Olhos que não vêem podem passar a ver

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A Degenerescência Macular Relacionada com a Idade (DMI) é a principal causa para a perda de visão depois dos 50 anos nos países desenvolvidos. Foram precisamente as novas e relevantes descobertas sobre esta doença que valeram a Inês Laíns o Evangelos S. Gragoudas Award, o prémio para o melhor artigo científico publicado pelo serviço de oftalmologia da Harvard Medical School.

Inês Laíns nasceu a 2 de junho de 1986, em Coimbra. Formou-se em Oftalmologia na Faculdade de Medicina da Universidade da mesma cidade e, apesar de ter iniciado a sua carreira em Portugal, foi nos Estados Unidos que se dedicou à investigação sobre esta doença.

O Delas.pt quis saber mais sobre o percurso desta investigadora e em que consiste o seu trabalho no Massachusetts Eye and Ear Hospital, o melhor hospital mundial na área da oftalmologia, e em que bases assenta o seu sucesso.

Inês Laís no seu laboratório nos Estados Unidos da América

 

 

 

O que é a Degenerescência Macular Relacionada com a idade: em que consiste exatamente?

A DMI é uma doença que evolui lentamente, começando por pequenas alterações na zona central da retina responsável pela visão – a mácula. Em algumas pessoas, a doença mantém-se apenas nas fases iniciais, no entanto noutras continua a avançar e pode levar a lesões mais graves e mesmo à cegueira. Sabemos hoje em dia que há vários fatores que levam a que esta doença avance e provoque perda de visão, que ainda são objeto de estudo.

Nas fases iniciais, a DMI é maioritariamente uma doença que causa poucos sintomas. Alguns doentes referem dificuldades de visão no escuro e alguma distorção nas imagens. A perda de visão acontece quando já há lesões mais avançadas, pelo que muitos doentes quando chegam a nós, oftalmologistas, já têm lesões muito avançadas e por vezes irreversíveis. Existem dois grandes grupos de forma avançada de DMI: a forma atrófica, para a qual atualmente não existe tratamento; e a forma neovascular, em que há formação de vasos anormais na retina e que se pode tratar com injeções intraoculares.

Em termos de prevenção, importa salientar que um dos principais fatores de risco de DMI é o tabagismo (aumenta o risco de desenvolver a doença e de progredir cerca de 10 vezes), pelo que todos os doentes são aconselhados a deixar de fumar. Uma alimentação mais concordante com a dieta mediterrânica (rica em peixe, azeite, verduras) é também benéfica. Adicionalmente, um grande estudo de investigação americano, verificou que, para certos estádios da doença, o consumo de um tipo específico de vitaminas disponíveis comercialmente (designadas como AREDS2) diminui o risco de progressão.

Quanto ao artigo científico que lhe valeu oEvangelos S. Gragoudas Award, em que consistiu o estudo e quais as principais conclusões?

Como já mencionei, a acuidade visual – a medida que usamos habitualmente para avaliar a visão – só é alterada quando a doença está avançada. Assim sendo, não podemos confiar nesta para identificar os doentes nem para tentar perceber quais aqueles em que a doença vai progredir. No entanto, um dos sintomas que os doentes com DMI manifestam, mesmo em fases iniciais, é a dificuldade de visão no escuro. Assim sendo, foi desenvolvido recentemente um teste que, em 20 minutos, consegue avaliar a capacidade de adaptação ao escuro. O nosso estudo foi desenvolvido com o objetivo de avaliar se, de facto, havia uma relação entre o tempo que uma pessoa demora a adaptar-se ao escuro e as lesões de DMI que conseguimos visualizar com exames de imagem do fundo do olho. Os nossos resultados confirmaram que esta relação existe, que a presença de determinadas lesões oculares estão associadas a um maior tempo necessário para que haja capacidade de ver no escuro. Estes resultados demonstram que a adaptação ao escuro pode ser utilizada como um meio para identificar pessoas com risco de DMI mais cedo, o que pode ter um importante impacto na nossa capacidade de seguir estes doentes.

O que sentiu ao saber que o seu artigo e o seu trabalho tinham sido tão altamente distinguidos? Enquanto investigadora portuguesa a trabalhar nos EUA, como se sente ao saber que é um orgulho para o seu país?

