Um teste à fé e aos limites de 11 mulheres

Um grupo de 11 mulheres atravessa meio país com o objetivo de cumprir a promessa de chegar de Fátima. São quatrocentos quilómetros e nove dias de vivência em conjunto, em condições, muitas vezes, extremas e precárias, que põem à prova não só a resistência física destas mulheres, mas a sua fé, no divino e na humanidade.

É tudo isso que faz o novo filme de João Canijo, ‘Fátima’, com estreia esta quinta-feira, 27 de abril, nas salas de cinema nacionais. Feito com um elenco inteiramente feminino, o filme conta com as participações de Rita Blanco, Anabela Moreira, Teresa Tavares, Márcia Breia e Sara Norte, entre outras.

Para esta produção, as atrizes realizaram uma espécie de “estágio” em Vinhais, onde passaram alguns meses convivendo com a população local e aprendendo os seus ofícios e modos de vida para criarem as suas personagens. Também a peregrinação que é retratada no filme é real. As atrizes cumpriram, como qualquer peregrino, o percurso a pé de Trás-os-Montes até ao santuário, em diferente fases: a primeira em 2014, como preparação e com outros grupos de peregrinos, depois em 2015, já com as atrizes a formarem um grupo, e em 2016 para o filme.


Veja o trailer:

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Chegar a este ‘Fátima’ também foi uma ideia que conheceu diferentes mutações, como explicou ao Delas.pt o realizador, João Canijo:

“Primeiro era um filme sobre as relações humanas de um grupo de mulheres, obrigadas as estarem 24 horas sobre 24 horas, como uma prisão. Depois surgiu a ideia da peregrinação e aí surgiu-me uma ideia tão importante como a relação entre as mulheres, que é a relação da humanidade com a necessidade de fé. E em último sobre essas duas coisas. A ordem não sei bem qual é, porque elas confundem-se também e porque uma é paradoxal em relação à outra.”

Um filme de experiência feito
Não sendo um documentário, ‘Fátima’ apresenta-se como uma recriação real do percursos, dos sacrifícios e do ambiente que caracteriza um desafio deste tipo. De resto, o filme é o resultado das peregrinações experimentadas pelas atrizes, entre Trás-os-Montes e o santuário de Fátima. Foi daí que trouxeram o material humano para construírem as personagens e dar forma ao filme.

Cada uma fez a sua peregrinação e já tinha uma ideia de como é que se chamava, que idade é que teria, mas tínhamos de descobrir, durante aqueles dias a andar, quem é que éramos, se éramos casadas ou não, se tínhamos família ou não. Fomos descobrindo sozinhas durante o percurso”, refere Anabela Moreira, uma das atrizes sobre parte do processo de construção do filme.

A partir daí coube ao realizador escolher o mais conveniente para o guião e guiar as atrizes, sem as limitar a uma construção predefinida.

Foi introduzindo elementos, mas deixou que essa criação partisse de nós, que trouxemos todas as nossas experiências da peregrinação verdadeira para o processo de criação do filme. Depois o João [Canijo] decidia em que personagem cada uma dessas experiências se encaixava melhor”.

No seu caso, diz Anabela Moreira que interpreta Céu, a grande maioria das coisas que a sua personagem passa no filme, em termos de relações humanas, não se passaram consigo na peregrinação real que fez em 2014. Mas houve muita coisa que ficou.

A Céu começa a criar suscetibilidades em tudo o que lhe está a acontecer e isso partiu muito da minha experiência verdadeira quando fiz a peregrinação uns anos antes – em 2014, que fiz de Bragança a Fátima a pé. O sofrimento foi tão grande, tão grande, tão monstruoso que tudo mexia comigo. Por isso, tentei explorar esses sentimentos, que depois eram determinantes para a forma como se ia gerindo o percurso. Sendo que no percurso de Fátima passas por mil dias num só dia.”


Leia a entrevista com Rita Blanco sobre a sua participação no filme.


Dentro do grupo, é a personagem de Anabela Moreira a que mais questiona o sentido da peregrinação e o propósito da fé, lembrando aos restantes elementos a importância de valores como a solidariedade e a entreajuda.

“Isso também teve tudo a ver com a minha primeira experiência. O meu pânico era, se eu perdesse forças, e começasse a ficar para trás, não iam esperar por mim. Tive essa experiência num dos primeiros dias. E ficou-me gravado na memória, como uma coisa muito dolorosa. Então, cada vez que alguma pessoa ficava para trás eu sabia o que essa pessoa estava a passar.”

Apesar de ninguém abandonar completamente a pessoa que não consegue acompanhar o passo do grupo, “o ficar para trás”, como diz Anabela tem outro peso, que não apenas o do pânico.


“É o sentir que estás a prejudicar o grupo quando estão todas no caminho para ir ao encontro de uma coisa tão divina, tão perfeita.”

Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, na busca para alcançar esse encontro convive-se “diariamente com a imperfeição”. “E se não te consegues exprimir corres o risco de guardar ressentimentos”, acrescenta a atriz.

Um homem entre as mulheres
No seu trabalho, João Canijo tem privilegiado o trabalho com atrizes e ‘Fátima’ não é exceção, com um elenco quase exclusivamente feminino.

Para o realizador a razão é simples: “Cada vez mais acho as personagens femininas mais interessantes.” As do filme “Fátima” não são diferentes, mas não nos é dado a conhecer muito sobre elas ao longo do filme.

“Foi tudo feito para elas serem muito complexas, sabendo eu à partida – elas não – que essa complexidade ia ser intuída mais do que explicada. O facto de serem complexas e se sentirem complexas permite ao espectador imaginar o que quiser.”

O realizador dá, no entanto, algumas pistas, durante o filme, sobre as vidas das suas personagens, mas muito poucas sobre o que as leva a fazer a peregrinação.

Depois da exibição nas salas de cinema, “Fátima” dará origem a uma série televisiva, que será emitida na RTP, em data ainda a anunciar. Nessa altura, diz João Canijo, ficaremos a saber mais acerca destas mulheres.

Ao Delas.pt, as atrizes levantam um pouco o véu e, sem revelarem tudo, falam um pouco das suas personagens e dos motivos que as levam a fazer esta peregrinação.

Na fotogaleria, em cima, pode ficar a conhecer melhor Ana Maria, Maria do Céu, Nazaré, Carla, Maria de Fátima, Nanda, São e Rosário, nove das 11 mulheres do grupo que acompanhamos ao longo de mais de duas horas, na obra dirigida por João Canijo.

O elenco do filme, em Vinhais, janeiro de 2016. (Fotografia: Joana Linda)

Fátima’ vê-se como uma espécie de road movie, em que o espetador segue o caminho feito pelas atrizes e testemunha o seu sofrimento, as agruras e os conflitos, mas também os momentos de entreajuda, de superação e os progressos para alcançarem o objetivo: chegar ao santuário a tempo da procissão das velas, a 12 de maio.

Não há carros descapotáveis, nem cabelos ao vento ou carrinhas coloridas a defender o amor livre. As que há estão atafulhadas e sujas e o caminho faz-se a pé, com os pés rebentados cheios de bolha e as caras moídas da dor. O que falta em glamour, sobra em autenticidade, mais rural que urbana, mas de um Portugal em que todos, de uma maneira ou outra, se reconhecem.