Ter esclerose múltipla não é o fim!

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Doença crónica e degenerativa, a esclerose múltipla afeta o sistema nervoso central e, sobretudo, as mulheres. No entanto, com diagnóstico rápido e medicação adequada, pode fazer-se uma vida praticamente normal e até engravidar. Acabar com os mitos que lhe estão associados também ajudaria – e muito.

“Tive o primeiro surto em 1993 e fui diagnosticada dez anos depois. Os surtos comportavam visão dupla, falta de equilíbrio e de força nos membros superiores e inferiores, depressão e mudança de humores. Resumindo, não me conseguia mexer nem fazer nada sem auxílio de uma terceira pessoa”, conta Ana Isabel de Freitas, numa descrição comum a muitas outras pessoas que sofrem de esclerose múltipla. Dizem as estatísticas que existem no mundo cerca de 2,5 milhões, das quais cinco a oito mil em Portugal. Surge, em geral, entre os 20 e os 40 anos e afeta sobretudo as mulheres.

A que se deve? Não se sabe bem, como explica Sónia Batista, neurologista no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra: “É uma doença multifatorial, para a qual podem contribuir fatores genéticos, mas não em mais de 30%, e ambientais, como o défice de vitamina D e o vírus Epstein Barr. O tabagismo é outro fator e recentemente começou a perceber-se que obesidade na pré-adolescência também contribui”. De igual modo, desconhece-se porque é que as mulheres são as principais vítimas, supondo-se que isso esteja relacionado com “fatores genéticos e hormonais”.

Por ser muito heterogénea e com sintomas comuns a outras doenças, da falta de força à dormência e às alterações do equilíbrio e da visão, é difícil chegar ao diagnóstico da esclerose múltipla. “Pode atribuir-se a dormência, por exemplo, a problemas de coluna”, diz a especialista. “Há queixas que não são valorizadas pelos doentes e, às vezes, os próprios médicos não as valorizam. Além disso, mesmo após várias ressonâncias magnéticas, o neurologista pode ter dificuldade em diagnosticar a doença. Compreendemos que é difícil ouvir que não temos a certeza mas, por vezes, é mesmo assim… E quanto mais cedo se diagnosticar melhor, quanto mais tarde se iniciar o tratamento mais danos cerebrais podem ocorrer”.

Os surtos (ou sintomas que persistem por mais de 24 horas) variam muito: “Pode haver uma única inflamação do nervo ótico”, sem sequelas ou repetições ao longo da vida; ou a “falta de força dos membros remeter o paciente para uma cadeira de rodas, cenário possível mas não comum”. Existe mesmo a possibilidade de provocar a morte, por exemplo se houver uma lesão do sistema nervoso central em áreas que controlam o sistema cardiorrespiratório, mas é tão raro que a médica nunca se deparou com tal situação. “Cada caso é um caso e cada surto é um surto”, conclui.

Tratamentos difíceis, investigações em curso

Tendo como objetivo reduzir o risco de novos surtos, o tratamento passa por “injetáveis, utilizados desde os anos 90. Há dois ou três anos surgiram medicamentos orais, comprimidos de toma diária. Ambos podem ser usados durante anos sem grandes complicações”, esclarece a médica. Trata-se de uma medicação que custa entre 500€ a 1000€ mensais – um valor elevado mas há doenças mais caras, como as hepatites –, sendo financiada pelo Sistema Nacional de Saúde.

No tratamento o doente tem uma palavra a dizer. “O neurologista apresentou-me quatro medicamentos com os seus prós e contras”, revela Sara Duarte, licenciada em Bioquímica a frequentar o mestrado em Ciências Farmacêuticas. “Escolhi aquele que aparentava ser mais seguro por já existir há décadas e haver dados quanto aos efeitos secundários e toxicidade”.

