“Na piscina não tens de deitar ninguém abaixo para teres sucesso, tem tudo a ver contigo e com a tua preparação”

Em 2008, nos Jogos Paralímpicos de Pequim, Joana Calado tinha apenas 15 anos e foi a benjamim da comitiva portuguesa. Na altura, conseguiu igualar o recorde nacional de natação adaptada, mas no final da prova decidiu abandonar das competições. Assim que chegou a Portugal fez as malas e foi para Inglaterra estudar Ciências de Computadores. Hoje trabalha na Cisco Systems, uma das mais conceituadas multinacionais de tecnologia do mundo.

Há poucos meses decidiu regressar à competição. Sem treinador, fez o seu próprio plano de treino. Participou no Europeu de Natação na Madeira e não só quebrou o recorde nacional – era de 1 minuto e 28 segundos e Joana conseguiu 1,25 – como se qualificou para o Rio2016.


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No Reino Unido treina com atletas britânicos. Paralímpicos e olímpicos, lado a lado. Não há diferenças nem pena. Para Joana Calado, o país que escolheu para viver “é quase uma utopia de integração total”, bem diferente de Portugal, onde sente sempre que está “num mundo diferente”. Lá não lhe “dão abébias”. Nas pistas das piscinas dos Jogos Paralímpicos também não, mas para Joana o céu é o limite e não há impossíveis.

O que aconteceu ao seu braço? Foi um acidente ou nasceu assim?

No desporto adaptado há pessoas que têm acidentes e outras em que o problema é congénito. No meu caso é congénito, nunca vivi de outra forma. Não podes sentir falta daquilo que nunca tiveste. Sempre vi isso como uma vantagem e não como uma desvantagem.

Alguma vez se sentiu descriminada na escola?

A atitude que tens perante a tua diferença depois transfere-se para aquilo que as pessoas sentem em relação a ti e eu tenho sentido isso ao longo da minha vida em diferentes áreas. Basta tu encarares com normalidade que os outros esquecem e hoje eu passo dias em que nem me lembro que tenho uma deficiência, nem me defino dessa forma. Às vezes só quando alguém na rua me vem perguntar o que me aconteceu ao braço é que me lembro e há tanta gente na minha vida que também se esquece que não tenho um braço porque faço muita coisa. Por isso, não considero que seja um fator importante na minha vida e nunca deixei que me limitasse as oportunidades que tenho. Quando me limita dá-me mais vontade de aceitar o desafio. Agora, por exemplo, comecei a fazer kitesurf e o pessoal nem queria acreditar.

Como começou a aventura na natação?

Sempre vivi em Cascais e quando era miúda o meu pai adorava levar-me para alto mar. Não tive grande escolha. Ele atirava-me lá para dentro e eu tinha de me amanhar. O meu pai sempre foi muito ligado ao desporto e sempre quis que eu praticasse muitas modalidades para me desenvolver. Pratiquei futebol, karaté e natação muitos anos. Em 2004, quando os atletas vieram dos Jogos, o meu pai viu uma atleta da altura, que se chama Leila Marques, na televisão, no programa do [Manuel Luís] Goucha, e pensou que talvez fosse engraçado eu entrar para o mundo da natação adaptada e conhecer uma pessoa que tinha sucesso não só na natação mas também a nível profissional, porque ela estava a tirar medicina na altura. Queria que eu me inspirasse dessa forma, ter bons modelos na minha vida. Na altura conheci a Leila através do treinador dela, que era o Carlos Mota, atual treinador da nossa Seleção, e depois de meia hora de conversa já eu estava dentro de água a fazer umas piscinas. A partir daí tem sido sempre a aumentar o número de treinos, a atingir diferentes objetivos.

Já não é a primeira vez que participa nos Jogos Paralímpicos…

Em 2006 fiquei fora do Mundial por umas centésimas. Na altura tinha 13 anos e foi muito difícil mentalmente, mas foi bom porque passados dois meses progredi tanto que fiz marcas a nível mundial e em 2008 consegui qualificar-me para os Jogos com 15 anos. Fiquei em quinto lugar, talvez uma das melhores marcas da natação adaptada portuguesa na altura. Depois dos Jogos decidi enfrentar outro desafio e reformei-me com 16 anos. Como tinha feito o 12.º ano, peguei nas malas e fui para Inglaterra estudar.

Que curso está a tirar em Inglaterra?

