Isabel Neves: “As mulheres ainda têm medo de assumir o palco”

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É uma mulher dos sete ofícios. Advogada, empresária, empreendedora, presidente do Lisbon Business Angels Club e um dos “tubarões” da segunda edição do ‘Shark Tank’, que se estreia em breve na SIC. No meio de uma agenda profissional (mais do que) preenchida, têm ainda tempo para desempenhar o papel de mãe, o de filha e, claro, o de mulher. Começou a trabalhar quando tinha 16 anos, como office girl e aos 23 anos terminou o curso de Direito. De uma forma “genérica”, revela que o facto de ser mulher não tem sido um entrave na sua carreira, mas tem a consciência de que a discriminação ainda existe.

Na segunda edição do programa ‘Shark Tank – Portugal’, vai integrar o lote dos ‘tubarões’. Como é que surge o convite para este projeto?

Surge do corolário de um percurso de vida, porque na verdade já sou um ‘shark’ na vida real. Há mais de 20 anos. Em 1979, fiz parte do movimento de associativismo empresarial feminino, através da Associação Portuguesa de Mulheres Empresárias. Em 1995, tornei-me vice-presidente, cargo que ocupei até 2013. Foram muitos anos. E uma das principais funções foi precisamente a de receber mulheres com ideias e ajudá-las a transformar essas mesmas ideias em negócios reais. Além disso, fui coordenadora de vários projetos de promoção do empreendedorismo feminino.

O programa já está gravado. O que achou dos concorrentes? Encontrou boas ideias?

Encontrei boas ideias. Há de facto um potencial empreendedor enorme em Portugal, que faz com que num país tão pequeno haja ideias suficientes para fazer duas edições do ‘Shark Tank’. O que as pessoas têm de pensar é que uma boa ideia não é necessariamente um bom negócio.

Explique-nos…

Podemos ter uma boa ideia, mas temos de pensar num mercado para ela. Temos de pensar as nossas ideias com escalabilidade, elas têm de ter capacidade de se reproduzir aqui e noutro lado. Se não tiver mercado, não consigo vender. Se não consigo vender, não consigo financiador. Outro problema é que as pessoas tendem a valorizar muito a sua ideia, e vêm com valores completamente bizarros, tendo em conta que ainda não tiveram vendas. Eu posso ter uma boa ideia, mas se não consegui transformá-la num projeto empresarial, se não consegui fazer vendas, não vai valer nada. Não posso encher a boca de números se ainda não consegui sequer produzir o protótipo.

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Mas temos ou não um país de empreendedores?

Nós, os portugueses, temos um problema, que é genético, e que tem que ver com a nossa cultura judaico-cristã. Temos pouca apetência pelo risco, temos muito medo de falhar. Falhamos e toda a gente nos cai em cima: ‘Falhaste, tens de ser penalizado’. Isto tem de ser contrariado. Os americanos pensam de maneira completamente diferente, razão pela qual são muito mais empreendedores. O ciclo do falhar e recomeçar é banal e entendido como tal pela sociedade. Aqui ainda nos penalizamos muito pelo fracasso, o estigma da insolvência é muito forte. É obvio que as pessoas têm de ter balizas, não podemos andar a gastar o dinheiro dos outros e a falhar constantemente. Mas não podemos penalizar quem tem ideias e falhou. Os bons investidores nos EUA dizem que preferem investir em pessoas que já falharam duas, três ou quatro vezes, porque acham que as pessoas já aprenderam com esses erros todos.

Voltando à sua carreira. Foi a primeira mulher em Portugal a a construir um clube Business Angels. Ser pioneira é um motivo de orgulho ou relembra-a de que ainda existe um longo caminho a trilhar no que toca à igualdade de género?

Para mim é um motivo de orgulho. Há um longo trabalho a fazer, mas aqui já nem é uma questão de género, é uma questão do que é o conceito de Business Angels. Embora já se oiça falar disto desde os finais da década de 90, só está a ganhar força e expressão nos últimos anos, designadamente com o aparecimento de programas como o ‘Shark Tank’ ou o ‘Dragon’s Den’.

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Isabel Neves tem 54 anos e criou várias empresas ao longo da sua carreira

Existem poucas mulheres investidoras em Portugal?

Existem. E tenho muito orgulho de o meu clube ter uma participação maior de mulheres do que os outros clubes que conheço. Os homens têm sempre a mania de investir em projetos muito grandes, enquanto as mulheres têm mais sensibilidade para apoiar projetos mais pequenos. Mesmo sabendo que não vão ter um retorno imediato, ou que não vai ser tão rápido. Em setores como o comércio ou os serviços, em que o retorno pode ser mais tardio, do que noutro tipo de projetos.

Quando é que sentiu que tinha esse lado empreendedor?

Desde sempre. Comecei a trabalhar e a ser autónoma aos 16 anos. Ganhava o meu dinheiro, pagava as minhas despesas e os meus estudos. Dei explicações e fiz traduções de italiano para empresas. Depois comecei a trabalhar nas empresas do meu pai, mas entrei como office girl e não como a filha do patrão. Tive sempre de demonstrar aquilo que valia. E fiz isso até aos 23 anos, quando acabei o meu curso de Direito. Nessa altura, dei o primeiro grande desgosto ao meu pai porque ele pensava que eu ia assumir a liderança das empresas [na área alimentar], mas eu disse para mim mesma: “Não. Tirei um curso de Direito e quero mostrar a mim própria aquilo que valho”. Não tendo ninguém na família nessa área, enveredei por ser advogada. Completamente só.

