Quantos anos dura o martírio do professor até estabilizar

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O verão é a altura de maior ansiedade para os milhares de professores e educadores que todos os anos tentam a sua sorte nos concursos nacionais, na expectativa de ficarem cada vez mais perto de uma estabilidade profissional que tarda em chegar e que, em alguns casos, vai ficando mesmo mais distante.

Passar as férias descansada é, por isso, o primeiro impacto que Carla Ferreira sente na sua vida desde que soube que iria, finalmente, entrar para os quadros da Casa Pia, onde estava como contratada há cerca de uma década.

Com 46 anos de idade e 17 a trabalhar no ensino, a educadora de infância tem neste ano letivo o primeiro em que não vai precisar de andar a consultar listas para saber se ficou colocada ou não. “Agora temos computadores e internet, mas houve uma altura em que as listas saiam e nós tínhamos de nos deslocar aos sítios para ir ver se tínhamos ficado colocados ou não”, recorda ao Delas.

Por muito que se tracem cenários, só na véspera de arrancar o ano letivo é que grande parte dos professores sabe realmente se vai passar ou não os próximos meses a dar aulas e onde vai lecionar.

Ansiedade e expectativa o verão inteiro
“Nós fazemos as contas internamente e vamos tentando perceber quantos lugares há esse ano, mas oficialmente não se sabe. E é um verão inteiro nisto. Nesta altura ainda há pessoas que nem sequer sabem se vão ser colocadas ou não”, lembra Carla Ferreira, que não entrou na mesma corrida daqueles que concorrem ao ensino público tradicional, apesar de o seu vínculo ser com o Estado.

“A Casa Pia tem um concurso diferente, que se rege pela lei-quadro, por estar afeta ao Ministério da Solidariedade e Segurança Social, mas que é alargado a toda a gente”, diz a educadora que trabalha para a instituição de Pina Manique há dez anos, em continuo, como contratada.

100 lugares para 40 mil professores
Nos concursos do Ministério da Educação, entraram, este ano letivo, para os quadros de zona pedagógica 100 professores, num universo de quase 40 mil a concorrerem, segundo revelou ao Delas o secretário-geral da Fenprof, Mário Nogueira.

A estabilidade que Carla Ferreira conhece agora aos 46 anos é cada vez mais uma raridade, que, por sua vez se vai alterando e mudando as regras do jogo tornando cada vez mais difícil planear o futuro.

Os mecanismos de vinculação obedecem ao tempo de serviço, mas a lei apresenta nuances que fazem com que os docentes que tenham mais anos de experiência, e de idade, não sejam necessariamente aqueles que passam aos quadros.

“Isso é enganador”, diz Mário Nogueira, explicando que para se entrar nos quadros “é preciso ter trabalhado, nos últimos cinco anos consecutivos, em horários [letivos] completos” e no mesmo grupo de recrutamento, o que, em muitos casos, se consegue através de contratos diretos com as escolas e não de concursos nacionais.

Professores a contratos há 20 anos
Segundo as contas do secretário-geral da Fenprof, neste momento existem “no sistema mais de 300 professores com mais de 20 anos serviço” e “cerca de dez mil” com mais de dez. Todos contratados. “E entraram nos quadros, em alguns casos, professores que têm apenas cinco anos de serviço”, acrescenta.

Isso acontece devido à chamada norma travão, instituída pelo ex-ministro da Educação, Nuno Crato, para dar resposta à diretiva comunitária que obrigou o Estado português a passar aos quadros os trabalhadores com três contratos anuais sucessivos. Mas no caso do Ministério da Educação, a norma definiu que passariam os professores com cinco contratos de trabalho completos e sucessivos, naquilo que muitos classificam como uma interpretação enviesada feita pela tutela e que criou situações de injustiça.

“Há colegas que, há cinco anos, com zero dias de serviço, entraram em escolas através da chamada Bolsa de Contratação de Escola (BCE) e que conseguiram manter a renovação de contrato durante cinco anos. Portanto, hoje também temos professores que com 30 anos de idade entraram nesses 100 lugares, com cinco anos de serviço, e há professores com quase 50 anos e 20 anos de serviço que não conseguiram entrar”, explica Mário Nogueira.

A BCE foi extinta pelo atual ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, poucos meses depois do novo governo tomar posse. Mas para muitos professores a alteração já não foi a tempo de corrigir situações passadas.

A injustiça que todos sentem
Sofia Gonçalves faz parte do grupo de docentes que tem mais de dez anos de serviço e que continuam a contrato. Aos 38 anos de idade, já leva 16 dedicados ao ensino, divididos por diferentes estabelecimentos e regiões. Por isso, para a educadora de infância, com mestrado em educação especial, a referida norma foi mesmo um travão à sua estabilidade profissional. “Houve muitos colegas que se vincularam, apoiados na Bolsa de Contratação de Escola, com menos tempo de serviço que eu e que outros colegas meus. É de uma injustiça tremenda”, diz.

