Femafro: pelos direitos das mulheres negras portuguesas

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Lisboa, 20/07/2016 - Líderes de plataformas feministas de afrodescentes. Beatriz Gomes Dias (DJASS) ; Raquel Rodrigues (Femafro) (Gerardo Santos / Global Imagens)

No próximo sábado, dia 30 de julho, celebra-se o Dia da Mulher Africana. A Femafro aproveita o dia para celebrar a mulher negra portuguesa. A associação recentemente constituída tem uma agenda política feminista e contra a discriminação das africanas e das afrodescendentes em Portugal. Falámos Beatriz Gomes Dias (BGD), 45 anos, professora de Biologia no ensino Secundário e ativista na DJASS, e Raquel Rodrigues (RR), 31 anos, a coordenadora da Plataforma Femafro, que acaba de nascer

Como foi processo que leva à criação da Femafro?
RR – O processo foi, foi longo. Começou com um projeto de que eu tive a oportunidade de fazer parte na Associação de Solidariedade Imigrante. Tínhamos um projeto que estava ligado às mulheres imigrantes e nesse projeto tratávamos de temas ligados à xenofobia, à igualdade de género, à mutilação genital feminina, às questões de imigração, ligadas à imigração, serviço doméstico… Eram várias temáticas que tentávamos trabalhar com as mulheres que iam lá diariamente. Fazendo parte deste projeto foi também um processo, meu, de construção de identidade, de tentar perceber, efetivamente, qual é o meu papel na sociedade.

Eu como uma mulher negra sempre estive mais ligada às mulheres africanas que iam diariamente à associação e o que eu sentia é que, de facto, para além da desigualdade de género, do machismo, para além da xenofobia, existia também a questão racial que afetava também estas mulheres. Depois do projeto houve esta ideia de tentar perceber, o que é que se poderia fazer no âmbito das mulheres negras, africanas e afrodescendentes em Portugal. Começámos por nos reunir, para tentar perceber se a ideia da criação de uma associação ou duma organização destinada especificamente a tratar das questões relacionadas com a mulher negra fazia sentido aqui em Portugal e rapidamente percebemos que sim, que não era apenas uma ideia vaga, que efetivamente havia questões prementes que deveriam ser tratadas em Portugal, que deveriam ser discutidas aqui e várias outras mulheres juntaram-se a esta ideia. A Plataforma Femafro que agora é Femafro – Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes em Portugal fazia todo o sentido termos uma organização, uma institucional que tratasse destas questões da mulher negra. Falamos a nível do racismo, da xenofobia, do serviço doméstico, da questão da identidade, a promoção dos direitos e dos deveres, da luta contra a discriminação sexual também. Todas estas temáticas, nós abordamos na plataforma.

Essas reuniões foram feitas via internet?

RR – Começou com uma plataforma online no Facebook onde diariamente colocávamos posts relativos a questões ligadas às mulheres negras. Todo o tipo de notícias, todo o tipo de entrevistas, todo o tipo de acontecimentos que estivessem diretamente ligados. Aqui, aquilo que se percebeu é que, em torno desta plataforma online, foram-se criando sinergias de várias pessoas enviando matérias e quando nós resolvemos fazer o primeiro encontro de feministas negras que aconteceu no dia 30 de abril, nós tivemos o boom. Praticamente, 160 inscrições para um espaço que apenas acolhia 80 pessoas.

Ficou gente de fora ou dividiram cadeiras?

RR – (risos). Tentámos conseguir incluir o máximo de pessoas possível mas não foi possível todas as pessoas irem. Todas as mulheres irem a esse encontro de feministas. E aí foi o primeiro pontapé de saída da plataforma. Nós percebermos que a ideia que tivemos deveria saltar cá para fora, ou seja, não deveria ser apenas um espaço cibernaútico para discutirmos, mas um espaço físico.

Esse processo que a Raquel fala do início, da tomada de consciência, é também um processo pessoal?

Sim, sem dúvida.

Como é que a Raquel se definia antes e como é que a Raquel se define agora?

RR – Eu, antes de trabalhar nestas questões de Direitos Humanos, nunca nunca pensava especificamente o meu papel de mulher na sociedade e o meu papel de mulher negra. De uma certa forma a sociedade em que vivemos, que nos engloba ela também nos deixa num pequeno estado de alienação principalmente quando somos jovens, negras, africanas. Em Portugal é quase como um não-tema, é o tema tabu, não se fala acerca da discriminação, não se fala de racismo, não se fala acerca da desigualdade de género, duma forma aberta e direta, embora nós saibamos que acontece diariamente, mas não se fala desta forma aberta. Os jovens tendem a achar, de facto, que fazem parte desta sociedade, mas depois a partir deste momento da tomada de consciência de quem sou eu, não é? Qual é o meu papel? De onde venho, não é? Porque é muito engraçado quando digo que sou alfacinha, mas ninguém acredita. Perguntam sempre “Mas tu és mesmo de onde?”.