Fiquei extremamente feliz! É uma honra enorme para mim. Este é um prémio atribuído por Harvard, pelo melhor centro de oftalmologia mundial. Ser capaz de competir e ganhar, mesmo estando entre os melhores, é um motivo de orgulho não só para mim mas também para a Medicina Portuguesa, uma vez que me formei no nosso país. Ao mesmo tempo, claro que também vejo toda esta oportunidade como uma responsabilidade. Espero que o trabalho que estou a desenvolver continue a contribuir para o avanço do conhecimento na área da DMI e que possamos ter mais para oferecer aos nossos doentes.

O que queria ser quando era pequena?

Lembro-me de querer ser professora. Na verdade, é algo que se mantém. Eu adoro dar aulas e sentir que posso contribuir de algum modo para a formação dos mais jovens. Uma carreira ligada à medicina e à ciência está, inevitavelmente e felizmente, ligada também à educação. A paixão por oftalmologia surgiu na Faculdade, como uma coisa natural. Penso que, gradualmente, me fui apercebendo de como a visão se trata de um dos sentidos mais importantes para a vida humana. Um dos doentes que mais me marcou como estudante de medicina foi um doente diabético. Era um senhor amputado de ambas as pernas, que nos dizia que, como amputado, ele conseguia ver os netos a crescer, ler, ver televisão e conviver com os amigos e a família… Mas que desde que tinha perdido a visão, a vida dele tinha perdido o sentido. Exemplos destes fizeram-me sentir que esta era a área a seguir e que eu queria contribuir para que tivéssemos mais a oferecer no mundo da oftalmologia. A extraordinária evolução desta especialidade também foi um ponto essencial na minha escolha. Trata-se de uma área de constante inovação e onde, de facto, se faz investigação de ponta.

Formou-se em Oftalmologia na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, e iniciou a sua carreira no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Mais tarde mudou-se para Harvard após ter recebido um prémio da Harvard Medical School Portugal. Que prémio foi este?

No início da minha carreira como oftalmologista, concorri a um curso do Programa Harvard Portugal – Clinical Scholars Research Training – e fui aceite. Trata-se de um programa nacional em parceria com a Harvard Medical School (HMS) que pretende dotar jovens médicos portugueses das ferramentas necessárias para desenvolver investigação de qualidade e com impacto a nível mundial. Este curso de dois anos teve uma enorme influência na minha vida, porque me fez perceber o quanto eu adorava fazer investigação e como podia aplicar os conhecimentos que estava a adquirir no avanço da oftalmologia.

Depois, concorri e ganhei outro prémio do Programa Harvard Portugal que me financiou e me permitiu mudar para Boston, para o Massachusetts Eye and Ear (MEE), onde integrei uma equipa de oftalmologistas que são líderes mundiais nesta área. Apesar de ser suposto só ficar um ano nos EUA, o Hospital e a Universidade de Harvard acharam o projeto extremamente interessante acabei por ser convidada a ficar mais tempo.

Na medicina existe um grupo já bastante significativo ou mesmo maioritário de mulheres

Qual a reação da sua família e amigos perante o seu sucesso e a sua partida?

Ficaram extremamente felizes e imagino que orgulhosos. A mudança tem sido progressiva e o que começou por ser apenas um ano de permanência acabou por se prolongar. Apesar da distância, a minha família, amigos e colegas têm sido um apoio incondicional.

Após a mudança para os EUA, acabou por dar seguimento à sua carreira no Massachusetts Eye and Ear, um dos mais prestigiados hospitais mundiais de oftalmologia. Que impacto teve na sua vida esta mudança?

Claro que teve um enorme impacto, mas penso que o balanço é extremamente positivo. Do ponto de vista profissional, esta oportunidade permitiu-me conhecer uma realidade de excelência e de trabalhar com os maiores líderes da oftalmologia mundial. A minha diretora – Dra. Joan Miller – desenvolveu o único tratamento que existe no mundo para a DMI. O seu trabalho foi reconhecido em 2014 com o Prémio Champalimaud da Visão. Trabalhar com estes médicos é um enorme privilégio e responsabilidade.

Do ponto de vista pessoal, foi difícil aprender a lidar com a distância da família e de pessoas de quem gosto muito. Mas a verdade é que hoje em dia manter a comunicação é relativamente fácil e tenho conseguido manter um contacto regular com Portugal.