Fiz dois anos em Ciências de Materiais Biomédicos com Engenharia e Tecidos, em que estudamos prédios, aviões e as suas propriedades e aprendes a fazer sangue artificial, tendões à base de fibra de carbono e esse tipo de coisas. Passados dois anos de curso decidi que, apesar de gostar muito daquela área, estava a adorar fazer programação. A vida é muito curta para fazeres algo só por fazeres e mudei para Ciências de Computadores. Fiz agora uma pausa para me focar nos Jogos e vou acabar o último ano.

Há algum estilo de natação que o problema no braço lhe impeça de praticar?

A natação, de todos os desportos paralímpicos, é talvez aquele que tem menos barreiras, ou seja, para mim é o desporto mais competitivo a nível paralímpico porque és só tu e a água. No atletismo são necessárias cadeiras de rodas ou próteses. Na natação não.

Quais foram as suas maiores conquistas na modalidade?

Ir aos Jogos com 15 anos, por causa do salto que dei depois de em 2006 ter faltado ao Mundial por centésimas. É muito difícil a nível mental conseguires superar isso. Sem ser os meus pais, não tinha mais ninguém – mais nenhuma rede de apoio. Conseguir levantar-me foi muito importante.

Depois dos Jogos de Pequim2008 esteve oito anos afastada da competição…

Acho que este ano é o melhor da minha carreira. Já bati a minha marca pessoal antes de ir aos Jogos. No ano passado estive a trabalhar em Londres um ano, num trabalho típico de corporate, ao computador. E foi quando estava ao computador que vi que Portugal ia acolher a maior competição paralímpica do mundo, o Europeu na Madeira. Sentia-me um pouco em forma e decidi reunir todo o pessoal à minha volta que estava dentro do desporto para aprender com outras modalidades e ser eu a gerir o meu programa de treino. É um pouco diferente porque no desporto de alta competição tens um treinador e fazes o que o treinador diz. É como numa empresa, podes ter um patrão ou ser a tua própria patroa e usares os recursos à tua volta para tomares boas decisões para avançares na tua carreira. Foi isso que fiz. Pensei: tenho um ano. Vou usar tudo o que aprendi a nível académico e de empresa. Transformar isso e levar para o desporto.

Estava numa empresa de tecnologia e nessa área o que está na berra hoje não está amanhã, tens de mudar muito rápido e usei esse tipo de ideias no desporto. Comecei a quantificar muito o desporto, quase como se fosse uma gestão de projeto com timelines. De cada vez que me atirava à água, a cada treino, tinha de haver um melhoramento, nem que fosse a nível da distância a que saía da parede, número de braçadas ou batimento cardíaco. E foi assim.

Agora está uma grande equipa por trás de mim e o Rui [Gama, treinador de natação do Sporting] é uma das peças. Não só consegui o meu objetivo de ir à Madeira da minha forma, com o meu programa, como consegui qualificar-me para os Jogos, o que foi brutal para mim porque não estava nos meus planos. Em Pequim eu sonhava com a marca de 1 minuto e 28 que era o que a Leila, a nossa melhor nadadora, fazia na altura. Se ela conseguiu, eu também tinha de conseguir e fiz 1,28 nos Jogos. Nunca acreditei que fosse possível fazer 1,28 outra vez. Cheguei à Madeira e fiz 1,25. Às vezes tens de ver outros a conseguir fazer para tu também conseguires. Vi muito isso no ginásio. Os bisontes todos tentavam levantar 200 quilos. Ninguém conseguia. Um dia um gajo conseguiu e no dia seguinte conseguiram todos. O poder da mente é muito importante e há muitas histórias dessas. Agora nos Jogos tenho muitas adversárias a fazer 1,22 e 1,23. Se elas conseguem, eu tenho de conseguir. Em todos os desportos em que lutas contra o relógio nunca podes ter objetivos baseados em tempo porque o tempo é uma consequência daquilo que fazes na piscina, nunca podes controlar e o lugar onde ficas muito menos. Quando nadei na Madeira houve uma comentadora online que disse uma frase brutal: “Se tens uma pista tens uma oportunidade.” Isso marcou-me imenso porque é a verdade. Nós falamos em perspetivas de medalhas e muitos dos atletas têm-se virado contra os media por só falarem em medalhas. Não tem nada a ver com isso, tem a ver com oportunidade. Se tens o treino, a preparação, a oportunidade e um bocadinho de sorte, tudo pode acontecer.

Como reagiu quando soube que se tinha qualificado para os Jogos?