Ou perguntam de onde são os seus pais, imagino.

RR – Eu respondo: “Não, eu nasci mesmo aqui na extinta freguesia de São Sebastião da Pedreira.” É a partir destes pequenos acontecimentos diários, quotidianos, que sentimos a discriminação. Da minha narrativa pessoal não sou imigrante. Mas, como estou tão envolvida com estas questões de imigração acabo, efetivamente, por abarcar esse discurso, fazer um discurso mais inclusivo, no sentido em que existem certas situações e certas discriminações que apenas mulheres imigrantes sofrem e, quando juntamos o tema da imigração, ao tema racial e o tema do género, são várias opressões que vão, efetivamente, condicionar o papel da mulher negra na sociedade portuguesa.

Lisboa, 20/07/2016 - Líderes de plataformas feministas de afrodescentes. Beatriz Gomes Dias (DJASS) ; Raquel Rodrigues (Femafro) (Gerardo Santos / Global Imagens)
Beatriz Gomes Dias (DJASS) e Raquel Rodrigues coordenadora da plataforma Femafro. (Gerardo Santos / Global Imagens)

Como é que foi o processo de consciencialização da Beatriz?

BGM – Eu sou descendente de guineenses que viveram na Guiné quando a Guiné era uma colónia portuguesa. Portugal tem uma tradição colonial longa, mas, este mesmo país que tem uma tradição, que como sempre afirmou esses estados como pertencendo a Portugal – eu não estou a dizer que eu concordo com isso – tem dificuldade em reconhecer que há portugueses não-brancos e, que esses portugueses não-brancos terão tido a sua proveniência nessas colónias. Esta ideia constante de nos perguntarem de onde é que somos… Se eu disser que sou de Lisboa ninguém acredita que eu possa ser de Lisboa, porquê? Parte da premissa de que não há portugueses não-brancos, que todos os portugueses são brancos, caucasianos, que não há portugueses negros. E nós existimos. Começámos esta reflexão, na DJASS, [Associação de Afrodescendentes] precisamente para promover a visibilidade dos negros. Começar esta discussão: existem portugueses negros. Portanto, e isto é uma coisa que temos de aceitar.

Há um discurso oficial de que Portugal não é um país racista…

BGM – Precisamente.

E de que os fenómenos racistas são vistos como epifenómenos, ou seja, coisas muito pontuais.

BGM – Sim.

Por outro lado também não há representação da população negra nas estatísticas. Ou seja, não sabemos qual é o número de portugueses negros existente em Portugal.

BGM – Precisamente.

Seria possível a partir desses números começarmos a tratar outras questões específicas das comunidades…

BGM – Sim, sim. Uma investigadora do ISCTE de Sociologia, a Cristina Roldão, fez um trabalho de investigação muito interessante sobre os percursos escolares, os percursos educativos dos afrodescendentes em Portugal e um dos dados que me ficou muito na memória é aquele que demonstra que os alunos provenientes de famílias dos países que foram colonizados por Portugal têm cinco vezes menos possibilidade de aceder ao Ensino Superior. Ela usou dados estatísticos a partir dos censos, com a nacionalidade dos pais, tentou inferir a representação fenotípica destas pessoas, portanto, a proveniência, o país de origem e depois o percurso destes mesmos alunos no sistema educativo português. As conclusões são dramáticas.

RR – Cerca de 80% frequentam o ensino profissional.

BGM – Eu estou codificada como portuguesa, os meus pais são da Guiné Bissau, portanto, usando as regras estatísticas que a Cristina Roldão fez ela poderia recolher os meus dados, portanto, eu fazia parte da amostra que frequentou o Ensino Superior, mas na verdade para o Censo Geral eu sou portuguesa, e isto não diz nada sobre o meu fenótipo.

RR – No Brasil já está mais avançado, no sentido em que já fazem já esta distinção.

RR – Nos dados dos censos, sim. Mesmo, por exemplo, no atendimento em qualquer serviço público ou no centro de saúde, haver efetivamente uma ficha onde se faça essa discriminação para se terem dados. A importância destes dados permite reivindicar políticas de discriminação positiva que, por sua vez, vão aumentar a visibilidade dos negros e isso é fundamental para os jovens. É fundamental para qualquer pessoa. A mim constrange-me ir ao meu banco e ver todos os cartazes serem representados por um único fenótipo, ou seja, não traduz a diversidade fenotípica que existe hoje em Portugal, não traduz todos esses aspetos positivos – que é muito enaltecido.

