Uma doença chamada ansiedade

Trauma
Trauma (Shayneppl/Shutterstock)

‘Tem síndrome de ansiedade generalizada’. Explicou-me muito calmamente o meu médico sentado à minha frente. O meu corpo estremeceu. ‘É a doença da era moderna. Principalmente dos professores. Não se preocupe. Vai tomar uma medicação que a vai deixar adormecida…’ E foi assim, com este diagnóstico, a tremer, com um papel na mão onde se encontrava rabiscado o nome de um medicamento igualmente receitado para quem sofre de epilepsia, que me vi, pela primeira vez, confrontada com o ‘nome’: síndrome de ansiedade generalizada. Era simplesmente um nome, mas um nome que dava um rosto ao que se passava comigo, com o meu corpo, com a minha mente”. Marta Rodrigues, 38 anos, casada, professora, uma vida normal como tantas outras vidas, tinha finalmente um diagnóstico depois de meses de angústia sem saber a quem apontar o dedo para o mal que lhe assolava o corpo e destruía a alma.

“Tinha trinta e poucos anos quando comecei por sentir os primeiros sintomas. Não sabia o que significavam, nem os sabia explicar. Simplesmente, dizia que me sentia mal. Via o mundo à roda, o estômago apertava, o coração disparava medonhamente. Aconteceu enquanto conduzia, tendo mesmo de parar o carro e esperar que a indisposição passasse. Aconteceu em casa do meu pai, tendo de me deitar no sofá e explicar o que sentia sem saber como o fazer. Senti muitas vezes antes de adormecer. Mas ainda nada de muito grave, nada de muito intenso. O meu mundo aqui ainda não estava completamente dominado pela ansiedade. Foi gradual. Veio de mansinho. Nesta primeiras indisposições, cheguei a ir às urgências. Expliquei a chorar (eu nunca choro!) que não me sentia bem. Sentia-me muito vulnerável. Fazia um ano que tinha perdido os meus dois bebés e uma trompa de Falópio em consequência de uma gravidez ectópica só detetada aos três meses de gestação. O médico julgou tratar-se de uma depressão e enviou-me com ansiolíticos para casa. Os intervalos entre as crises começaram a diminuir e a intensificarem-se. O que sentia? Ainda não consigo explicar com objetividade ou coerência. O meu coração disparava e andava aos trambolhões no meu peito, sem nada à minha volta que o despoletasse. Muitas vezes estava deitada no sofá ou na cama. O corpo encolhe-se. A tensão mental aumenta a tensão corporal. A mente desliga e foca-se unicamente no que o corpo sente”, recorda a professora sobre um dos períodos mais difíceis da sua vida. Um período negro em que não havia luz que fosse a surgir ao fundo, como se o mundo fosse um buraco negro que a sugava e desfazia, pouco a pouco, sem dar tréguas.

Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica da Oficina da Psicologia, confirma que esta doença se vai desenvolvendo aos poucos:

“A ansiedade patológica pode instalar-se progressivamente sem que a pessoa perceba que a ansiedade e o medo estão fora do normal, provocando sofrimento e atrapalhando o dia-a-dia e isso poderá levar a que não procure ajuda ou procurando que não valorizando as suas queixas. Vivemos há alguns anos numa cultura que favorece a preocupação, quer por equivalê-la a maturidade, por toda a conjetura sócio-económica. Assim, alguém queixar-se de andar angustiado, com o pensamento acelerado, sem conseguir concentrar-se e a dormir mal tenderá a ser normalizado pela rede de suporte e pelo próprio.”

Talvez por isso, “as queixas com que os clientes surgem numa consulta de psicologia, curiosamente, não se prendem com a preocupação que lhes mina o bem-estar; talvez precisamente porque na nossa cultura um indivíduo preocupado é sinal (errado) de responsabilidade e maturidade. Do que se queixam, de facto, é de cansaço, de agitação nervosa e irritabilidade, de dores musculares, de perturbações do sono, de dificuldades de concentração e de uma indecisão permanente. De um mal-estar geral, para o qual não encontram justificação aparente”, acrescenta a especialista.

