Refugiadas são mais do que mulheres passivas

Refugiada síria

“Não falem sobre o que acham que são as minhas necessidades, perguntem-me sobre quais são as minhas necessidades”. A frase é de Bibiana Lopera, refugiada colombiana, atualmente a viver na Alemanha, e uma das intervenientes da conferência “Mulheres Refugiadas – em trânsito entre discriminações múltiplas”, que decorreu na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Lisboa, no passado dia 14 de outubro.

Ativista do Teatro das Oprimidas e Coletivo Creando Memoria, em Berlim, e da campanha contra o assédio e o abuso sexual “Não significa não”, Bibiana explica que, na Europa, há duas perceções em relação aos refugiados, a do coitadinho ou a do herói.

Uma visão redutora e simplista que também se estende à atual vaga de refugiados e migrantes que chega à Europa, vinda maioritariamente da Síria, Afeganistão e Somália, e que dificulta o acolhimento e integração dessas populações.

Elena Fiddian-Qasmiyeh, da University College London (Londres), que também participou na conferência, via skype, focou a sua investigação precisamente na complexidade das populações de refugiados, estudando a interseção entre género, minorias, religião, sexualidade e migração.

Mulheres, crianças e comunidade LGBT muçulmana, dentro do vasto grupo de refugiados, mereceram especial atenção no trabalho da académica, que analisou, entre outras coisas, a forma como as imagens veiculadas pelos media têm reduzido o retrato destas pessoas, levando a uma perceção limitada e preconceituosa nos países de acolhimento.

Segundo a investigadora, as mulheres que chegam nos grupos de refugiados são retratadas como apolíticas, passivas e inocentes. São representações de madonas, evocativas da iconografia cristã e visíveis nas imagens que acentuam a sua vulnerabilidade. Nas fotografias aparecem sozinhas ou com uma criança nos braços, por contraponto aos homens refugiados, que são fotografados e apresentados como uma massa indistinta e ameaçadora.

Para a académica, essas imagens reforçam, por um lado, a assunção de que os valores seculares empoderam a mulher ao contrário das sociedades religiosas e uma superioridade da cultura ocidental para justificar intervenções nessas sociedades. Por outro lado, faz com que todos os refugiados enfrentem barreiras baseadas nesses preconceitos, e que determinam quem precisa de mais apoio.

“A religião também é uma identificação identitária desses refugiados. Eles próprios são afetados por essa representação redutora”, sublinhou a investigadora dando como exemplo a comunidade LGBT. “Podem os requerentes de asilo continuar a identificar-se como LGBT e muçulmanos ao mesmo tempo?”.

A pergunta acaba por ser respondida com a dupla discriminação que sentem na pele ao apresentarem a sua situação particular no país de acolhimento. Queixam-se que não são levados a sério pelas autoridades, porque, como explica Elena Fiddian-Qasmiyeh, porque ser LGBT e muçulmano não lhes parece ser compatível. Para as lésbicas muçulmanas a realidade é ainda pior, pois, por serem mulheres, são mais vulneráveis a abusos e agressões sexuais.

Como oferecer proteção contemplando toda essa complexidade? É a questão lançada pela investigadora, ao mesmo tempo que se vai tendo conhecimento de cada vez mais casos de violência sexual contra mulheres e crianças nos campos de refugiados.

Separar as mulheres e crianças dos homens

Elena Fiddian-Qasmiyeh lembra que cada país europeu tem uma política de integração diferente e que muitos acham que é melhor para os refugiados não serem separados, ficando juntos, na mesma área com a sua comunidade mais alargada. Mas isso acaba, muitas vezes, por ter efeito oposto e conduzir a novas situações traumáticas para pessoas que já chegam fragilizadas e traumatizadas pela violência de vários tipos. Por isso, em alguns países de acolhimento, pessoas LGBT, mulheres e crianças já começam, por isso, a ser separados e incluídos em grupos onde não sejam alvos fáceis.

É o que está a ser feito em Hamburgo, como explicou, na conferência,Gabi Dobusch (SPD), deputada do Parlamento Regional daquela zona administrativa alemã.

Segundo a deputada, 2,53% da população de Hamburgo (que tem 1,8 milhões de habitantes) são refugiados e 1/3 desses refugiados são mulheres. A maioria vem com a família, algumas com filhos, outras, muito poucas, sozinhas, e muitas experienciaram violência no seu país e/ou no percurso e algumas já em Hamburgo, explica Gabi Dobusch.

O desafio colocado às autoridades regionais foi a mudança de estratégia de realojamento que tinham previamente planeada, com o objetivo de acautelar a segurança dessa camada da população refugiada.

A criação de alojamentos para as mulheres e crianças que experienciaram violência e que se encontravam traumatizadas, assim como a separação das mulheres, grupos LGBT e crianças nos campos de refugiados de Hamburgo, assegurando-se espaços com privacidade e reservados só a mulheres foram alguns dos pedidos apresentados no Parlamento Regional. De acordo com Gabi Dobusch, também foi solicitado apoio psicológico para aqueles que foram alvo de violência e a preparação e sensibilização dos voluntários para a violência contra mulheres.