Recebeu o diagnóstico há poucos meses, começou o tratamento em março e não foi fácil. “Na primeira injeção existem efeitos secundários transversais a qualquer doente: sensação de desmaio, dores musculares e arrepios ou febre, sintomas semelhantes a uma gripe. Depois há outros que variam de pessoa para pessoa. Eu tive sensação de fraqueza e cansaço, vómitos e algumas noites sem dormir…”. Dada a sua formação académica, tem “noção de que a doença nunca foi tão estudada como atualmente”.

Um desses estudos respeita ao papel da vitamina D. “Constatou-se que quem tinha déficit desta vitamina tinha maior risco de sofrer da doença” explica a neurologista. “Alguns médicos já prescrevem suplementos mas ainda não existem guidelines formais”.

Gravidez e outros mitos

Ana Isabel de Freitas acabou por identificar a sua própria doença ao ler um cartaz no centro de saúde. Todos os anos acontecem várias iniciativas a 31 de maio, Dia Mundial da Pessoa com Esclerose múltipla. No entanto, persiste a falta de informação e o “atraso do diagnóstico também tem a ver com isso”, defende a neurologista. Por outro lado, “existem muitos mitos, como a ideia de que os doentes acabarão numa cadeira de rodas. Não é verdade pois hoje iniciamos os tratamentos mais rapidamente e os medicamentos são mais eficazes do que no passado”.

Outro mito é o de que não se pode engravidar. “Uma mulher com esclerose múltipla pode ser mãe como todas as outras e o acompanhamento em obstetrícia é exatamente igual. Durante a gravidez geralmente suspende-se a medicação e as doentes sentem-se muito bem, ocorre uma alteração do sistema imunitário que é favorável à doença”.

Pode dizer-se que as grávidas entram verdadeiramente num estado de graça e Sofia C. confirma-o: aos 29 anos a dormência na cara levou-a ao médico, iniciou o tratamento em apenas um par de meses e, um ano depois, ficou grávida. “Foi a fase em que me senti fisicamente melhor”, diz. Nove anos passados não voltou a ter surtos, embora sinta mais cansaço, e passou a trabalhar em casa para ter maior tranquilidade. Acresce a dificuldade em gerir a ansiedade, para a qual é medicada. “Segundo a minha psicóloga ainda não sei lidar bem com este diagnóstico”.

O mais comum dos mitos chama-se preguiça. “Cerca de 80% dos doentes tem fadiga,”, explica a médica, e esse cansaço é muitas vezes mal interpretado, no trabalho e socialmente. Pode, por vezes, comprometer a atividade profissional, assim como os surtos.

Ana Isabel de Freitas tinha “dois a três por ano, sendo que entre o pico e a recuperação parcial demoravam cerca de um mês e meio cada. Tinha que pôr sempre um ou dois atestados médicos a cada seis meses”. Entretanto dedicou-se à escrita e publicou inclusivamente, em edição de autor, o livro ‘Aprender a Viver Melhor com… Esclerose Múltipla’, assinando como Anne Rodrigues e à venda online.

Mas, mais uma vez, verifica-se que cada caso é um caso. “Com o tratamento certo podemos conseguir manter a doença ‘parada’ e o paciente mantém a sua atividade laboral”, garante a neurologista. “A maior parte dos meus doentes são ativos e têm as mais diversas profissões, desde médicos e advogados a pedreiros e desportistas. Há quem faça inclusive para-quedismo”.

Comum a todos parece ser a necessidade de ter apoio por parte de quem conhece de perto a doença e os seus múltiplos contornos. Muitos encontram-no em entidades como a Associação Nacional de Esclerose Múltipla ou a SPEM – Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla outros procuram-no online, nomeadamente no grupo (fechado) do Facebook Nós Tomamos Conta da Esclerose Múltipla. Diariamente surgem dúvidas sobre sintomas, medicação e seus efeitos, partilha de estados de alma e mensagens de incentivo a quem está a viver um mau momento. E, das muitas conversas tidas para este artigo, nasceu o título: ter esclerose múltipla não é o fim.