Mutilação Genital Feminina: Uma tradição e um negócio que tardam em desaparecer

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Criança africana (Sura Nualpradid / Shutterstock.com)

Rosa Gomes tem 58 anos e vários deles passados a trabalhar como enfermeira na Guiné-Bissau, país de onde é natural e que se destaca no mapa global da prática de Mutilação Genital Feminina (MGF).

Enfermeira-chefe em quase todos os hospitais por onde passou, por problemas de saúde – move-se com alguma dificuldade e a ajuda de uma muleta – não exerce atualmente a profissão. Isso não a impede, contudo, de continuar empenhada em lutar contra este flagelo e tenta estar, sempre que possível, presente onde o tema é discutido, como aconteceu esta segunda-feira no Centro Olga Cadaval, em Sintra, no 2º. Encontro Regional para a Intervenção Integrada pelo Fim da Mutilação Genital Feminina.

“Especializei-me na pediatria, mas sempre trabalhei na Ginecologia e na Obstetrícia”, começou por contar ao Delas.pt, à margem do evento, cuja realização coincidiu com o Dia Internacional de Luta contra a MGF. Foram, por isso, vários os casos de mulheres excisadas, através da prática tradicional do fanado, que lhe passaram pelas mãos, ao longo dos anos.

“Era nova quando comecei e fui nomeada para ser responsável dos hospitais em Mansoa e Bissau. Na altura [a MGF] era uma prática que nos diziam que era normal na religião muçulmana. Só não era normal se afetasse as cristãs”, recorda.

Rosa Gomes explica que, em função dos casamentos inter-religiosos – frequentes na Guiné-Bissau – e da conversão das esposas cristãs ao islamismo dos maridos, algumas mulheres nessa condição acabam por se submeter àquela prática.

Uma marca para a vida
A Mutilação Genital Feminina, que consiste no corte parcial ou total da parte externa dos orgãos genitais da mulher, é, sobretudo, realizada ainda durante a infância ou adolescência, mas o seu impacto prolonga-se no tempo, fazendo sentir-se nos momentos mais importantes da sua vida, como nas relações afetivas e sexuais ou na maternidade, como explica Rosa Gomes:

“Depois de ser excisada pela primeira vez é-se sempre excisada. Quando a mulher der à luz, o tecido rasga à mínima coisa, e nós precisamos de suturar a zona, os obstetras têm de intervir sempre, mas mesmo assim não fica curado. Cada parto é uma nova excisão. É um sofrimento. E a mulher fica traumatizada para o resto da vida.”

A enfermeira, vê, por isso, na MGF não apenas como uma tradição nefasta e violadora dos direitos das mulheres, mas também como um problema de saúde pública. Por isso defende que os serviços de saúde têm de se articular e que é necessário “exercer mais pressão na saúde publica na Guiné, se for preciso em Portugal também”.

A excisão aliada a outras “tradições nefastas”
A enfermeira recorda ainda que por detrás da MGF estão, muitas vezes, práticas que, à luz das leis europeias seriam consideradas pedofilia e que envolvem casamentos precoces, de meninas menores de idade com homens vários anos mais velhos, alguns na casa dos 60 anos.

“Às vezes a família arranja o casamento até com o colega do pai da menina, que aos 12 anos já se vai casar. Mas antes tem de ser excisada para lhe tirar a libido e evitar a poligamia ou relações extraconjugais”

Segundo a Organização Mundial de Saúde, cerca de 45% das mulheres e raparigas da Guiné-Bissau terão sido submetidas à excisão. A MGF é crime no país desde 2011, punível com uma pena que pode ir até nove anos de prisão.

Dados da UNICEF publicados recentemente indicam que a prática da excisão tem vindo a diminuir no país, mas ainda persistem casos em que os familiares das crianças se escondem para realizar o ritual.

A excisão como negócio
Apesar de ser ilegal e de até já terem existido detenções por causa dela, a MGF continua a ser praticada na Guiné, sobretudo em zonas mais rurais, de difícil acesso ou esquecidas nas prioridades políticas.