Nós olhamos para a Seleção Portuguesa e vemos uma quantidade de portugueses negros a representarem o País, criaram uma alegria extraordinária a uma parte dos portugueses, mas depois não há uma consequência dessa alegria num discurso oficial que afirme “sim, existem portugueses negros e estão, estão nestas posições”.

O Ministério da Justiça é um exemplo que contraria o que diz.

BGM – No Ministério da Justiça, precisamente, chegamos depois de quarenta anos de democracia, não é? Temos pela primeira vez uma ministra negra, portanto, portuguesa negra, mas isto, de qualquer forma, é um avanço, mas, no entanto, eu acho que esconde um problema que tem a ver com o racismo, com a história colonial de Portugal que não é discutida.

RR – E mesmo não abrange a representatividade, não…

BGM – Não, não. Eu acho que mascara. Mascara porque leva-nos àquele discurso da meritocracia que nos diz “ponham os olhos na Ministra Francisca Van Dunem, é possível qualquer negro aceder àquele lugar.” Não, não é. Lamento, mas não é.

Mas é importante falarmos de Francisca Van Dunem, dos números relacionados com os percursos escolares dos negros portugueses e também dos percursos escolares dos pobres portugueses.

BGM – Sim.

São vários estudos que indicam que a origem social condiciona o sucesso escolar e profissional de todos os portugueses. Será interessante tentar perceber se os portugueses negros são também os mais afetados pela pobreza e em que medida é que uma coisa afeta a outra?

BGM – Mesmo no estudo da Cristina Roldão, quando comparado pela classe social os portugueses negros têm menos acesso a bens de consumo. Ou seja, sabendo que a população portuguesa tem uma frequência universitária baixa, comparando sóa classe social, os portugueses negros continuavam a ter menor possibilidade de aceder ao Ensino Superior do que portugueses brancos, da mesma classe social.

Não foi o seu caso. A Beatriz licenciou-se e dá aulas.

Eu quando era jovem achava que o racismo era uma questão de classe social e que não era tanto uma questão fenotípica, que o racismo não se alicerçava numa questão fenotípica, mas sim numa questão de classe social e que, infelizmente os negros eram os mais pobres e por isso é que eles eram mais excluídos.

E sentia que no seu caso isso não acontecia por vir de um meio mais privilegiado?

Sim, sim… mas o racismo, efetivamente, não tem relação com a classe social. O racismo é um processo ideológico e político. Que é implementado com regras muito claras e visa justificar uma hierarquização da população com base num fenótipo. Isso não tem relação com a classe social. Apesar de eu, enquanto jovem, acreditar que o racismo poderia ser combatido, viver numa sociedade pós-racial, somos todos iguais a diferença é se temos acesso a recursos ou não, se estamos numa situação privilegiada ou não, à medida que fui ficando mais velha – e daí nós termos criado a DJASS – percebi que o racismo vai muito para além dessas questões. Foram 400 anos a edificar um edifício de exploração e de condenação de milhares de pessoas a um lugar subalternizado nas sociedades que resultaram da colonização europeia.
Os 40 anos de independência dos países que foram colonizados por Portugal não são suficientes para desmontar todas as ideias pré-concebidas que existem sobre os negros e sobre a inferioridade dos negros, sobre a menor capacidade dos negros. Isso é o que faz com que eles tenham menos acesso. Porque esta ideia não é só uma ideia que é veiculada pelo outro, é uma ideia que nos é também inculcada a nós negros, que nos coloniza a todos, negros e brancos.

Mas, hoje é possível identificar as fontes dessa doutrina? De onde é que ela vem?

BGM – Do privilégio que as famílias portuguesas tiveram por Portugal ter tido colónias. Esse privilégio faz com que, mesmo as famílias das classes mais baixas tenham um ponto de partida mais alto do que as famílias de crianças negras que vivem em Portugal. Esse privilégio de 400 anos de colonização, de subjugação dos povos marcadamente de segregação racial ativa, e este privilégio mantém-se. E o racismo procura impedir a perda de privilégio.

RR – Essa questão do privilégio também é muito importante, porque muitas vezes confundimos aquilo que é o privilégio e aquilo que é o direito. Uma pessoa que detém o privilégio numa sociedade que é, numa sociedade racista, uma pessoa branca, ainda que possa não concordar com essa ideologia pode compactuar com ela. É tentar desconstruir com essa pessoa e ver se ela está disponível, também disposta, a desconstruir esta ideia do racismo e a abrir mais mão dos seus privilégios.