Depois de nove anos no ensino particular, decidiu arriscar o público, em 2000. Entrou para a Casa Pia, onde trabalhou dois anos e que aproveitou como uma rampa de lançamento para entrar nas escolas estatais. “A partir de então tenho tido colocação, mas sempre no início do ano letivo, por causa das graduações na listas”. Nos últimos dois anos, tem sido colocada em posições de substituição e em horários não anuais. “Podem ser de dois, três meses, consoante o tempo de baixa da colega. E é assim a nossa vida”. Uma vida que a levou a lecionar durante os últimos três anos no Algarve, sempre na esperança de que o risco de ficar a centenas de quilómetros de casa fosse recompensado em tempo de serviço, necessário para subir nos lugares das listas de colocação.

Uma profissão para andar com a casa às costas
Mas há outras contas a fazer quando se escolhe uma profissão que obriga a andar com a casa às costas e a lidar com a incerteza de saber se se tem ou não trabalho a cada setembro que passa. Este ano, Sofia Gonçalves decidiu arriscar novamente, mas desta vez reduzindo a sua candidatura à zona pedagógica da sua área de residência, e que abrange Lisboa e Setúbal. “Estou muito cansada, são as viagens, é o dinheiro que se perde… Agora não sei o que é que me espera”, reflete.

Também Catarina Pinto, professora e de inglês e francês residente em Santarém, faz contas de cabeça quando lhe perguntamos se estaria disponível para trabalhar longe de casa se surgisse a oportunidade de ficar colocada.

“Depende dos quilómetros, porque atualmente pouca coisa tenho na minha área de residência, a maior parte das coisas que eu faço, as formações que dou são fora”, conta.

Catarina acabou o curso em 2003, está habilitada a dar aulas ao 3º ciclo e ao secundário, mas nunca conseguiu colocação no ensino oficial. “Tenho dado formação, aulas em escolas de línguas, explicações e Atividades de Enriquecimento Curricular (AEC)”. Foi através destes programas extracurriculares, dirigidos aos alunos do 1º ciclo do ensino básico e disponibilizados e contratualizados pelo Ministério da Educação, que teve contacto com o sistema de ensino.

Ao abrigo desse programa – a que recorrem muitos professores que ficam fora dos concursos –, lecionou durante sete anos, sempre na área de Santarém, ainda que em escolas diferentes. Neste momento conjuga as AECs com sessões de formação em empresas e formação profissional, mas até isso pode mudar já a partir de setembro. “O inglês, na maior parte dos casos já não vai ser apresentado como oferta de AECs, porque vai passar a fazer parte dos currículos a partir do terceiro e do quarto ano e a maior parte dos agrupamentos opta por não o pôr o inglês como AEC no primeiro e no segundo ano”.

Mudam os governos, mudam as leis
Aquilo que, à partida, soa como uma mudança positiva, no caso da professora de 38 anos não parece melhorar significativamente a sua situação. “Teria que fazer uma formação complementar, numa escola superior de educação ou numa faculdade que tivesse os cursos de formação para poder depois concorrer a grupos de recrutamento para dar aulas no 1º ciclo”. Mas Catarina Pinto decidiu não o fazer e justifica: “Essa formação não ia aumentar em nada a minha nota de candidatura, portanto concorreria exatamente com a mesma graduação que tenho agora. Se já não consigo entrar, dificilmente conseguiria outra vez.”

As alterações constantes nas leis que regem as carreiras docentes são apontadas pelos professores como um dos maiores fatores de desestabilização e ansiedade.

“Num ano as regras são umas, noutro ano são outras. Agora saiu uma normativa em que eu só posso receber o meu subsídio de férias em setembro, ao contrário de outros colegas”, lamenta Sofia Gonçalves. Se se somar duas especialidades, como é o seu caso, a atenção tem de ser redobrada e todo o esforço e sacrifício necessários para chegar a uma maior estabilidade deixa de fazer sentido.

“Nós seguimos a vida toda por uma regra para alcançar a vinculação e de repente há alguém que se lembra de mudar o jogo e aquilo pelo qual temos vindo a trabalhar vai por água abaixo, porque as regras mudam. Cada governo, cada pensamento e nós que nos sujeitemos.”

Viver com a instabilidade
Sofia, Carla e Catarina sabem que a precariedade não é um exclusivo da profissão de professor. Ainda assim, referem que há especificidades que tornam o exercício da sua atividade um verdadeiro teste aos professores e aos seus familiares. Gerir a vida pessoal num contexto que leva ao afastamento da residência ou, na pior das hipóteses, à perda de rendimentos de um ano para o outro é uma prova difícil. E sendo esta uma atividade ainda dominada pelas mulheres, há ainda outro desafio para acrescentar à equação: a maternidade.

Sofia reconhece que a profissão acaba por condicionar a decisão de ser mãe, mesmo que não se planeie a vida em torno disso. “Se acontecer, aconteceu”, admite. “Quando temos de nos afastar do nosso meio familiar, da nossa residência e tudo mais, é óbvio que isso acaba por condicionar algumas escolhas de vida”, explica.