À chegada aos EUA e ao MEE, o que sentiu? Foi bem recebida pelos seus pares? Ou alguma vez sentiu que inicialmente poderá ter sido menosprezada por ser mulher e portuguesa?

Os Estados Unidos são um país com uma realidade e uma cultura muito diferente da portuguesa. Por isso demorei algum tempo a adaptar-me. Em Harvard fui muito bem recebida desde o primeiro dia, a equipa que integrei tem pessoas de todo o mundo e a integração foi relativamente simples e nunca senti propriamente que houvesse algum preconceito por ser portuguesa ou mulher. Na medicina existe um grupo já bastante significativo ou mesmo maioritário de mulheres e na equipa que trabalho encontram-se pessoas de todas as nacionalidades.

Sente que, para as mulheres, a progressão numa carreira extremamente exigente e absorvente, como é a de investigação científica, é mais difícil do que para os homens? Acha que temos a vida mais dificultada ou que somos porventura postas à prova mais vezes do que os homens para nos afirmarmos?

Numa palestra recente em Harvard, assisti à apresentação de resultados sobre as diferenças em termos de financiamento para investigação nos EUA entre homens e mulheres. De facto, os homens conseguem mais financiamento e conseguem também uma progressão académica mais rápida. Trata-se de um problema atualmente reconhecido. Mas eu nunca senti isso na pele. A minha equipa é liderada por uma mulher, a Dra. Joan Miller, que é também a diretora do Departamento de Oftalmologia do MEE, e que é extremamente sensível a este assunto. Penso que faz um esforço ativo para contornar potenciais diferenças. Eu nunca as senti.

Qual o rácio de homens/mulheres?

Além da diretora do meu departamento, outras duas investigadoras principais são também mulheres. No nosso grupo mais restrito de 7 pessoas, apenas 2 são homens.

E de que nacionalidades?

Em termos de nacionalidades, só dois são originalmente americanos, sendo os restantes das mais diferentes proveniências, como Canadá, Grécia e Índia.

Presentemente está a desenvolver um projeto de colaboração entre Portugal e os Estados Unidos na área da DMI. Que projeto é este? E que outros gostaria de desenvolver em parceria com o nosso país?

Este projeto tem como objetivo desenvolver marcadores que permitam identificar as pessoas que têm risco de desenvolver DMI e, dentro destes, quais os que têm maior risco de progredir para cegueira. Para isso incluímos doentes quer americanos quer portugueses, com esta doença. Através de várias técnicas, como imagens do olho e amostras de sangue e urina, temos identificado potenciais marcadores, que esperamos que possam ser aplicados no nosso dia-a-dia clínico.

Em relação a outros projetos, já existem outros a decorrer em parceria com o nosso país, como é o caso da retinopatia diabética. Espero conseguir promover o maior número de colaborações possíveis!

Como classifica a prática da Oftalmologia em Portugal? Considera que temos bons especialistas e boas práticas, ou ainda estamos longe dos países mais desenvolvidos nesta área?

Temos excelentes oftalmologistas em Portugal, e muitos têm um reconhecimento mundial. A nossa formação médica é habitualmente apreciada lá fora, uma vez que adquirimos imensa versatilidade e capacidade de pensar, o que nos permite ter sucesso noutras realidades.

Infelizmente o nosso grande problema prende-se, não com as pessoas e a sua formação, mas com as condições que nos são oferecidas. Muito frequentemente os médicos têm pouca oportunidade de por em prática o seu potencial e têm muito pouco tempo para dedicar aos doentes. A perspetiva ainda é muito centrada em números – somos forçados a ver imensos doentes em muito pouco tempo – e não na qualidade e no modo como o fazemos. Há também muito pouco investimento na área da investigação.

Presentemente, sente-se plenamente realizada? No futuro, que outras ambições profissionais e pessoais?

Sim, tem sido um percurso extremamente gratificante. O meu objetivo é continuar a contribuir para o conhecimento na área da DMI e de outras doenças da retina. Espero poder produzir conhecimento que tenha um real impacto na vida dos nossos doentes. Obviamente que espero também continuar a aprender e a crescer do ponto de vista profissional e pessoal. E que possa continuar a partilhar a minha paixão pela oftalmologia com as próximas gerações de médicos!

Carmen Saraiva