Como é que isso se faz na prática?

RR – Tem tudo a ver com a consciencialização. É preciso perceber que, efetivamente, toda a história colonial que já vem há mais de 400 anos, é algo que se arrasta até aos dias de hoje. Perguntar se esta pessoa ativamente, no seu dia-a-dia, faz o seu papel no sentido de mostrar à sociedade que esta ideologia é errada e não deve ser seguida. “O que é que eu faço no meu dia-a-dia?”

E já tiveram boas respostas?

BGM – Sim, um aspeto importantíssimo de desmontar o privilégio é exigir uma reconstrução da História dos países africanos e da História da África enquanto continente. Exigir que nos livros escolares de todos os miúdos, mesmo que eu seja branca e o meu filho seja branco, que a História de África seja contada de uma forma correta e que não se aceite que a História dos países africanos se inicie quando os colonizadores lá chegaram. Exigir isso é uma forma de desmontar o privilégio. Eu começo a preparar gerações mais jovens para perceberem que há culturas diferentes, que essas culturas são milenares e não é só a cultura europeia que é milenar e não é só a cultura europeia que é inovadora, não foi só a cultura europeia que chegou à tecnologia e houve culturas nos países africanos, nos países asiáticos, nos países da América que também foram colonizadas que têm histórias milenares tão inovadoras, tão avançadas quanto a história europeia, fazer justiça a essa história é uma forma de ser antirracista…

Portugal descolonizou os países que tinha colonizado, os países ficaram independentes, o racismo acabou e não se discute. Tornamo-nos todos pós-raciais com a descolonização. Não discutimos a escravatura, não discutimos a descolonização, não discutimos o racismo e passamos logo para um ponto em que são todos iguais. Isto é mentira, não existe. Isto tem que ser desmontado, nós temos que fazer uma discussão alargada, todos juntos, sobre escravatura, foi como tudo começou. O negócio, a economia, a riqueza que isso gerou para Portugal e para os outros países europeus, que puderam avançar imenso, é dinheiro que resulta da escravatura, da venda de pessoas, do rapto e do comércio de pessoas. É importante discutir isto e não dizer “Não tenho culpa”, claro que eu não tenho culpa, é evidente, isto aconteceu há 400 anos, mas eu tenho os privilégios, eu vivo numa sociedade estruturada, com estradas, com casas, com esgoto, com água canalizada, com Serviço Nacional de Saúde, com escola pública, com escolas para todos.

Como é que um negro português se situa hoje? Há uma rejeição da cultura portuguesa ou um negro português consegue abarcar aquilo que significa ser negro e incluir na sua cultura a cultura portuguesa? Este discurso parece que exclui a portugalidade dos negros portugueses.

BGM – Não. Como eu comecei por dizer, os meus pais nasceram numa colónia portuguesa em que os valores culturais de Portugal foram impostos. Foram impostos a todos, ou seja, para aceder à cidadania plena, havia o princípio do indigenato. A pessoa deixava de ser indígena se manifestasse ter adquirido características da cultura portuguesa. Os meus pais resultam desse processo, embora o tenham criticado e continuem a criticá-lo. Eu também resulto desse processo. Claro que a minha cultura é o fruto da educação que trago da minha família, dos valores que adquiri na escola, por exemplo, que nunca valorizaram aspetos da minha cultura. E isto sou eu. Agora, enquanto ativista antirracista, eu quero discutir o racismo, mas eu não quero discutir o racismo individual, eu não quero atacar as pessoas nem quero dizer às pessoas que elas são racistas e que são más.

RR – Nem discutir sobre o nosso ponto de vista, porque, efetivamente, existem várias perspetivas. Várias vivências, várias histórias de pessoas negras, as pessoas negras não são todas iguais. Cada pessoa tem a sua história, tem a sua trajetória, tem a sua classe social e tudo isto também é determinante. Os jovens afrodescendentes que vivem aqui em Portugal e podem simplesmente dizer que não, mas se não abarcam a cultura portuguesa muitas vezes também não abarcam a cultura africana, porque não têm qualquer ligação direta com os países de onde os seus pais são originários, e aí vem essa questão da perda da identidade: saber quem sou eu e qual é o meu papel aqui na sociedade portuguesa, se não me identifico como português e muitas vezes também não me deixam identificar como português e muitas vezes também sou eu que não me quero identificar como português… mas também não me identifico 100 % como um africano. Onde é que eu estou aqui neste limbo? É por isso que se vê muitos jovens também desesperançados que, efetivamente, sentem que não fazem parte da sociedade. Se formos averiguar, a maioria desses jovens vive nas zonas periféricas, vive em bairros sociais degradados.