Com esses pedidos foram conseguidos, até ao momento, 470 espaços para mulheres e crianças, estando mais 60 planeados e a criação de guias de orientação para as autoridades policiais lidarem com os refugiados, passando pela inclusão de mais mulheres nas forças policiais, e mais apoio para as ONG, além de medidas para o emprego e integração.

“Ao início apenas 5% das mulheres eram abrangidas por essas medidas, agora elas chegam 15%. Não é satisfatório, mas é melhor que os 5%. Se queremos que elas sejam independentes temos de apostar em aumentar o seu nível de educação e desenvolver as suas capacidades”, sublinhou GabiDobusch.

Para isso defende que haja maior convergência entre os apoios e a população que os recebe. Se um terço dos refugiados são mulheres, um terço dos recursos tem de ir para elas, defendeu a deputada.

Religião, regras e integração
À segurança dos refugiados, e, em particular das mulheres e crianças refugiadas, junta-se a segurança dos locais. Os choques culturais e os preconceitos de parte a parte dificultam a integração. Na Alemanha, as mulheres têm mais direitos que muitas das refugiadas. Por isso, no respeito pelos costumes culturais e tradicionais dos que chegam não cabem atropelos às leis e os direitos e deveres são para serem respeitados por todos.

“Depois dos incidentes de Colónia, tivemos um grande debate sobre como vivermos juntos”, diz Gabi Dobusch. A resposta, refere, não é clara, mas há uma certeza:

“É importante informar toda a gente que chega à Alemanha dos nossos valores, da nossa constituição e também informar as mulheres dos seus direitos”.

E esses direitos são parte de uma luta permanentemente inacabada, como lembrou a ativista iraniana Behshid Najafi, que chegou, refugiada, àquele país, em 1986. “A sociedade muda se lutarmos. E continuamos a lutar”, disse, recordando que só em 2002 é que a violência doméstica conjugal passou a ser punível como crime. “Porque só lutámos nessa altura”, sublinhou.

Mas Behshid Najafi advertiu também para os contextos em que elas decorrem. Por mais ativistas que sejam as mulheres muçulmanas, sê-lo em democracia é diferente do que sê-lo numa ditadura.

“Se lutar na Alemanha pelo meu ponto de vista não tenho medo de ir presa, uma mulher que lute no Egito e no Afeganistão tem esse medo. Há uma diferença”, salientou.

A discussão vai além da integração religiosa. Para a iraniana, todas as religiões são patriarcais, não apenas o Islão, e é isso que é preciso mudar, “não só para as mulheres, mas para todos os grupos. É um combate contra toda a discriminação”, acrescentou.

Referindo-se aos países e às políticas de acolhimento e integração dos refugiados, com muitos a considerá-los uma ameaça à segurança interna e aos postos de trabalho dos locais, a ativista recordou que mesmo que nem todos partilhem das mesmas visões económicas, políticas, sociais e religiosas, “os países ratificaram tratados, convenções dos direitos humanos. Mas não basta ter leis é preciso aplicá-las”.

E é nisso que a Europa tem falhado, como acusou a eurodeputada portuguesa, Ana Gomes, também presente na conferência. “A chamada crise dos refugiados na realidade não é uma crise de refugiados, é uma crise dos valores europeus”, afirmou.

Entre as várias críticas que fez à forma como a União Europeia tem lidado com a vaga de refugiados, que chegam ao continente, Ana Gomes destacou os bloqueios burocráticos nos registos e pedidos de asilo, fazendo com que muitos refugiados passem meses e anos em campos e sejam alvo fácil para os traficantes.

Um dos principais defeitos da organização europeia é não abrir “vias legais e seguras para as pessoas fazerem o seu pedido de asilo ou de trabalho”.

“Ninguém pode ser legal ou regular se não tiver outra alternativa senão meter-se ao caminho pela via dos traficantes e só depois fazer o pedido”, disse a eurodeputada socialista.

A isso acrescem as diferenças legais consoante os países. “Temos em teoria um sistema de asilo comum, mas estamos a ver que ele está completamente fragmentado”, começou por dizer, e que, na sua opinião, explica porque Portugal não tem acolhido os refugiados que se propôs receber. “Não vêm, porque os sistemas que temos em cada país não se articulam”.

E as contradições entre o que é dito e o que é feito levam a eurodeputada a afirmar que, “neste momento, a Europa está a violar os direitos humanos de muita gente” e a não poupar críticas aos responsáveis políticos europeus, inclusivamente os da sua família política. “Governos que se dizem socialistas estão a ir atrás de uma retórica populista. Isso é que é absolutamente arrasador!”, concluiu.

De acordo com os dados do Centro Português para os Refugiados, divulgados na conferência pela sua presidente, Teresa Tito de Morais, só cerca de 30% dos pedidos de asilo em Portugal são de mulheres e, apesar de o país ter sido dos primeiros a oferecer-se para receber refugiados que já estejam em campos europeus, “ainda não está muito preparado para dar respostas a situações traumáticas” vividas pelos que chegam.

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