?

Porque nós sim, temos trabalho, temos uma bolsa, mas temos uma bolsa, temos que ter projetos para conseguir trabalhar e em ciência é tudo muito caro e eu acho que nesse sentido, em termos de projetos e de apoio Portugal está muito enfraquecido relativamente a outros países da Europa.
O financiamento da ciência vem sobretudo do Estado, não é? Ou seja…
Sim, da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
É estranho a tentativa de captação de financiamento de outros lados? A L’Óreal agora instituiu um prémio, as pessoas autopropõem-se ao prémio e depois recebem, é mais ou menos simples. Mas há práticas de patrocínio e de mecenato de investigação científica noutros países e isso não existe em Portugal.
Não.
Consegue perceber porquê?
Não, ainda não consegui perceber, mas eu sei que em países, em outros países, a parte das empresas apostam muito em investigação. Eu acho que aqui em Portugal a parte colaboração universidade/empresa ainda não está muito bem, perfeita. E nesse sentido eu acho que está bastante enfraquecido. Porque eu acho que é por não haver uma ligação tão forte da universidade com a empresa é como se fossem duas instituições separadas e se houvesse uma união eu acho que poderíamos obter mais financiamento. Existem algumas, mas muito poucas.
Mas faria sentido ou, até num projeto como o seu, haver uma passagem para as empresas, não é?
Sim.
Ou seja, uma farmacêutica, seguramente maiores vantagens em financiar este projeto e depois vender a cura do cancro a…
Exato, patentear e vender, exatamente.
Porque é que isso não acontece?
Aqui em Portugal eu não percebo porque é que não acontece, mas por exemplo, se eu estivesse a trabalhar nos Estados Unidos ou noutro país do norte de certeza que já teria farmacêuticas interessadas em financiar o meu projeto e ajudar no sentido de tornar comerciável.
Os cientistas em Portugal não são ricos, pois não?
Não, longe disso, muito longe disso. Eu costumo dizer que nós aqui, os cientistas, é como se não existíssemos do ponto de vista do Governo, porque recebemos aquela…
Bolsa.
Recebemos uma bolsa…
Posso-lhe perguntar quanto é que é uma bolsa de investigação de pós-doutoramento?
São à volta de, de pós-doutoramento, são 1400…
Que é o que está a fazer, não é?
É, pós-doutoramento. 1495 euros. São 12 meses, não temos direito a férias. É um valor bruto e não há descontos porque é bolsa. Não há direito a subsídios.
A Elisabete nasceu no Alentejo.
Nasci em Santiago do Cacém, vivi até aos 15 anos numa terrinha, Cercal do Alentejo, os meus pais são da Sonega, que é uma terrinha ao lado. Eu sou alentejana pura, como se costuma dizer e foi aí, saí aos 17 anos, vim estudar aqui para a Universidade, fiz a minha licenciatura, depois fiz o meu doutoramento, fui para Espanha, Itália, durante o doutoramento e agora voltámos em 2013 aqui para Lisboa.
A experiência internacional beneficia-a?
Muito.
Porquê?
Quando vamos para fora, não só porque faz-nos crescer um bocadinho. Porque aprendemos um bocadinho o que é a cultura lá fora, a desenrascarmo-nos em ambientes diferentes e isso faz-nos crescer tanto em termos profissionais como em termos pessoais e também é bom saber o que fazem lá fora para trazer o conhecimento, não é?
E equaciona voltar a ir para fora trabalhar, como os seus colegas que emigram?
Sim, no futuro próximo, se não conseguir mais nada, sim. Se não conseguir arranjar emprego aqui em Portugal, sim. Porque, como eu lhe disse, adoro o que faço e não me vejo a fazer outra coisa. Acho que temos de seguir os nossos sonhos, não é?