Patrícia Sequeira: “Na ficção temos sempre heroínas, guerreiras”

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Patrícia Sequeira, realizadora e coordenadora de projetos na SP Televisão JORGE AMARAL/GLOBAL IMAGENS

‘Jogo de Damas’ é um filme de mulheres para mulheres. Estreou na semana passada, está nas salas de cinema. A realizadora, Patrícia Sequeira, tem 42 anos e está também nos bastidores da série da RTP1 ‘Terapia’. No currículo conta com títulos como ‘Depois do Adeus’ (também RTP1) e novelas como ‘Sol de Inverno’, ‘Mar Salgado’ e, atualmente, ‘Coração d’Ouro’, todas na SIC. É coordenadora de projetos de ficção da SP Televisão. Nesta entrevista chega conta como é impor-se num mundo de homens, fala na forma diferente de olhar para eles e para elas no trabalho e na sociedade e qual a responsabilidade da ficção na definição dos papéis femininos na sociedade.

‘Jogo de Damas’, o novo filme que Patrícia realiza, conta com Maria João Luís, Fátima Belo, Rita Blanco, Ana Padrão e Ana Nave e tem guião de Filipa Leal. Porquê um filme só com mulheres?

Outro dia perguntei ao Ivo Ferreira [realizador] se lhe colocavam a questão de estar a fazer um filme só com homens e ele respondeu: ‘não, que disparate!’. Eu faço um filme com cinco mulheres e não há quem não me pergunte.

Porque é que isso acontece?

Não sei. Acho que há qualquer coisa mal resolvida e acho que este filme vai contribuir para solucionar isso. Devo ser muito estranha, não acho que isso seja uma questão. O [João] Canijo está com um filme cheio de mulheres e tenho dúvidas que lhe perguntem isso. O [Ingmar] Bergman trabalhava com mulheres, era apaixonado por mulheres. Agora, o ‘Jogo de Damas’ parece que leva uma carga do feminino e acho ótimo que isso aconteça. Mas se pensarmos que se trata de uma mulher realizadora de cinema.

É aí que está a explicação?

Que memórias temos? A Teresa Villaverde, a Inês de Medeiros,… talvez seja isso que explique, mas também o facto de ser um grupo de mulheres a fazerem coisas, a falarem de si próprias, a exporem-se. Simplesmente falo de um assunto que conheço: sou mulher e tenho amigas, falo de amizade e amor. Mas acho que este filme é interessantíssimo para um homem ver e tenho tido um feedback muito interessante.

Qual é?

Sentem-se identificados numa ou noutra temática porque este filme joga exatamente com as peças da vida, aí somos todos iguais. Nos segredos, nas histórias, nas amizades que se foram perdendo. É interessante pô-los a fazer parte desta intimidade.

Estar na área do audiovisual facilitou no processo de fazer este filme? Em que medida?

Facilita tudo, não sei como seria se não tivesse já todas as horas de voo que trago da televisão, não vejo como teria criado laços tão fortes com as atrizes se não tivesse trabalhado com elas, não vejo como conseguia contar uma história sem antes ter contado várias. Faço questão de investir no meu filme para que esse seja um cartão de visita e para que me peçam depois: ‘por favor, faz outro’. Esse era o meu desejo. Tenho um orçamento à medida das possibilidades e fiz um filme capaz de caber nesse orçamento. Esta é a minha primeira obra cinematográfica, mas se pensarmos já fiz séries que dariam excelentes filmes.

Como por exemplo?

‘Depois do Adeus’, ‘Cidade Despida’, ‘Liberdade XXI’ – que era uma série de advogados muito moderna –, mais recentemente ‘Terapia’. Isto de contar histórias, e o formato até pode ser de telemóveis, o essencial é adaptarmo-nos ao formato.

Para onde caminham as histórias de mulheres na ficção?

Acho que a mudança vai acontecer daqui a muito tempo. Vamos dar passinhos pequeninos e este meu filme – simplesmente o facto de juntar mulheres e fazer – creio que já seja um. Depois, no conteúdo, não tenho as bandeiras do feminismo. O que acontece é que eu estou lá, as mulheres estão lá e todas estamos a fazer coisas. Ainda hoje, nos quadros da SP Televisão, vou a uma reunião de administração e sou eu e mais dez homens. Agora, a ficção tem feito um trabalho extraordinário no que diz respeito à força da mulher: temos quase sempre heroínas, as guerreiras. Às vezes os homens, é que, parece-me, estão mal representados, o que também é um problema. Devíamos equilibrar mais essa balança na ficção. Na realidade, temos ainda um caminho longo pela frente.

