Vacinas: a ciência sob ataque?

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Portugal pode ainda ser um dos países do mundo com maior taxa de população vacinada, mas é certo que também por cá começam a surgir vozes contra o uso das vacinas. Na opinião de quem as rejeita, as vacinas são hoje em dia aplicadas desnecessária e indiscriminadamente, com o único objetivo de contribuir para os lucros astronómicos das farmacêuticas. Segundo os especialistas, há que informar a população dos riscos da não-vacinação para deitar por terra os argumentos que tentam desacreditar os benefícios de uma das maiores armas da Ciência contra as doenças.

Manuel Carmo Gomes, professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e membro da Comissão Técnica de Vacinas da DGS, explica-nos de que forma atua uma vacina e por que é importante vacinar desde uma idade precoce. “Uma vacina apresenta ao nosso organismo alguns constituintes de um determinado microorganismo (em geral bactéria ou vírus) que, se nos infetasse, poderia causar a doença. Quando o sistema imunitário deteta esses constituintes, aprende a fabricar defesas (principalmente anticorpos) para os anular; além disso, memoriza o processo de fabrico. Se, no futuro, formos infetados pela bactéria ou vírus dessa vacina, o sistema imunitário constrói anticorpos de forma tão rápida que o microorganismo não tem tempo de se multiplicar nem de invadir os nossos órgãos; é anulado e, em geral, nem nos apercebemos de que fomos infetados. Na ausência da vacina, o microorganismo entra, multiplica-se, e tem tempo de se deslocar para certos orgãos onde vai causar doença, porque a aprendizagem inicial do sistema imunitário é em geral mais lenta do que o processo de multiplicação do microorganismo. É muito importante que a vacinação se inicie muito cedo na vida, porque um recém-nascido fica imediatamente sujeito a infeção. Embora nasça com algumas defesas herdadas da mãe, estas defesas perdem-se rapidamente ao fim de uns dias, deixando-o com um sistema imunitário muito imaturo e «ingénuo». Para ser infetado basta estar vivo. O bebé respira, é visitado por familiares, leva as mãos à boca e aos olhos, insere objetos na boca. Se for infetado por um microorganismo patogénico em dose suficiente, é altamente provável que desenvolva a doença e está comprovado que, quando contraídas no primeiro ano de vida, doenças como a tosse convulsa, parotidite, sarampo, etc., têm muito maior probabilidade de conduzir a hospitalização, quadros severos que deixam sequelas e, por vezes, à morte. Existe portanto toda a vantagem em «ensinar» o bebé a criar as suas próprias defesas num ambiente controlado e benigno, como o da vacinação, logo que isso seja possível, ou seja, em geral a partir dos 2 meses de idade”, indica o professor.

O poder da imunidade de grupo
As vacinas podem cumprir o seu papel com eficiência e proteger o indivíduo que as toma (com percentagens de eficácia a rondar os 95 a 98%), mas por vezes essa pequena brecha de falibilidade pode aumentar caso a imunidade de grupo não atue. “A administração de vacinas tem um efeito benéfico direto e outro indireto, mais subtil. O efeito direto da vacina consiste em proteger o vacinado. O efeito indireto resulta da diminuição da probabilidade de sermos infetados quando à nossa volta circulam maioritariamente indivíduos que foram vacinados. No limite, a probabilidade de sermos infetados é zero se à nossa volta só existirem indivíduos vacinados, mesmo que nós não sejamos vacinados. Acima de uma certa percentagem de vacinados (que pode ser calculada), a doença não causa mais do que pequenos surtos muito localizados e não se propaga a toda a população. Diz-se então que a população atingiu «imunidade de grupo». A percentagem de população vacinada necessária para se atingir imunidade de grupo situa-se em geral entre 92 e 97%, sendo habitual tomar 95% como referência. Em Portugal o sarampo foi eliminado desta forma em 1999-2000, um importante feito da saúde pública portuguesa de que muito poucos países se podem gabar”, explica Manuel Carmo Gomes.

Ana Relógio Fernandes, pediatra, acrescenta: “Não vacinar faz com que a criança permaneça suscetível a doenças evitáveis pela vacinação, que podem ser fatais ou levar a complicações e sequelas graves que podem incapacitar para toda a vida. Por outro lado, a recusa individual da vacinação compromete o interesse coletivo, uma vez que uma criança não vacinada por opção dos pais, se adoecer, pode contagiar outras crianças não vacinadas, por contraindicação médica comprovada, ou por ainda não terem idade para ter iniciado ou completado a vacinação.”

Vacinas: vítimas do seu próprio sucesso?
Apesar de serem uma das manifestações mais flagrantes do sucesso e do avanço da Ciência, as vacinas são objeto de contestação desde sempre. “Existem opositores à vacinação desde que há vacinação. No séc. XVIII a varíola era responsável por 8 a 20% (!!) das mortes na Europa e, quando a primeira vacina apareceu, nos jornais da época publicaram-se imagens cómicas de pessoas a transformarem-se em vacas após a toma.