Em grande parte, segundo diz Rosa Gomes, porque há quem tire daí o seu rendimento.

“As pessoas que fazem a excisão [o corte] ganham com o negócio. Não fazem mais nada senão isso. É como se se fosse fazer um parto, é remunerado. Por isso, é que não querem deixar a prática”, defende.

No debate horas antes, a enfermeira também já tinha falado desta questão e da necessidade de se olhar para as dificuldades financeiras e de vida da população guineense que, indiretamente, também podem dificultar o combate à MGF.


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Três associações premiadas pela luta contra a mutilação genital feminina


Uma luta global e intercomunitária
As autoridades guineenses estão cientes de que a lei não erradicou a prática do país. Têm sido várias as ações levadas a cabo para combater mais eficazmente o flagelo, como a campanha realizada, em setembro de 2016, no aeroporto internacional de Bissau, que visou sobretudo as comunidades emigrantes de guineenses.

As férias escolares nos países de acolhimento são frequentemente aproveitadas pelos familiares defensores da tradição para levarem as meninas à Guiné com o intuito de lhes ser feita a excisão, sobretudo desde que aqueles criminalizaram a prática, como é o caso de Portugal. Evitar que crianças e meninas venham a ser submetidas a essa prática é o principal desafio.

Aqui a MGF está tipificada como um crime de ofensa à integridade física grave, prevendo uma pena que pode ir de entre dois a dez anos de prisão. Dados recentes apontam para que mais de seis mil mulheres, com idade superior a 15 anos, tenham sido submetidas a alguma forma de mutilação genital, em Portugal. A maioria pertence à comunidade imigrante da Guiné-Bissau.

Trabalhar em rede
A necessidade de articulação entre países e entre associações no terreno e entidades de saúde e judiciais e escolas foi por isso uma das conclusões a sair do encontro de hoje. Nele participaram diversas associações e ONG que trabalham sobre esta temática e com as comunidades onde ela ainda se realiza, assim como autarquias e entidades públicas, entre as quais a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) da Amadora, o Agrupamento de Escolas Daniel Sampaio, de Almada, o Agrupamento de Centros de Saúde de Cascais e agentes da PSP.

Se, por um lado, houve quem falasse das dificuldades em chegar às comunidades imigrantes em Portugal e sensibilizá-las e persuadi-las contra a MGF – por ser visto como uma intromissão de fora, pelas múltiplas etnias e dialetos, pelos costumes, pela tradição religiosa ou pelo patriarcado –, por outro, também houve quem lembrasse que por mais informação que se possa obter nos países de acolhimento, no regresso ao país de origem os entraves permanecem.

“Há pessoas que estão aqui e são informadas, mas quando saem daqui, saem diretamente para as tabankas”, disse uma enfermeira guineense que estava na plateia, lembrando que o país é mais que a sua capital, Bissau, e que há aldeias onde ninguém chega.

Um combate moroso e complexo

Às diferentes comunidades existentes na própria Guiné, juntam-se preocupações políticas com a perda de votos que combater uma tradição secular pode representar ou o receio de desrespeitar os mais velhos contestando as suas tradições. Tudo isso num país que se debate com graves dificuldades económicas e extrema pobreza.

Com a criminalização da MGF na Guiné-Bissau o assunto deixou de ser tabu. É falado nos meios de comunicação social, em mesquitas e a lei já produziu condenações. Falta um maior engajamento dos homens no combate à prática, consideram alguns ativistas, apostar mais na educação nas escolas, referem outros, e ter em mente que esta luta apesar de “complicada”, não é impossível. É um “processo”, que não pode voltar atrás.

Como salientou Rosa Gomes “trabalhamos muito para que a mulher volte a ser mulher, porque [depois da excisão ] não é fácil”.

 

Imagem de destaque: Sura Nualpradid / Shutterstock.com