BGM – São alvos de violência enorme, de violência policial.

RR – Exatamente, de violência social também, de violência escolar.

BGM – É o racismo institucional.

RR – É o racismo institucional, que é o racismo mais perigoso que existe, porque não é um racismo visível. O racismo de rua, em que a pessoa diz “vai para a tua terra” ou chama de “preto”, esse é um racismo com o qual se pode lidar diariamente apesar de doer, não é isso que vai afetar a vida da pessoa negra. O que vai afetar a vida da pessoa negra é o racismo institucional, que é quando me são vedados certos espaços sociais, políticos e económicos pela minha cor da pele e pela minha condição social. Esse tema do racismo é tabu.

Todas estas questões que estamos a falar referem-se à questão racial. Associação que estão a formar é uma Plataforma feminista de mulheres negras. Onde é que entra o feminismo aqui? As questões específicas, falou-me a Raquel logo no início da nossa conversa, relacionadas com as temáticas, mas como é que há esta passagem de “Eu sou negra” para “Eu sou feminista.”

RR – Feminista negra. (risos)

É mais importante ser feminista ou é mais importante ser negra?

RR – Eu penso que existe história já muito, muito, muito antiga desta divisão entre o que é o feminismo tradicional e o feminismo negro ou, neste caso, agora recentemente, o feminismo cigano ou o feminismo asiático. Porque mais uma vez, as ideologias mais fortes partem sempre duma visão euro centrista e, muitas vezes, o que nós sentimos, nós mulheres negras, é que não existe, não temos essa representatividade naquilo que nós chamamos de feminismo tradicional, feminismo universal. O feminismo universal, muitas vezes, abarca questões relacionadas como o género, somente com o género, não tem em conta outras opções que afetam mulheres de diferentes etnias, diferentes raças, diferentes classes sociais, até mesmo com uma orientação sexual diferente. E o que o feminismo negro fala é, efetivamente, sobre essa hierarquização de opressões, ou seja, eu como mulher negra eu não posso simplesmente designar-me como mulher sem também ter esta conotação de negritude, é uma coisa que faz parte de mim. Eu não posso simplesmente escolher lutar apenas pelas questões de género, e muitas vezes quando nós vamos, quando falamos com feministas brancas ou com feministas europeias…

Não se pode dizer brancas?

RR – Nós fazemos esta distinção. Feministas brancas e feministas negras, fazemos esta distinção, para nós a questão da branquitude e da negritude é algo que tem que ser falado abertamente para não estarmos como sempre a pôr paninhos quentes…

BGM – Eu uso, eu uso sempre, e isto foi uma coisa de ativista, eu uso o negro como norma. Porque a branquitude é a norma. Então, eu prefiro falar de feministas negras e feministas, porque quando eu falo das feministas são as feministas brancas que são a norma. Porque as feministas tradicionais…

RR – Mas seria bom também desconstruir esta norma.

BGM – Claro que sim, claro que sim. Por isso é que o racismo, por isso é que a discussão da negritude é tão importante. A discussão da negritude é a oposição clara à branquitude, partindo de uma premissa muito importante, que foi essa que eu aprendi com a idade, que é: “Eu sou negra.”. O eu ser negra encerra em si um conjunto de discriminações que eu nunca vou evitar, tem a ver com o meu corpo, é algo que eu não controlo e a forma como os outros percecionam o meu corpo é completamente independente de mim. Essa forma de percecionarem o meu corpo alicerça-se em duas coisas, não é? No racismo, no facto de eu ser negra, no facto de eu ser mulher. E não dá para hierarquizar, não dá para dizer que uma coisa aparece primeiro do que a outra…

BGM – Se calhar para mim enquanto indivíduo o feminismo surgiu primeiro porque eu não estava tão desperta para as questões da negritude. Agora que sou uma ativista antirracista sei perfeitamente que a negritude anda a par do meu género.

Pressupõe-se que há condições específicas de ser mulher negra e portanto, descriminações específicas? É daí que nasce a necessidade de um movimento de mulheres negras…

BGM – Sim.

Quais são as discriminações específicas?

BGM – A hipersexualização, por exemplo, das mulheres negras.

É maior do que no caso das mulheres brancas?

BGM – É. As mulheres negras são representadas como objetos sexuais ultra-apetecíveis, fáceis, sem… acríticas, não é? Passivas, que podem ser apropriadas com toda a liberdade, e isto tem a ver com a escravatura, mais uma vez.