O que mudaria se houvesse mais mulheres em cargos de chefia na área da ficção?

As mulheres são diferentes dos homens porque têm uma visão, por vezes, mais emocional e o ideal está neste equilíbro. Seria aí que estava o segredo e que, com certeza, seria uma empresa mais feliz.

Qual é a diferença entre coordenar homens e mulheres?

Tenho tido a sorte de trabalhar com homens atores extraordinários também. Penso é que a mulher, em termos de camadas, parece um mil-folhas. Elas entram com mais facilidade numa conversa e vão a níveis mais profundos. A forma como os homens, por vezes, enfrentam os problemas, um desamor, parecem um bocadinho mais bem resolvidos. Nós andamos ali: repetimos e repetimos e entramos em camadas que são mais interessantes em temos de direção de atores, somos mais emocionais.

Também há questões de género na coordenação de atores, um trabalho onde se está sempre a dar ordens?

Quando é objetiva e assertiva, a mulher é provavelmente apelidada de arrogante, enquanto um homem é um bom líder. Esta questão está mal resolvida na cabeça de cada um. Felizmente, estou do lado em que me sinto líder, não sinto essa pressão, mas provavelmente há quem me chame arrogante só porque sou mulher e tenho poder. Há quem me chame masculina porque as atitudes de poder são consideradas masculinas. Se as mulheres levantam a voz, somos histéricas, se formos às presidenciais, somos “meninas engraçadinhas”. Acho que ainda há muita coisa para mudar.

Como se pode fazer essa mudança?

Não é uma novela que vai mudar o que está profundamente enraizado. Acho que a ficção faz o seu papel e tem, de forma ou de outra, apontado o dedo. Mas também temos de entreter. Será um trabalho conjunto, mas é um caminho longo, sem esquecer que o que for feito deve ter profundidade.

Sem arriscar auditório?

Temo-lo feito com ponderação. Os brasileiros puseram duas mulheres de certa idade a dar um beijo e o povo brasileiro é extraordinário porque gosta imenso de tudo o que é loucura e extravagância, mas desde que não se mostre na televisão. Vão para a praia com biquínis extremamente pequeninos, mas não fazem topless. Nós aqui temos conseguido e a novela tem dado esses passinhos com a maior seriedade possível. O caminho é por as pessoas nas peles dos outros.

Como conciliar vida profissional com horários tão alargados com vida pessoal?

É difícil, mas também não há de ser diferente da de um médico, de uma porteira ou empregada. Há momentos menos felizes na vida pessoal, que têm de ser sacrificados, mas são fases. A pré-produção é muito complicada, mas quando o barco começa a andar e vida entra numa rotina. Em profissões de grande paixão, nas quais se confundem prazer e trabalho, vai sempre ser de difícil gestão.

Quais as suas referências no cinema?

Não aguento referências. Às vezes vejo um filme péssimo e isso serve-me de um ensinamento brutal e diz-me qual o caminho que não quero. A vida, uma viagem, uma ida a um museu são referências para mim. Há qualquer coisa na palavra, no despir e tudo, no ator ou atriz, nos olhos, nas rugas. As minhas referências? A vida, os amigos.

Falou em as atrizes e as rugas. Isso está a deixar de ser um problema numa indústria que sempre quis beleza e juventude?

O que se ganha em rugas, ganha-se em talento. Ao contrário do que muita gente disse ao autor de ‘Sol de Inverno’ [novela de Pedro Lopes protagonizada por Maria João Luís e Rita Blanco] não houve perda do auditório, teve um sucesso tremendo. O público quer a verdade. E se a verdade chegar através de um cão o público vai aceitar. Apesar de eu achar que um elenco tem de ter a frescura da juventude e beleza. Mas levar uma novela às costas em que a história principal e ter duas mulheres de peso, não sei onde pode haver risco. É talento ao mais alto nível.

Quais as próximas histórias que quer contar?

Tenho sempre histórias para contar. Uma que está em laboração é mais do campo do sonho, para fazer viajar para outra dimensão, com mais poesia e metáforas visuais não é de outra galáxia. É uma poesia mais assumida na imagem, mais visual e nos diálogos e na história. Estou a decidir qual a mais forte para avançar. Gosto muito de rir e queria uma coisa divertida. Eu não choro, não consigo chorar no meu filme e fico muito triste. Mas quero poder nessa catarse e ter, na mesma frase, o riso e o choro, adorava que os meus filmes tivessem esse equilíbrio.

Histórias novamente com mulheres?

Não necessariamente. No meu primeiro filme convidei cinco mulheres que admiro, que são cinco amigas e criadoras, mais do que atrizes. Os próximos não. Vou abrir a porta também aos homens.