A isso junta-se conversas e situações vividas por colegas com filhos que refletem a dificuldade de conciliar a vida familiar com a profissão.

“Não é fácil, sobretudo para os filhos. Os miúdos mudam de escola, se for preciso, todos os anos e estamos a falar de crianças ao nível do primeiro ciclo e às vezes ao nível do pré-escolar. E estar longe de casa acaba sempre por condicionar a vida pessoal.”

Precariedade que persiste
A aproximação à residência é uma das questões com que os professores se debatem há mais anos. Mas, se no passado esse era o problema maior, atualmente é só mais um dos fatores de precariedade que afeta estes profissionais.

“Há 30 ou 40 anos, os professores acabavam os seus cursos, no primeiro ou segundo ano de trabalho podiam ter de ir para mais longe, faziam algumas substituições às vezes, mas ao fim de três, quatro anos, no máximo, as pessoas começavam a estabilizar, conseguiam ter a recondução da sua contratação, a começar a entrar em quadros e, portanto, os professores começavam a ter alguma estabilidade que, a partir do quinto e do sexto ano já era mais uma tentativa de aproximação à sua residência, do que propriamente a ter emprego. Hoje não”

Casada, com duas filhas, uma com 10 e outra com seis anos, Catarina, não viveu essa experiência. O sítio mais distante onde tem de trabalhar é Lisboa, que fica dentro do perímetro de quilómetros que estabeleceu para exercer a sua atividade. Ainda assim, confessa que nos seus planos iniciais, a estabilidade profissional surgiria antes dos filhos.

“Quando tirei o curso estava à espera de ficar algum tempo sem conseguir colocação, mas nunca achei que fosse tanto. Como o meu marido tinha um emprego estável não se pensou muito nessa situação, partiu-se do pressuposto que se conseguiria sustentar os filhos e tem-se conseguido, mas com as ajudas dos meus pais e da minha sogra. Se estivesse à espera de ter a minha vida organizada ainda hoje estava para ter filhos.”

Carla, que só aos 46 anos conseguiu o tão almejado lugar nos quadros, também não esperou por ele para ser mãe. Com dois filhos, diz que o facto de ser otimista também a ajudou a enfrentar a incerteza, porque, apesar de tudo, ia conseguindo ter colocação. Mas diz que se não fosse pelo prazer de dar aulas, dificilmente sobrariam motivos, – seja a estabilidade, sejam de ordem financeira -, para continuar na profissão.

É, de resto, o gosto pelo que fazem que levou estas três professoras a nunca desistir ou a mudar de atividade. Apesar de admitirem já ter pensado nessa possibilidade e de não a poderem descartar por completo, a ligação à educação deverá estar sempre presente nas suas vidas, procurando atividades relacionadas, como acontece com Catarina Pinto.

Quais as opções que restam?
Procurar ocupações semelhantes fora do sistema de ensino é, muitas vezes, a única opção que resta aos professores que não ficam colocados nos concursos e que, muitas vezes acabam mesmo por desistir de tentar entrar.

Segundo as contas da Fenprof, entre 2010 e 2016, desapareceram dos concursos cerca de 12 mil candidatos. “Estamos a falar de pessoas que já nem concorrem”, diz Mário Nogueira.

Este ano letivo, o concurso de professores colocou 7.306 docentes nas escolas em contratação inicial e mobilidade interna, revelou ontem o Ministério da Educação.

O número representa acréscimo de cerca de 500 professores em comparação com o ano anterior e ainda ficam por preencher cerca de 150 horários inferiores a oito horas, os quais serão ocupados em contratação de escola.

Mesmo assim, o número é insuficiente para alterar o cenário de dezenas de milhares de professores no desemprego. “São quase 30 000 os que não obtiveram colocação (pois o número de candidatos à contratação era de 36.103)”, refere o comunicado que a estrutura sindical enviou ontem ás redações, reagindo aos dados do concurso.

Já a Associação Nacional de Professores Contratados saudou a colocação de docentes, mais cedo que o que aconteceu nos últimos anos, mas lembrou que continua a haver docentes com 15 e 20 anos de serviço em situação precária ou sem colocação.

Sofia Gonçalves já quase perdeu a esperança de algum dia vir a conseguir vincular-se. “A minha tia-avó, se fosse viva, teria 150 anos. Era professora primária e já [na altura] andava de um lado para o outro. Passaram 150 anos e estamos praticamente na mesma”.

Pessimismo quanto ao futuro
Mário Nogueira corrobora a visão pessimista e desesperançada da educadora e professora do ensino especial.

“No limite e como está a lei, um professor pode chegar aos 66 anos e continuar a ser um professor precário, contratado, estar desempregado uns anos, uns dias, uns meses, umas semanas, e andar em substituições e nunca tem estabilidade.”

A vinculação dos professores e o regime de concurso, assim como a aposentação dos professores, são por isso os pontos centrais da próxima ronda de reuniões entre sindicatos e Ministério da Educação, marcada já para outubro.