RR – Não só a objetificação sexual, que acontece também muito no Brasil, mas se tivermos em conta a realidade portuguesa fala-se mais de uma objetificação ao nível laboral, força de trabalho. Existe essa objetificação sobre a mulher negra e africana em Portugal.

O que é a objetificação da força de trabalho?

RR – Trabalhando com mulheres que trabalham num serviço doméstico e no serviço de limpezas. Esta conotação ainda é mais forte no sentido em que, abarca não só a questão do ser mulher, mas também esta questão da negritude. A mulher negra, muitas vezes pela sua condição económica, vê-se obrigada a ocupar determinados postos de trabalho que, infelizmente, são considerados trabalhos de menor relevância. E quando se trabalha estas questões do serviço doméstico, percebe-se também que a relação laboral, está intrinsecamente ligada à questão racial.
Posso dar um exemplo muito claro: uma mulher negra que trabalhe nas limpezas, tem mil vezes mais probabilidades de ser chamada pela encarregada de “macaca” do que uma mulher branca, ou simplesmente de ser, de ser objetificada e ouvir “porque tu podes mais porque tens mais força.”.
No serviço doméstico que ainda é uma área muito mais complicada porque estamos a falar da esfera pessoal, de domicílios privados em que o Estado não tem poder para fazer um controlo, nós vemos casos de escravatura.

BGM – Aquele corpo enquanto um corpo que é um animal, que é uma máquina e estas ideias, quando olham para os nossos corpos, continuam a ver isso.

Podemos dizer que feminismo negro também sofre de opressão do feminismo branco?

RR – Sim.

BGM – O discurso de Sojourner [Truth], ‘Ain’t I a Woman’, que é precisamente o discurso fundacional do feminismo negro fala-nos disso. As mulheres negras sempre trabalharam, sempre tiveram a cargo a sustentação da família, portanto, são representadas como mulheres que aguentam tudo, que têm uma capacidade de sofrimento, de abnegação, de resistência enorme… são ideias muito enraizadas têm muito a ver com a escravatura.

RR – Na altura em que a mulher branca estava a lutar pelo direito ao voto, pelo direito a trabalhar fora de casa, havia desigualdade entre as mulheres brancas e as mulheres negras e era tão grande que naquela altura a mulher negra estava apenas a lutar para ser considerada um ser humano. E é muito importante nós percebermos isso e percebermos que, de facto, a luta das mulheres negras não se cinge somente às questões raciais e de género do homem para a mulher, mas da própria mulher para a mulher, ou seja, nós não temos a mesma igualdade, nem sequer temos a mesma igualdade com uma mulher caucasiana.

As mulheres negras também têm questões específicas de opressão por parte dos pares, ou seja, os homens negros, também oprimem as mulheres negras?

BGM – Eu penso que sim.

RR – Sim. A luta pelos direitos civis foram dominadas pelo homem negro e, mesmo tendo mulheres que fizeram parte do movimento e que estiveram na frente e na luta, estas mulheres com o desenrolar das grandes manifestações e dos grandes avanços e das conquistas, estas mulheres foram postas, foram colocadas para trás, ou seja, já não estavam na frente, muitas vezes estavam fechadas nos gabinetes organizando todo o serviço administrativo, fazendo cafés para que o homem negro tomasse a dianteira e falasse sobre essas questões raciais. Então, as mulheres negras sempre estiveram neste limbo. Nas feministas, no feminismo tradicional, não temos lugar porque, efetivamente, só se fala da questão de género, só se quer falar da questão de género. Nas questões raciais em que nós sentimos que podemos ter um espaço porque estamos a falar de questões raciais, estamos a ser renegadas para segundo plano porque supostamente não estamos aqui a falar de questões de género, estamos aqui a falar de questões raciais. Então, estamos aqui no limite, onde é que ficamos? Qual é o nosso lugar? Se, nas questões raciais não podemos falar sobre a questão de género, que é algo que – como a Beatriz diz – é algo que está, é intrínseco a nós, nós não podemos dissociar o ser mulher do ser negra, mas também no feminismo tradicional sentimos que não temos este lugar.

Estamos a falar das condições que levam ao aparecimento da Femafro, fizeram um diagnóstico sobre como é que estamos em Portugal atualmente relacionado com estas questões. Qual é o caminho para a frente? O que é que a Femafro se propõe fazer?

