O que aconteceu desde o sim ao divórcio entre católicos

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Hoje custa imaginar, mas até há bem pouco tempo o que Deus unia ninguém podia mesmo separar: casais que contraíssem matrimónio pela igreja, a grande maioria, ficariam juntos para sempre, independentemente da sua vontade. A possibilidade de divórcio pura e simplesmente não existia.

Porquê? Por causa da Concordata assinada em 1940 entre a Santa Sé e a República Portuguesa.

Seria necessário esperar por 1975 para que os casais pudessem divorciar-se civilmente e refazer a vida ao lado de outros parceiros, se assim o entendessem. A 15 de fevereiro – curiosamente uma data que quase coincide com o hoje popular Dia dos Namorados – era assinado um Protocolo Adicional à dita Concordata que altera um único artigo (o 24.º, que explicamos mais adiante).

Quando chegou a liberdade do divórcio
Os efeitos não se fizeram esperar. Segundo dados da Pordata, se em 1974 se tinham registado 777 divórcios, em 1975 tiveram lugar 1552, sendo quase metade de casamentos católicos (46,6%). Logo no ano seguinte, estes ultrapassaram largamente os de casamentos civis: num total de 4875 divórcios, 3800 eram de católicos, correspondendo a 77,9%.

A tendência mantém-se até aos dados mais recentes, relativos a 2013, e sempre com a percentagem de divórcios de casamentos católicos a rondar os 60% (exceto em 1983, em que se registou o menor valor, 54,7%). Neste último ano, registaram-se 22.500, sendo 58,3% de casamentos católicos.

E depois vem um segundo casamento
Ou seja, “o grave dever que lhes incube de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio”, estabelecido no dito artigo 24.º, que permanece numa nova Concordata assinada em 2004 (artigo 15 n.º 2), está longe de ser posto em prática pelos cônjuges que optaram pelo casamento religioso.

Muitos voltam a casar-se pelo civil, ficando numa situação “irregular” perante a Igreja mas isso é algo que poderá vir a mudar. Há quase um ano, declarações do Papa Francisco abriram a porta à comunhão destas pessoas mediante uma avaliação caso a caso.


O que dizia a Concordata assinada em 1940?

A Concordata assinada em 1940 entre a Santa Sé e a República Portuguesa rezava assim: “Em nome da Santíssima Trindade. Sua Santidade o Sumo Pontífice Pio XII, e Sua Excelência o Presidente da República Portuguesa (…) resolveram concluir entre si uma solene Convenção (…). Acordaram nos artigos seguintes: (…) Artigo 24.°:

Em harmonia com as propriedades essenciais do casamento católico, entende-se que, pelo próprio facto da celebração do casamento canónico, os cônjuges renunciarão à faculdade civil de requererem o divórcio, que por isso não poderá ser aplicado pelos tribunais civis aos casamentos católicos.” A validade dessas uniões consta no Código Civil de 1966, no seu artigo 1587.º: “A lei civil reconhece valor e eficácia de casamento ao matrimónio católico”.

Na realidade, “as separações de facto sucediam-se e até aumentavam, porque alguns cônjuges, seguros da perpetuidade do seu casamento, não cuidavam de o conservar harmonioso” escreveu a feminista Elina Guimarães no texto A Mulher Portuguesa na Legislação Civil (publicado na revista científica Análise Social, vol. XXII).

“Não podendo refazer a vida legalmente, faziam-no irregularmente. Tornaram-se correntes as situações chamadas de mancebia, concubinato ou de união livre, e eram também adulterinas em relação a uma das partes e, por vezes, em relação às duas.”

Uma das mais importantes consequências deste estado de coisas era a situação dos filhos: “Se o pai era casado com outra mulher, não podia perfilhar abertamente os filhos nascidos de nova união, forçosamente irregular. Não tinha sobre eles poder paternal, eles não usavam o seu nome de família, o que era doloroso nos casos estáveis. (…) Se era a mãe que estava no estado de casada com outro homem, que não com o verdadeiro pai de seus filhos, a situação era ainda pior, porque esses filhos se presumiam filhos do marido, facto que só este podia contestar. Muitas vezes, ele tinha já desaparecido. As infelizes crianças tinham de ser registadas como filhos de pai incógnito (…)”.


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A manutenção dos laços jurídicos, apesar da separação efetiva dos casais, dava azo a outras situações dramáticas, por exemplo quando a mulher precisava de viajar para o estrangeiro, por vezes a trabalho. Para isso, necessitava de autorização expressa do marido pois sem ela não lhe era dado o passaporte.

“Como a situação entre casais desavindos era geralmente péssima” refere a autora, “era frequente os maridos, por tendência, digamos, patriarcal, negarem essa autorização, ou só a concederem mediante certas concessões, o que consistia verdadeira chantagem, como, por exemplo, a doação duma propriedade (autêntico)”.

O que veio alterar o Protocolo Adicional à dita Concordata?

A 15 de fevereiro de 1975 era assinado um Protocolo Adicional à dita Concordata que altera um único artigo, o 24.º: “Celebrando o casamento católico, os cônjuges assumem por esse mesmo facto, perante a Igreja, a obrigação de se aterem às normas canónicas que o regulam e, em particular, de respeitarem as suas propriedades essenciais. A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vínculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio”.

Três meses depois era publicado o Decreto-lei n.º 261/75, de 27 de maio, com uma longa introdução. Menciona, por exemplo, que “Pelos seus largos reflexos sociais, essa solução [a impossibilidade de divórcio dos casamentos católicos] tem sido objeto das mais vivas críticas”; que “não sendo o Estado português confessional, não se entende que o legislador defenda valores especificadamente religiosos, impondo aos católicos o cumprimento de um dever – o dever de não pedirem o divórcio – que não deverá ser para eles mais do que um dever de consciência (…)”; e ainda que “a solução do direito português é quase única no Mundo: vigora apenas na República Dominicana e entre nós”. E conclui, finalmente, que “Sujeito à lei do Estado no que concerne aos efeitos, o casamento católico passará, portanto, a poder ser dissolvido nos tribunais civis, nos mesmos termos e com os mesmos fundamentos com que pode ser dissolvido um casamento civil”.