Vir quase do nada para competir a nível de elite é levar uma grande porrada. Só olhando para as fotos que me tiraram na Madeira é que se percebe aquilo que eu sentia. Foi muito especial ter conseguido aquela qualificação em frente aos meus pais e a amigos que vieram de propósito de Inglaterra a Portugal. Tive uma claque brutal. Numa prova acolhida pelo meu país fiz a minha melhor marca pessoal. Isso para mim foi o auge da minha carreira até agora e espero que o Rio seja uma continuidade.

Como é que os seus pais e amigos reagiram?

Os meus pais, quando lhes contei no ano passado que ia voltar para a natação, que ia à Madeira e que ia bater o meu recorde pessoal disseram que eu era maluca, para estar quieta porque já não praticava há oito anos. Tive muita sorte e boas condições.

Conhece alguma das adversárias com quem vai competir?

Em Inglaterra treino na sede dos paralímpicos, em Manchester, e a equipa inglesa treina lá a tempo inteiro. Alguns deles treinam com a nossa equipa no piso de cima, ou seja, vejo a minha adversária quase todos os dias. Somos amigas. Na piscina não tens de deitar ninguém abaixo para teres sucesso, tem tudo a ver contigo e com a tua preparação. O resto é relativo. Por isso, fora da piscina, ajudamo-nos umas às outras a pôr a touca e os óculos, temos bons momentos na câmara de chamada. Depois na piscina ganha quem estiver melhor preparada naquela altura. Isso é bom.

O que achou da participação portuguesa nos Jogos Olímpicos?

Admito que quando vejo os Jogos Olímpicos gosto de olhar, como qualquer espectador, para atletas como o Bolt e o Phelps. É bom apoiar a equipa portuguesa, mas não olho muito para os resultados porque o meu maior orgulho é termos lá representação. Já fico orgulhosa por ter lá atletas, sou um bocado ingénua nesse sentido. Tive muito orgulho no Alexis Santos, o nosso atleta do Sporting que ficou em 12.º lugar do mundo. É brutal.

Os portugueses têm noção disso?

Não. Ganhar uma medalha pode ser uma questão de centésimas. Na natação há o caso brutal de um campeão mundial e olímpico não se ter conseguido qualificar para os Jogos. Alguém ser 12.º no mundo numa prova em que os atletas ficam separados por um ou dois segundos é motivo de orgulho.

Isso deixa-vos revoltados?

O que me fez muita impressão como espectadora dos Jogos Olímpicos foi Portugal ganhar um sexto lugar na canoagem e o título das notícias ser: “Portugal falha medalhas.” Está errado, Portugal não falha medalhas, Portugal fica em quinto lugar, é motivo de celebração. Podemos falar da falta de condições, mas não concordo muito com isso porque treino em Inglaterra e consigo comparar. Lá temos uma piscina partida. Tenho mais condições atualmente em Portugal do que tenho em Inglaterra. Por causa da minha realidade na natação, não concordo. Mas tirando isso, acho que as notícias têm de transmitir uma mensagem mais positiva e os nossos atletas deviam aparecer mais nos media. O pessoal sabe quem é o Fernando Pimenta e o Emanuel Silva, mas será que conhecem as caras? Era bom celebrar um bocadinho mais. Tenho muito orgulho por um país tão pequenino ter resultados brutais e consistentes no judo ao longo dos últimos anos, por termos uma equipa brutal de ténis de mesa, no taekwondo, na vela o Gustavo Lima e o João Rodrigues que teve sete vezes nos Jogos Olímpicos, no atletismo, de onde vieram todas as nossas medalhas olímpicas até agora, e na natação o 12.º lugar do Alexis também foi brutal. Temos tanta qualidade para um país tão pequenino. Gostava que as pessoas conhecessem mais isso e se orgulhassem. Sei que só nos lembramos dos atletas de quatro em quatro anos. Às vezes é difícil sentires entusiasmo se não vês entusiasmo à tua volta, ou seja, se eu visse mais ténis de mesa na televisão, se os atletas fossem mais aos programas da tarde e mais falados, até acompanhava, porque tens de ganhar aquela afinidade com o atleta. Por isso, não se pode culpar sempre o povo pela ignorância porque às vezes tem a ver com os meios de comunicação também. Os ingleses podem não ter sol, mas têm uma boa atitude perante o desporto. Acompanhei os ingleses no Facebook e eles celebraram tanto um terceiro como um quinto lugar. Nós não e isso desiludiu-me um bocado porque as pessoas não têm noção do que é preciso fazer para aquele nível, do que tens de abdicar tanto na natação como na canoagem. Os canoístas provavelmente passam fins de semana em águas a cinco graus ou menos, talvez não tenham férias ou nem comem sushi. Um monte de condicionantes para poderem representar o país. Há quem trabalhe a tempo inteiro, pague do próprio bolso e treine todos os dias para ir representar Portugal aos mundiais. Pedem à federação para lhes dar umas t-shirts e até isso têm de pagar.