RR – Neste momento, já estamos oficializadas. Vamos no dia 30 de julho fazer a comemoração e a apresentação da Plataforma ao público, comemoração do Dia da Mulher Africana e, a partir daí, o que nós pretendemos, efetivamente é: formar uma plataforma que seja ampla, de espaço de participação a todas as mulheres negras, africanas e afrodescendentes em Portugal; trabalhar estas questões do serviço doméstico, quiçá formar um sindicato que, efetivamente, possa trabalhar esta questão do serviço doméstico e do serviço de limpezas de uma vertente, olhando especificamente para as questões que estão diretamente ligadas, relacionadas, com a mulher negra, trabalhar também esta questão da identidade não só da mulher, mas também das jovens e dos jovens. Vamos tentar conjuntamente com eles fazer esta construção do “Sou português, sou africano, não tenho que dissociar-me de nenhuma cultura, muito pelo contrário, se abarcar as duas, melhor ainda.” Queremos efetivamente trabalhar estas questões também relacionadas com o feminismo, reivindicar também o nosso espaço, porque também temos inúmeras reivindicações que gostaríamos que fossem atendidas por outras organizações feministas de mulheres aqui em Portugal.

Especificamente?

RR – Especificamente a UMAR, a Plataforma Portuguesa dos Direitos das Mulheres, já temos vários contactos com elas…

Mas querem reivindicar junto destas…

RR – Trabalhar em conjunto com elas.

Destas organizações, incluir na agenda feminista as questões relacionadas com o feminismo negro.

RR – As questões relacionadas…

BGM – O racismo negro…

RR – É muito engraçado, o ano passado, aliás, esta é década da mulher africana e é a década dos afrodescentes.

BGM – Sim, foi declarado pela UNESCO.

RR – E é muito interessante como nunca houve em Portugal nenhuma organização que representasse, efetivamente, a mulher negra na ONU. Por exemplo, no ano passado houve uma comissão onde estiveram várias organizações feministas negras que participaram nas convenções da ONU e em várias cimeiras e em várias palestras e não houve qualquer representação da mulher negra em Portugal nas esferas internacionais, ou seja, foi o GRAAL, que é o movimento feminista, foi a Plataforma Portuguesa dos Direitos das Mulheres, a Rede de Jovens para a Igualdade, mas não houve qualquer representação, efetivamente, da comunidade negra

Havia um espaço por preencher?

RR – Por preencher e seria também importante, porque a mulher negra, dependendo do país, e da cultura, e da sociedade onde está, ela passa por diversas dificuldades e diversas experiências que não são iguais entre si, por exemplo, uma mulher negra no Brasil não tem a mesma experiência, não tem a mesma visão do que é o feminismo negro e das questões raciais que uma mulher negra que está aqui em Portugal.

BGM – Mas o movimento negro no Brasil está muito mais avançado. Quer dizer, já conseguiram que fossem atribuídas quotas para as Universidade, há quotas para a representação em publicidade…

RR – Nos espaços públicos.

BGM – Precisamente, no espaço público, portanto, tem um avanço de combate e de conquista muito maior do que nós temos.

RR – Estamos a dar os primeiros passos.

Porque é que só há agora, considerando que há tantas mulheres negras portuguesas?

BGM – Na DJASS, queríamos partilhar com a população portuguesa em geral esta ideia da necessidade de discutir o que eu já referi, mas acima de tudo pretendemos dar voz aos negros, negros e negras. É muito importante que as pessoas reconheçam essa capacidade. Que reconheçam que os negros e as negras são cidadãos de pleno direito, são interlocutores tão válidos quanto qualquer outro interlocutor. Todos nós temos de desmontar nas nossas cabeças a associação mulher negra / empregada doméstica. Na escola onde eu trabalhava o ano passado, no final do dia, quando chegam as empregadas de limpeza é que há mulheres negras na escola, durante o dia, enquanto estamos a trabalhar e a dar aulas não há mulheres negras. Há um espaço vedado, há um território, que é um território exclusivo das mulheres negras e é um território de subalternidade, não é? De silêncio, de repressão…

RR – De invisibilidade.

BGM – De invisibilidade muito marcada.

Lisboa, 20/07/2016 - Líderes de plataformas feministas de afrodescentes. Beatriz Gomes Dias (DJASS) ; Raquel Rodrigues (Femafro) (Gerardo Santos / Global Imagens)
Beatriz Gomes Dias (DJASS) e Raquel Rodrigues, coordenadora da Femafro
(Gerardo Santos / Global Imagens)

Que formas de luta é que a Femafro vai ter?