E como é que se torna empresária?

O bichinho das empresas estava cá e rapidamente encontrei uma saída na Associação Portuguesa de Mulheres Empresárias. Não só o bichinho pelas empresas estava cá como o próprio associativismo e empreendedorismo. Neste percurso de vida, além de ser advogada por conta própria e de ter constituído a minha própria associação de advogados, também constituí várias empresas, de consultoria, ligadas ao turismo, etc. E nunca deixei de ser sócia do meu pai até 2014, altura em que vendemos os negócios de família.

É da opinião que já se nasce com uma veia empreendedora, ou é algo que vai sendo trabalhado?

Vai sendo trabalhado, mas há características que têm de nascer connosco. Esta apetência pelo risco tem de ser uma coisa inata. Uma pessoa pode ser uma ótima empreendedora e nunca ser empresária. Mas um empresário tem sempre de ser empreendedor. O que é que distingue um do outro? Um empreendedor é alguém dinâmico, com ideias próprias, iniciativa, e que sabe trabalhar em grupo ou sozinho. Eu posso ter ideias fantásticas, mas se não conseguir assumir o risco de que as coisas podem correr mal e que para realizar aquele projeto tenho de angariar os meios necessários, nunca vou poder realizar esse projeto. E muitas vezes para angariar esses meios é preciso correr riscos. Nem todas as pessoas estão preparadas para deixar a segurança de um ordenado, de hipotecar a casa de ou de vender tudo para abraçar um projeto.

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Aos 16 anos, deu explicações e fez traduções para pagar as despesas e os estudos

Como é que gere o equilíbrio entre uma vida profissional tão intensa com a sua vida pessoal?

Com muita ajuda! A natureza só me deu um filho. Se tivesse tido mais filhos talvez tivesse sido mais complicado. Sempre tive uns pais fabulosos que me ajudaram imenso. Nenhuma mulher consegue conciliar a vida pessoal, familiar e profissional se não tiver uma boa retaguarda em termos familiares. Fiz a minha vida profissional a pulso. Optei por uma vida profissional diferente daquilo que os meus pais estavam à espera e não conhecia ninguém nesta área. Tudo aquilo que consegui até hoje foi feito por mim. Na minha vida profissional andei de lés-a-lés e consegui fazer tudo. Divorciei-me numa altura complicada, em que o meu filho tinha onze anos. Criei-o sozinha, não tenho problema nenhum em dizê-lo, e isso exigiu de mim um grande equilíbrio e uma grande organização.

A ausência dessa retaguarda familiar pode impedir algumas mulheres de terem uma carreira mais fulgurante?

Sim. Mas a culpa às vezes também é muito das mulheres. Às vezes esquivamo-nos nos filhos para não assumirmos o palco. As mulheres ainda têm medo de assumir o palco. Mas isso sente-se cada vez menos, felizmente. Não obstante, reconheço que quando não se tem um bom apoio familiar é complicado. Porque as mulheres não têm só os filhos. Estou a atingir uma idade em que verifico que temos duas pontas: os vintes e os trintas, em que estamos muito preocupadas em cuidar dos filhos e depois os quarentas, cinquentas e sessentas, em que estamos preocupadas em cuidar dos pais. E isto é constrangedor porque limita-nos muito. Temos empregos em que temos de dar 500% e cargas horárias muito longas. As mulheres portuguesas há muito que são das que mais trabalham em termos de jornada. No norte da Europa, a maior parte das mulheres não trabalha a tempo inteiro. Temos uma organização do espaço muito má, que levou a que as pessoas fossem viver para as periferias das cidades em vez de viver dentro, o que faz com que gastem muito tempo no trajeto. Se ligarmos estas coisas todas, de facto é muito difícil.

Alguma vez sentiu que o facto de ser mulher foi um entrave na sua carreira?

Genericamente, nunca senti. Mas isso tem que ver com várias coisas. Tem que ver com o facto de ter começado a trabalhar aos 16 anos e ter assumido uma liderança que me faz impor. Já nessa idade trabalhava num meio dominado por homens, que sempre me olharam de igual para igual e não de cima para baixo. Sabia impor-me e guardar a distância mesmo sendo mulher e jovem. Isso tem muito que ver com a postura que nós, mulheres, adotamos e com a imagem que queremos transmitir. Tudo isso permitiu-me adquirir uma experiência que foi muito útil ao longo do tempo.

E à sua volta? Assistiu a casos de discriminação?

Nota-se, sobretudo quando saímos dos centros urbanos para outras localidades. E não é preciso andar muito, basta andar 50 quilómetros de Lisboa ou do Porto para o interior e sentimos uma diferença muito grande nesse tratamento. Achamos que não, mas os números de violência doméstica continuam a ser preponderantes sobre as mulheres e mostram-nos que isso [desigualdade de géneros] ainda existe, assim como as diferenças salariais. São mais subtis em algumas situações, mas existem diferenças de tratamento. Eu, por uma questão de maneira de ser, não senti muito essa diferença. Não senti enquanto profissional. No entanto, devo dizer que houve dois ou três episódios, que eu resolvi da melhor maneira, em que senti a questão da descriminação sexual. Não em termos profissionais, mas na forma como me olharam como um objeto sexual em vez de me olharem como uma profissional. Mas foram questões pontuais, às quais não dou importância.