“O fundo do poço encontrei-o numa madrugada, quando acordei e me senti a partir. O coração completamente descompassado no meu peito. Acordei o meu marido que dormia tranquilo a meu lado e despedi-me dele. Disse-lhe que devia estar a ter um ataque cardíaco. O meu marido, em pânico, levou-me de imediato às urgências. Eram quatro da madrugada, quando dei entrada no hospital. Mal conseguia andar. Encolhida, sentia que a qualquer momento podia desfalecer. Sintomas: dor no peito, dores nos braços, vontade enorme de vomitar. Fui imediatamente levada para exames. Fiz electrocardiogramas e exames ao sangue. Estava tudo bem comigo. Tinha só a tensão um pouco elevada. Sinal de stress, de ansiedade. “O que se passa na sua vida de momento?” “Ah, é professora?! Hoje vão sair os resultados dos concursos? Pois… precisa de descomprimir, de relaxar, vai correr tudo bem.” Saí do hospital com uma medicação mais forte, mas sem nada diagnosticado, sem nada de concreto onde me agarrar”, continua Marta Rodrigues.

A ansiedade é considerada a grande doença do século XXI – apesar de ainda ser muito desvalorizada (por ser pouco compreendida). Embora os homens não estejam livres de sofrer do mesmo, a ansiedade atinge mais as mulheres. “A mulher está mais exposta às doenças psicológicas, pela multiplicidade de papéis que assume e pelas próprias características do seu ciclo reprodutivo e funcionamento emocional. Mãe (com todos os desafios físicos e psicológicos do processo da gestação e pós-parto), profissional, dona de casa, companheira…é esperado que a mulher consiga desdobrar-se por entre todas estas estas tarefas e papéis de forma exemplar. A divisão exigente entre tantas dimensões a par da pressão para que esteja sempre bem, disponível e bonita, resulta numa imensa sobrecarga que se faz acompanhar por um nível elevado de desgaste e fadiga e um auto-cuidado insuficiente que favorecem o desenvolvimento de doenças físicas e mentais, como a ansiedade”, explica Filipa Jardim da Silva.

A ansiedade pode assumir várias formas: ansiedade generalizada (um entrelaçar de preocupações constantes e duradouras), ansiedade social (preocupações focadas na exposição e interação com os outros), fobia específica (um medo intenso que leva à perda total de controlo), perturbação de pânico (medo que paralisa), perturbação obsessiva-compulsiva (pensamentos e ações que não se conseguem controlar), stress pós-traumático (medo e ansiedade associados a uma memória muito dolorosa).

“Após a ida às urgências, as crises mantiveram-se. Ao ponto de controlarem por completo a minha vida. Deixei de conseguir ir ao cinema, pois tive uma crise enquanto via um filme. Deixei de conseguir ver filmes em casa. Deixei de conseguir cozinhar. Ter de ir para a cama dormir era um drama, pois era o local e o momento onde eram despoletadas mais crises. Adormecer para mim era um alívio pois perdia a consciência de mim mesma. Acordar era um suplício. No momento em que abria os olhos para um novo dia, o meu corpo contraía-se imediatamente em tensão. Comecei por chorar enquanto ia para a escola, a estar em crise enquanto dava aulas, a sentir-me desfalecer enquanto falava, no intervalo, com as minhas colegas. Em casa, porque estava sozinha. Porque ia para a cama. Adormecia de madrugada, extenuada após uma crise… Acordava completamente derrotada… até ao momento em que desejei a morte. Não conseguia viver mais assim. Andava em tensão plena. Em crise constante. Num sufoco desmesurado. Achava que a morte era uma benesse, que me iria libertar de todo este sentir”, emociona-se esta professora.

Foi então que o médico de família diagnosticou a Marta a síndrome de ansiedade generalizada – um nome pomposo dado a uma doença moderna – e lhe receitou “uma medicação fortíssima”.

