Videojogos, um clube que já não é só de rapazes

Há quem acredite que as palavras ‘mulher’ e ‘videojogo’ não cabem na mesma frase a não ser que sejam acompanhadas por outras como ‘filhos’ ou ‘polémica’.

Os videojogos são daquelas coisas de que muito se fala mas pouco se sabe ou se procura saber. Trazem colados a si muitos mitos e uma carga mais negativa do que aquela que realmente merecem. Acusam-nos de fazerem mal às crianças e jovens, de serem violentos, e de serem uma coisa de homens, com o pior que isso pode representar. Um mundo que não só não interessa às mulheres como as trata de forma pejorativa. Mas será que é assim mesmo? Aqui vamos olhar o tema pela ótica feminina, através da opinião de algumas das portuguesas que trabalham neste universo.

É verdade que há polémica. Há personagens estereotipadas, uma certa visão redutora das mulheres e o seu retrato como meros objetos a serem conquistados, usados e abusados com o objetivo de agradar a um público específico. Há feministas zangadas e há reações exacerbadas por parte de alguns gamers e de elementos da própria indústria. E o caso GamerGate ilustra isso muito bem. No centro da ação está a canadiana Anita Sarkeesian, crítica de media e criadora de uma série de vídeos a focar a misoginia no universo dos videojogos, a ‘Troops vs Women in Video Games’. Os seus comentários geraram uma reação inesperada. Anita Sarkeesian foi perseguida e vítima de uma enxurrada de ameaças de violação e de morte. De tal forma que o caso chegou às primeiras páginas de jornais como o New York Times.

Elas jogam mesmo

Mas um olhar especializado sobre este mercado revela que, polémicas à parte, começa a haver mais mulheres a jogar. Um pouco por todo o mundo, a proporção entre jogadores homens e mulheres aproxima-se. Nos Estados Unidos, do total de jogadores em computador, consolas ou dispositivos móveis, 47% são mulheres e 53% homens, proporção que se repete em países como Austrália, Canadá, Bélgica, França, entre outros. As exceções são os casos extremos da China, em que são apenas 27% de mulheres contra 73% de homens a jogar; e do Japão, onde as mulheres representam 66% e os homens apenas 34. Em Portugal a proporção é de 43% de mulheres e 57% homens.

A crescer também, mas bem mais lentamente, está o número de mulheres a trabalhar nesta indústria. E mesmo em Portugal, onde as empresas/estúdios de videojogos não são muitas, começa a haver mulheres a ocuparem-se de funções criativas.

O que elas pensam

“Não me incomoda a maneira como são usados certos clichés e a forma como certas personagens são desenvolvidas”, comenta Daniela Fontes, diretora técnica da Mimicry Games, especializada em jogos de Realidade Virtual. “Isso não quer dizer que não haja uso gratuito desses elementos do ponto de vista de narrativa, e que não exista potencial para criar e explorar muitos outros tipos de jogos e experiências”, refere. Daniela, no entanto, não gosta do foco e da crítica em relação às personagens femininas em particular. “Existem muitas outras personagens a com pouca representatividade, ou com representatividade redutora.”


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Para Daniela Fontes, isso é o resultado da falta de diversidade no meio. “Tendo em conta que a maior parte dos desenvolvedores são homens de uma determinada faixa etária, com as mesmas referências culturais e backgrounds, não é de estranhar que possa haver mais diversidade e características que escapam a esse grupo”, observa.

Ana Waddington Bettencourt, designer gráfica de formação, que não se limita à parte visual dos jogos mas também escreve os enredos e faz game design, acredita que este é um reflexo da sociedade em que vivemos, daquilo que é suposto um rapaz e uma rapariga gostarem. Tem a ver também com o marketing, como acontece com os anúncios de televisão. “A ideia é vender. E, portanto, se o público era até agora maioritariamente masculino, era natural que buscassem elementos que o agradasse, como aumentar peitos ou criar grandes curvas.”

Sexy sim, submissa não

“Não acho mal criar uma mulher sexy”, defende a ilustradora Mariana Flores, já com um amplo portfolio de trabalhos na área dos videojogos em Portugal. “Acho mal fazer uma mulher sexy e submissa”, completa. “A mulher é uma força. Isso é algo para ser reconhecido. E pode ser com o fato que quisermos”, remata a recordar Frank Frazetta, ilustrador de personagens icónicas como Conan e Tarzan, “que desenhava tanto homens como [mulheres] guerreiras bastante expostos mas também bastante poderosos”.

“É importante criar um equilíbrio a nível de poderes”, sublinha Joana Franco, responsável pela empresa de jogos e animações Stories Studios, e professora de Concept Art e Animação na Etic. “Lembro-me de um jogo antigo, o Street Fighter, em que os rapazes escolhiam sem problemas personagens femininas por que estas tinham certos poderes interessantes que permitiam vencer os adversários. Nenhuma delas era especialmente sexy, mas os seus poderes estavam ao nível dos das personagens masculinas. Este é um bom exemplo de equilíbrio.”

E agora?

“Há empresas que começam a perceber a vantagem de ter mulheres na parte do desenvolvimento”, observa Ana Waddington Bettencourt. “Podem dar novas perspetivas aos jogos e estes virem a abranger outro tipo de público.”

Nas aulas que dá, Joana Franco ainda tem muito poucas alunas. “A maioria são rapazes. Mas elas são muito melhores. Têm uma mente mais abrangente e como não jogam tanto como eles não têm ideias preconcebidas em relação aos jogos. São muito mais aventureiras a criar conceitos novos”, explica.

“Não gosto de pensar que contribuo como mulher, mas sim como indivíduo com as minhas experiências e competências”, afirma Daniela Fontes. Outros problemas preocupam-na mais. Acredita que os videojogos deveriam ser encarados como produção cultural, e deixa no ar a pergunta: “Porque é que não se ensina crianças e adolescentes a consumi-la de forma crítica, como parte do currículo educativo, como se faz para a literatura, televisão?”


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