Os apoios monetários que recebe são suficientes?

Só consegui voltar este ano à natação porque já tinha outras componentes da minha vida estabilizadas, a nível emocional, estudos e emprego. Muito do investimento fui eu que fiz através do emprego que tenho. Temos uma bolsa que para mim tem sido ótima para me ajudar a pagar o equipamento, todos os custos associados à natação e de vez em quando os voos para cá e para lá, mas se eu não tivesse a estabilidade que tenho não conseguia voltar à natação e essa é agora a diferença. Agora no Rio, oito anos depois, não só estou uns aninhos mais velha como tenho essa estabilidade toda por trás e sei que quando o Rio acabar tenho por onde continuar. Há muitos atletas que ficam deprimidos.

É impossível um atleta paralímpico viver só do desporto em Portugal?

Nós estamos num país em que se os olímpicos já têm dificuldades em conseguir apoios, imagine os paralímpicos. A minha opinião em relação a isso também é diferente porque moro em Inglaterra e como foi lá que nasceram os paralímpicos têm uma forma completamente diferente de lidar com isso. Venho a Portugal muitas vezes e sinto que quando saio do avião estou num mundo completamente diferente. Em Inglaterra têm tanta admiração pelos atletas paralímpicos e pessoas com deficiência, sabem o que somos capazes de fazer e não nos dão abébias. Em Portugal saio do avião e vêm logo perguntar-me se preciso que me abram a porta ou dizem-me para ir para a fila do check-in rápido. Só não tenho um braço, consigo fazer o check-in como as outras pessoas. Está a mudar um bocadinho, mas é sempre preciso ter bons exemplos na televisão e que as pessoas não se encolham quando têm uma deficiência. Acredito que essas pessoas é que têm de ser embaixadoras da mudança, dar a cara. Dou sempre uma oportunidade para as pessoas fazerem as coisas. Se precisarem de ajuda, peçam. Não vou fazer nada por elas. É essa atitude que devemos ter com qualquer pessoa, com ou sem deficiência, dar sempre oportunidade para fazer.

E em Inglaterra, um atleta paralímpico consegue viver só do desporto?

Eles têm um sistema engraçado porque trocam os recursos dos paralímpicos e olímpicos entre si. Colocam atletas paralímpicos a comentarem provas de natação pura e atletas olímpicos a comentarem provas de natação adaptada, porque natação é natação. Não interessa. Tenho imenso orgulho por nadar numa equipa onde é tudo integrado, ou seja, é quase uma utopia de integração total. A minha equipa tem tipos que foram campeões europeus e campeões paralímpicos e nadam todos na mesma equipa. O treinador diz que se alguém tem resultados de elite tem de ser tratado como tal, até pode ser mais lento, mas não interessa. Ele adapta o treino e são todos tratados de forma igual. Chego a Portugal e às vezes fico de coração partido por quase nem nos darem oportunidade de nadar com atletas de natação pura. Não acho que seja maluca ou tenha ilusões, mas vir de um mundo onde está tudo integrado é complicado. Espero que seja uma boa influência e que ao comunicar isso de forma positiva consigamos cada vez mais chegar a essa integração. Até os paralímpicos têm boa influência nos olímpicos. É giro.

Nos Jogos Olímpicos do Rio a nadadora chinesa Fu Yuanhui foi elogiada por quebrar o tabu da menstruação no desporto. O Rui Gama disse num artigo da Notícias Magazine que adapta os vossos treinos ao ciclo menstrual. Tem mais dificuldade em nadar quando está com o período?

Na natação há vários fatores que tens de ter em conta, mas também não podes deixar que te afetem muito, não podes ter muitas superstições. Não podes deixar que o período, uma touca rasgada ou algo que não corre como planeado te deite abaixo. Temos de tentar controlar isso tudo ao máximo. Essa teve piada porque os meus pais moram com dois chineses e eu perguntei-lhes como eles encaravam aquela afirmação, por ser tabu na China, mas eles não levaram a mal por ela ser tão engraçada. Foi muito giro ver a reação dos chineses, adoraram a personagem que ela é.