Marta Rodrigues resistiu à toma e decidiu que iria iniciar o processo da cura por outra via. Porque ter de lutar todos os dias para sobreviver mais um dia, não era para viver. Encontrou uma psicóloga especialista em crises de ansiedade e decidiu arriscar.

“Porque é que resisti à medicação? Porque não queria ficar dormente. Queria sentir na pele o que me perturbava, pois nunca me permitira fazê-lo: a morte prematura da minha mãe, a perda dos meus bebés… E senti finalmente. E recuperei. Não deixei de ter crises. Tinha-as muito esporadicamente. Duas ou três vezes num ano, após uma situação de stress. O que ainda não tinha conquistado eram ferramentas, no meu dia-a-dia, para lidar com a ansiedade diária, com o acumular do desassossego. Tanto que após três anos de clara bonança, comigo tudo mudou. O ambiente da escola… não sei… Demasiada tensão. Demasiada pressão. Demasiadas guerras e guerrilhas. As crises voltaram em força, diariamente. E no domingo à noite ainda eram piores. Daí ter deduzido que fosse o ambiente escolar que me estivesse a deprimir. Mas já tinha passado por escolas bem piores! E mantive-me sempre forte e firme. Então, qual a diferença?… Não só a tormenta de fantasmas na minha mente que nunca me abandonaram, mas, na realidade, nunca tinha aprendido a lidar com as crises. Ou seja, sei identificar uma crise e jogar com ela. Mas o que fazer diariamente para prevenir, evitar, recomeçar a viver? Porque as crises são uma forma de tortura que nos impingimos a nós mesmos. É a memória do nosso corpo. É a nossa memória. É como nos aprendemos a defender”, explica a professora que teve sempre do seu lado o marido. Foi aliás ele o primeiro, impulsionado pela preocupação, a procurar na internet os sintomas de que a mulher padecia e a dizer-lhe que sim, talvez fosse ansiedade, antes do médico de bata branca escrever num papel o diagnóstico.

Nessa altura, com batalhas diárias contra o corpo e a mente, Marta – que entretanto já tinha deixado a terapia – voltava a descer ao fundo do tal poço escuro onde a ansiedade a mergulhava. “No final de alguns meses, já não parecia a mesma pessoa. Sempre cansada, pois após cada batalha sinto que me passaram três camiões por cima, com olheiras e doente. Principalmente do estômago. Há dois meses, cheguei ao ponto de exaustão. Em casa do meu pai colapsei. Não conseguia comer. Não me aguentava nas pernas. O meu pai, assustadíssimo, levou-me às urgências, onde me senti desfalecer por diversas vezes. O médico ralhou comigo e enfiou-me medicação, literalmente, pela garganta a baixo, pois recusei-me a tomá-la. No hospital, estiveram de volta de mim uma hora e mesmo assim não melhorei. No dia seguinte, o meu médico de família receitou-me um ansiolítico e calmantes. Fraquinhos. Desta vez não recusei. Sentir-me extremamente desgastada não ajudou à recusa. E tomei. Agora, ainda medicada, mas já algo recuperada, decidi mudar a minha estratégia. O meu foco de combate é direcionado às crises”, acrescenta.

Agora Marta toma medicação para a ajudar a reerguer-se e diz que a há de deixar em breve. Faz exercícios de relaxamento físico e mental à noite, terapia, e está a fazer um curso de mental training, que a ajuda a treinar e a focar o cérebro para os lugares mentais onde se sente bem.

Os sintomas mais comuns da ansiedade-doença são:

– Ter dificuldade em controlar a preocupação, que tende a ser permanente durante mais de metade dos dias, durante pelo menos 6 meses, em torno de diversos acontecimentos ou atividades.

– A ansiedade e preocupação estão associadas com três (ou mais) dos seguintes sintomas:

  1. Agitação, nervosismo ou tensão interior;
  1. Fadiga fácil;
  1. Dificuldades de concentração ou mente vazia;
  1. Irritabilidade;
  1. Tensão muscular;
  1. Perturbações no sono (dificuldade em adormecer ou permanecer a dormir, ou sono agitado e insatisfatório).