Não estamos a falar de piropos, mas de insultos

Women walk along The Mall by Buckingham Palace in the sun as the weather warms in London
Women walk along The Mall by Buckingham Palace in the sun as the weather warms in London March 9, 2014. REUTERS/Luke MacGregor (BRITAIN - Tags: ENVIRONMENT SOCIETY) - RTR3GBJG

A discussão mais acesa das redes sociais no final de 2015 gerou-se em torno do artigo ‘Piropos já são crime e dão pena de prisão até três anos‘, de Fernanda Câncio, publicado no Diário de Notícias, em que a jornalista descreve o processo de alteração ao Código Penal, ocorrida em agosto de 2015. Resumidamente, a proposta de alteração foi feita pela deputada do PSD, Carla Rodrigues, que disse à jornalista “o insulto ou injúria estão desde sempre previstos no Código Penal, mas um homem a importunar, a amedrontar uma miúda não estava a cometer um crime.”

A lei passa assim a considerar que a Importunação Sexual (artigo 170.º), seja feita verbalmente ou com contacto físico, feita em qualquer lugar (pode ser na rua, pode ser no trabalho), de forma isolada ou repetida, pode ser punida com pena de prisão “é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. A pena vê-se agravada até três anos no caso de as vítimas serem menores de 14 anos.

O título do artigo espalhou o pânico nas redes sociais e as críticas choveram, de homens e mulheres que pensaram que o que estava em causa era o galanteio. Não é. Só quando o que é dito tem conteúdo sexual é que pode ser punido. A diferença entre ‘Ainda dizem que as rosas não andam’ e ‘Comia-te essa c*** toda’ é muito evidente para ser confundida. O primeiro, ainda que não se goste de ouvir, não tem caráter sexual. No segundo é evidente a intenção de iniciar o ato sexual.

Qual é o bem jurídico protegido? A liberdade sexual. Ouvir um insulto de carácter sexual, que não se pediu, entra em conflito com a vontade sexual individual. Cada pessoa passa a ter o direito de andar na rua sem ter que se sentir ameaçado, sem ter que ouvir propostas indecentes a qualquer hora e em qualquer lugar. A lei aplica-se aos dois géneros, e não só às mulheres, embora sejam estas as mais afetadas por tal crime. Será difícil encontrar uma mulher em Portugal que não tenha sofrido comentários abusivos ou demonstrações sexuais ainda em criança.

Sónia Morais Santos, jornalista, apresentadora do programa de televisão ‘Pais & Filhos’ e autora do blogue ‘Cócó na Fralda’, foi uma das mulheres que decidiu contar publicamente a sua experiência demonstrando o absurdo de tanta consternação em torno da lei.

Eu devia ter uns 12 anos. Tinha saído na estação de metro do Colégio Militar e vinha a pé para casa. Passei por um baldio e um homem boçal, gordo, sujo e com olhar esfomeado apareceu de repente. Tinha a mão na braguilha, exibiu o órgão sexual, e o que me disse está até hoje instalado nos meus ouvidos e num canto escuro do meu cérebro. Eu era uma menina.”

Ana Garcia Martins, já tinha contado em 2007 no blogue ‘A Pipoca mais doce’, uma experiência parecida.

“Doze horas depois, e ainda me vêm lágrimas aos olhos (…). Porque um homem que, às onze da manhã e em plena Praça do Rossio, se vira para uma mulher e lhe diz “faz-me um b****”, merece ter uma estátua erguida.” E perante tamanha atrasadice mental, lembrei-me de várias respostas possíveis:
a) eu até fazia, mas tenho um metro para apanhar, é que não me dava mesmo jeito nenhum. Pode ficar para mailogo? Aguente aí de pila de fora que eu volto já;
b) sim senhor, vamos embora! Ora então é baixar as calcinhas, fáxavor, que é já aqui mesmo.
c) e tem pila que chegue para isso?
d) que engraçado, era mesmo isso que me apetecia, como é que adivinhou? Andava aqui às voltas, estava a ver que nunca mais propunham!
e) que tal fazer uma daquelas operações que permitem alongar o pescoço? Assim se calhar já lá chegava sozinho e não era preciso vir para a rua chatear quem trabalha.”

Os argumentos contra esta lei apareceram no Facebook e na página do Diário de Notícias após a publicação do artigo e os mais comuns são que as mulheres devem saber lidar com este tipo de coisas e que há coisas mais importantes para os legisladores se preocuparem. O assunto afeta o quotidiano de todas as meninas, raparigas e mulheres do País, ou seja, cerca de 5 milhões e meio de residentes em Portugal, mais de metade da população portuguesa.