RR – Nós queremos, acima de tudo, fazer uma luta ativa de terreno, chegarmos às pessoas, sairmos do espaço virtual, foi muito importante para que as pessoas tomassem conhecimento do projeto, mas, efetivamente, ir aos bairros, falar com estas jovens e com estas mulheres sobre as questões relacionadas com o racismo, xenofobia, serviço doméstico, de limpezas, falarmos também sobre questões de discriminação sexual, a violência doméstica, a mutilação genital feminina, um dos nossos objetivos primordiais é fazer um centro comunitário em que as mulheres do serviço doméstico que têm de se levantar às quatro, às cinco da manhã e não têm onde deixar os seus filhos, possam ter um espaço, para deixarem as suas crianças, um espaço que abra muito cedo…

E que lhes seja útil?

RR – E que lhes seja útil. Neste espaço queremos fazer toda esta construção de identidade dos jovens, que para nós é extremamente importante. Outra temática extremamente importante para nós, o serviço doméstico de limpezas é uma área que é muitoimportante para mim, porque é uma área em que tenho amigas e familiares a trabalhar e vejo as dificuldades e a forma como este sector de trabalho está a ser tão crucificado. A maioria das pessoas não sabe dos abusos que, efetivamente, as pessoas que trabalham neste sector sofrem. Queremos chamar as mulheres à participação, ou seja, formar com elas um sindicato onde elas tenham uma palavra e possam entrar nos sindicados, por exemplo, nós temos o STAD em que não há qualquer representação de uma grande fatia de mulheres que trabalham neste sector, que são as mulheres negras. Uma mulher disse-me há: “Nós servimos para pagar quotas, mas as decisões não passam por nós. Não nos dizem nada, nós apenas servimos como cobaias e existem, muitas vezes, acordos que são feitos fora do nosso conhecimento, e não sabemos em quem confiar.” Estas mulheres não confiam nos sindicatos que existem atualmente e porque é que não confiam? Porque sentem também que não têm representatividade dentro dele. E que tal criar um próprio sindicado, uma comissão, de trabalhadoras que, efetivamente, vá à luta?

O código de trabalho na área de serviços doméstico já não é alterado há mais de 20 anos.
É uma realidade que parece irreal, que há mais de 20 anos as mulheres que trabalham no serviço doméstico não têm qualquer proteção. Estas mulheres não têm qualquer proteção a nível da ACT, não têm qualquer proteção a nível do tribunal, não têm qualquer proteção, muitas vezes, a nível judicial, não têm qualquer proteção policial, muitas destas mulheres sofrem agressões, muitas destas mulheres dormem em despensas, muitas destas mulheres os patrões nem sequer lhes deixam tomar banho, muitas destas mulheres nem sequer têm direito a abrir a porta do frigorífico para retirar o que quer que seja.

Comparativamente aos outros sectores laborais é quase como se fosse um sector secundário, é quase como se não fosse um sector laboral. É como se visse o serviço doméstico como se via antigamente, em que se tinha a criada, anteriormente a escrava, depois passou para criada efetivamente, e, que, no fundo, isto é um serviço como qualquer outro. Eu vou a casa de uma pessoa e vou fazer o serviço doméstico, eu estou a trabalhar para esta pessoa, logo, eu tenho direito, por exemplo, aos descontos para a Segurança Social, nós vemos entidades patronais que não fazem contratos de trabalho e nem pagam os descontos na segurança social e as empregadas passam meses e anos a pedir um contrato de trabalho, a pedir os descontos, e o Estado não tem forma, de obrigar a entidade patronal, mesmo sabendo que esta entidade patronal tem um empregado em casa, não tem forma de obrigar este patrão, a fazer um contrato de trabalho e a pagar descontos para a sua empregada. E a forma como isto se passa também se repercute na própria autoestima da mulher.

BGM – Uma das reivindicações que temos também, tem a ver com a questão da representação. Muitas vezes as filhas de mulheres que trabalham no serviço doméstico, quando a escola não se apresenta como uma alternativa válida, a elas começam também a trabalhar enquanto empregadas domésticas. Isso acontece em quase todas as classes, quer dizer, se eu tenho um pai que é economista, isso serve-me de modelo para a escolha de carreira. Portanto, é importante também nós conseguirmos trazer às jovens negras outros modelos que permitam…

RR – Outros percursos.

BGM – Sim, escolher outros percursos. Não estou a minimizar o trabalho das empregadas domésticas, que eu acho que todas nós nos alicerçamos nos ombros delas. Porque muitas delas contribuíram imenso para que os filhos pudessem ter uma vida mais, com mais recursos, uma vida mais bem-sucedida, com imenso esforço e trabalham inúmeras horas, portanto, nós estamos todos, mesmo beneficiamos imenso do esforço que estas mulheres fazem, mas, no entanto, sabemos que é importante também trazer outras representações e outros modelos, para poder criar alternativas e isso é um aspeto fundamental.