Pena por violência doméstica anulada pelo Tribunal

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O Tribunal de Vila Viçosa tinha, em 2016, condenado a dois anos de prisão um homem acusado de violência doméstica, embora a pena tivesse sido comutada por um tratamento ao alcoolismo. Agora o Tribunal da Relação de Évora veio anular esta condenação, após ter recebido o recurso do arguido.

O acórdão do Tribunal da Relação de Évora, disponível para consulta no site da Direção-Geral de Segurança Interna, suporta esta revogação em questões contextuais. Lê-se no primeiro ponto do texto que é “necessária a avaliação da ‘situação ambiente’ e da ‘imagem global do facto’ para se decidir pelo preenchimento, ou não, do tipo legal de crime em questão,” pelo que se infere que não chegam as agressões no seio de uma relação de intimidade para que estas sejam enquadradas no crime de violência doméstica.

Mas mais adiante no acórdão, o Tribunal da Relação de Évora dá como não provadas as agressões que teriam levado à condenação em primeira instância, entre as quais aquela em que a queixosa acusava o réu de tentativa de estrangulamento:

“deu-se como não provado que ‘nas circunstâncias referidas em 6 dos factos provados, o arguido tentou sufocar R., tendo sido impedido por uma das filhas da vítima, menor de idade’. Ora, o que se passou não se cingiu a isso: a ofendida relatou, de forma clara e inquestionável, não apenas que o arguido não a tentou sufocar, como também, e significativamente, que o arguido, tão só, ‘lhe pôs a mão no pescoço, mas tirou-a logo, sem nunca ter apertado…’ e que este facto ocorreu no decurso de uma discussão entre ambos, e imediatamente após a ofendida ter chamado ‘um nome, prontos…, que incluía a mãe dele’.”

No acórdão a vítima é descrita como uma mulher calma e forte que acaba por confessar que o que tinha motivado a queixa de violência doméstica era a esperança que o réu apanhasse um susto e deixasse de beber. A condenação inicial data de dezembro de 2016 os factos da acusação reportam-se a 2015.

Quando o contexto as faz desistir dos processos

Em dezembro de 2016 o documento ‘Violência doméstica – 2015, Relatório Anual de Monitorização‘, da responsabilidade do Ministério da Administração Interna, mostrou que do total de 33.814 de inquéritos de violência doméstica analisados entre 2012 e 2015, cerca de 78% resultou em arquivamento, 17,5% em acusação e 5% em suspensão provisória do processo. Dos que foram arquivados, 74% não prossegue até à sentença por falta de provas que são, muitos vezes, testemunhais.


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Elisabete Brasil, diretora executiva da UMAR para a Área da Violência de Género, relembra que a violência doméstica é um crime público pelo que não carece de queixa por parte da vítima. Mas que “as vítimas são muitas vezes testemunhas do Ministério Público. São instrumentos por via dos quais o Ministério Público quer provar a culpa do acusado. São interrogadas, são tratadas como criminosas”. Nessa altura as mulheres tornam-se vítimas em duplicado: primeiro do agressor e depois do sistema.

A forma como o sistema judicial trata as vítimas serve muitas vezes de fator dissuasor. A jurista e ativista afirma: “Muitas das vítimas acabam por não se opor às suspensão provisória do processo” por não quererem reviver os momentos de agressão. Mas há outras razões para isso: “O que vemos muitas vezes nas mulheres é que elas querem que a violência pare. Não querem a condenação do pai dos filhos.” Os testemunhos mudam desde o momento da denúncia até às declarações feitas em tribunal porque às vítimas lhe basta não sofrerem novas agressões, basta-lhe que a dinâmica da relação se tenha alterado. Elisabete Brasil acrescenta:

“Uma mulher para chegar a uma denúncia passou por muito. É muito rara a mulher que apresenta uma queixa à primeira situação de violência.”

Deve o contexto de uma relação conflituosa servir de atenuante para situações de violência doméstica? Sem se referir ao acórdão do Tribunal de Évora, a especialista em Violência de Género defende que “a legítima defesa não pode ser vista como um ataque. É normal que as vítimas desenvolvam estratégias para se defenderem. Esta reação não pode ser vista como crime.”

Elisabete Brasil faz questão de ressaltar que a magistratura não é um grupo homogéneo. O processo de Vila Viçosa demonstra isso mesmo, com deliberações diferentes em primeira e segunda instância. Refere que o espírito do legislador ao separar a violência doméstica de outro tipo de violência que ocorra em contextos de não-intimidade demonstra que há a perceção de que este crime tem contornos especiais. No entanto, reconhece “na sociedade portuguesa, e em muitas de nós, a violência está naturalizada, está normalizada” o que faz com que a visão sobre um facto possa mudar dependendo de quem o está a analisar. E depois um detalhe na lei:

“Antigamente, tínhamos na lei os ‘maus tratos reiterados.’ Conseguimos finalmente eliminar a questão da repetição, mas o plural mantêm-se e isso possibilita interpretações mais diferentes”. Se um juiz achar por bem, um episódio de agressão pode não configurar violência doméstica. Mas para a jurista é claro: “agressão em contexto familiar é violência doméstica.”

A UMAR defende que os tempos em que correm os processos sejam mais céleres e também que as declarações das vítimas aquando da abertura dos inquéritos sejam guardados para memória futura, “fechados e depois abertos em tribunal, para que a vítima possa não comparecer em tribunal” sendo obrigada a reviver os momentos de violência.

Avanços e retrocessos na perceção pública do crime

Em declarações à rádio TSF, Daniel Cotrim da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), lamentou que transpareça “a ideia geral ainda de que a violência doméstica se confunde com outras coisas”. O porta-voz da APAV acrescenta que “se não houver homicídio ou tentativas de homicídio, dentro das situações, elas continuam a ser extremamente desvalorizadas”.

Quanto ao acórdão do Tribunal de Évora, Cotrim antevê consequências: “Uma leitura de um caso destes leva as vítimas que possam estar a ouvir esta notícia a não querer avançar com denúncias porque acham que o sistema judicial não as vai proteger. Por outro lado, os agressores ou agressoras também acham que podem passar perfeitamente impunes”.

A mesma opinião é sustentada pela jurista da UMAR: “Estes acórdãos são dissuasores do recurso ao sistema de justiça. Quem está nestas condições pensa que afinal não vale a pena” apresentar queixa. Mas Elisabete Brasil relembra: “Há decisões destas mas há muitas outras que vão noutro sentido. Não temos um sistema perfeito, mas fizemos enormes progressos”. E para as mulheres que estão a passar por agressões em contexto de intimidade a ativista reforça a necessidade da denúncia. “Nenhuma mulher que seja vítima de violência deve quedar-se” e para ultrapassar as dificuldades que um processo como este acarreta recomenda que as vítimas se apoiem em ONGs de mulheres que estão preparadas para as ouvir.