As pessoas que se manifestam contra a vacinação fazem-no por uma variedade de falsas razões que em geral apenas traduzem desconhecimento científico. É necessário ter presente que todos os anos são administrados milhões e milhões de vacinas que estão centradas no primeiro ano de vida das crianças. Por outro lado, há acontecimentos inesperados que podem ocorrer nos primeiros meses de vida de uma criança e que ocorrem independentemente de haver vacinas ou não – tome-se o exemplo da síndrome da morte súbita do lactente, mais frequente até aos 6 meses. É raro acontecer, mas como ocorre nos primeiros meses de vida, a probabilidade de um acontecimento destes se dar após a toma de uma vacina é elevado, e mesmo as pessoas bem-intencionadas e inteligentes não resistem a associar as duas coisas”, indica Manuel Carmo Gomes. Segundo o professor, os detratores da vacinação não falam das consequências da diminuição das coberturas vacinais que se seguiram às suas campanhas. “Os países que diminuíram a administração da vacina DTP (difteria-tétano-pertussis) nos anos 1970-80, tiveram incidências de doença 10 a 100 vezes superiores aos que mantiveram coberturas vacinais altas. É possível demonstrar matematicamente que a diminuição da cobertura vacinal tem consequências inevitáveis (e rápidas) em termos de regresso de grandes epidemias. A controvérsia sobre a vacinas VASPR (sarampo-parotidite-rubéola) no Reino Unido e nos EUA, foi seguida por epidemias de sarampo que originaram mortes e sequelas desnecessárias, relativamente às quais estes grupos nunca assumiram responsabilidade.” O professor acredita que as novas tendências antivacinas tenham nascido precisamente da eficácia das mesmas, que levou ao quase desaparecimento de algumas doenças (difteria, polio, tétano, rubéola, sarampo, meningococo). “O facto de já não haver epidemias periódicas destas doenças fez com que algumas pessoas deixassem de valorizar o sofrimento e a mortalidade que elas causaram durante a maior parte da história da humanidade.”

A saúde pública posta em causa
Manuel Carmo Gomes aponta-nos alguns dados que revelam os danos causados pelas recentes modas antivacinação. “A falsa acusação de que existia uma associação entre a vacina VASPR e o autismo, nascida em 1998 e já desacreditada por estudos científicos, deixou sequelas porque muitos britânicos decidiram não vacinar os seus filhos. Em consequência, o Reino Unido teve um grande surto de sarampo entre 2008 e 2009 e em Espanha, onde só se tinham registado dois casos de sarampo em 2004, em 2010 já eram 1300. Algo semelhante, mas pior, ocorreu nos EUA. De acordo com o CDC americano, os EUA tiveram 23 surtos de sarampo em 2014, um triste record dos últimos 25 anos. Todos os comentadores (refiro-me a artigos do Washington Post) têm atribuído estes números ao crescendo do movimento antivacinação. Como alguns apontaram, o problema é que as pessoas que objetam às vacinas tendem a aglomerar-se nas mesmas comunidades e, quando o sarampo chega, desencadeia-se uma rápida cadeia de transmissão.”

Mas afinal, as vacinas são mesmo 100% seguras? Segundo Manuel Carmo Gomes, não há motivo para alarme relativamente aos efeitos secundários. “As vacinas podem ter efeitos adversos, mas a esmagadora maioria são benignos, como dor local transitória, inchaço no local da vacina. Pode também haver reações sistémicas como a febre, dores de cabeça ou mau estar, mas tudo isto, quando ocorre, é quase sempre transitório e não deve causar preocupação. Já há muitos anos que não são administradas vacinas que se possam considerar perigosas para a saúde. As reações alérgicas sérias são extremamente raras – é o caso das reações anafiláticas (1 caso em cada 50 000 a 1 000 000 doses de vacina).”
Ana Relógio Fernandes confessa que no seu dia a dia como pediatra ainda não encontrou pais que se recusassem a vacinar os filhos. “Até hoje ainda não me deparei com essa situação. Já me deparei, sim, com pais que manifestam alguns receios relativamente à segurança das vacinas mas, após o devido esclarecimento, compreendem a importância da vacinação e que os efeitos secundários são raros, estão identificados e são muito inferiores aos danos causados pelas doenças.”

Uma escolha informada
Ana Relógio Fernandes considera que o Plano Nacional de Vacinação atual está de acordo com as necessidades da população. “No entanto, penso que faria sentido alargar a vacinação contra o HPV (Papilomavirus humano) aos rapazes e que se deveria ponderar também a vacinação universal contra o Meningococo do gupo B.” Na opinião da pediatra, o PNV não deve ser imposto aos pais, mas sim continuar a ser uma opção. “Penso que não devemos tornar esta questão em obrigatório ou não obrigatório, mas sim apostar em campanhas de informação sobre os riscos de não vacinar.” Manuel Carmo Gomes concorda. “Em países como Portugal, onde felizmente existe uma atitude muito positiva da população relativamente à vacinação, a postura de dar opção aos pais tem tido sucesso e não vejo razão para a alterar. Poderia citar números, doença a doença, que ilustram o enorme êxito do nosso Programa Nacional de Vacinação. A obrigatoriedade poderia ter efeitos contraproducentes.”