Fafá de Belém: ”Por amor, só não matei”

Tem 61 anos, 42 de carreira com 31 discos editados, uma gargalhada que contagia e uma das vozes mais consagradas da Música Popular Brasileira. Há quem diga que é brega. E depois? Fafá de Belém não está nem aí para essa conversa.

No Coliseu de Lisboa, dia 25, e no Coliseu Porto, a 26, a cantora vai recordar alguns dos seus maiores sucessos e apresentar o álbum Do Tamanho Certo para o Meu Sorriso. Dele, sabemos que é cheio, do tamanho do mundo, sempre pintado de vermelho e sempre quente!

Enquanto as luzes do palco não se acendem, Fafá de Belém denuncia os problemas da indústria discográfica, fala do amor, do sexo e da recuperação, sublinha que os valores de liberdade para as mulheres estão a recuar e lamenta que o Brasil – um país com “tanta esperança” e “tesão”- não procure encontrar a consistência.

Este álbum, que celebra os 40 anos da sua carreira, tem muita guitarrada da sua terra natal…

Sim, muita. São as chamadas guitarradas do Pará, que é uma forma específica de usar as guitarras e os violões. A guitarrada tem uma sonoridade livre, vai-se descobrindo e dá sempre uma enorme vontade de dançar. A sonoridade que está no disco é a da Amazónia Caribenha: é sensual, manhosa, gostosa. Eu entro e saio deste show com um sorriso de orelha a orelha e fico com vontade de cantar mais. É um reencontrar a minha Amazónia, os cheiros e as texturas, a temperatura e as cores da minha terra.

Do Tamanho Certo para o Meu Sorriso foi gravado em sua casa, em quatro dias, com as guitarras de Manoel e Felipe Cordeiro, ao contrário do que gostariam as editoras. Sempre fez o que quis?

Sempre. Nestes últimos anos em que não gravei discos achava tudo tão chato e monótono, tudo o que me chegava era careta e previsível. Já não gosto de estúdio. Então, pensei em fazer as minhas coisas, ir descobrindo e incluindo canções no meu repertório, mas sentia tudo um pouco burocrático. Aliás, eu também estava burocrática e não tinha percebido.

E quando é que percebeu?

Quando ouvi O Meu coração é brega. Fui transportada para a minha infância, para o cheiro da minha cidade, o cheiro de manga, da chuva, uma coisa fresca, livre… tudo isto me chegou com tanta força que comecei a costurar este disco. E só pensava na sonoridade do Manoel Cordeiro, que é dos maiores guitarristas e um grande mestre com quem nunca tinha trabalhado. Queria que fosse ele a produzir, queria que o Filipe, seu filho, tocasse também, e queria ter uma sonoridade livre. O disco foi ganhando forma e quando tentei passar à concretização ninguém o queria fazer.

Aliás, eu também estava burocrática e não tinha percebido.

O que as editoras sugeriam para os meus 40 anos de trabalho era um disco de salvação de carreira, um disco de duetos… Acontece que a minha carreira continua, está tranquila, não precisa de ser salva! Eu até nem imaginava que ainda havia espaço, no mainstream, para uma cantora que se retirou há praticamente 15 anos. Este disco foi uma loucura.

Foi um renascer?

Sim, um renascer, uma reinvenção. Foi maravilhosa a forma como o público recebeu este disco, que acabou por ser feito por nós, porque as editoras queriam fórmulas e eu não sou uma pessoa de fórmulas. Acho muito chato alguém sentar-se em cima da sua história e dizer: ‘sabe quem eu sou?’ Até porque todos os dias nós somos pessoas diferentes.

Enquanto artista e enquanto mulher que conquista teve e continua a ter mais impacto na sua vida?

A liberdade. Eu sempre fui uma menina muito curiosa, de saber como o outro funciona e tive pais maravilhosos que promoveram isso. Nunca pensei, por exemplo, em casar. Queria, sim, ter filhos e ter amigos e namorados, mas acima de tudo queria conhecer o mundo. Então, o que mais encanta é tê-lo descoberto, ter encontrado pessoas, paladares, cheiros. Quando era criança, queria uma profissão que me desse liberdade e pagasse as contas. Pensava ser psicóloga, nunca imaginei que seria a música a dar-me isso. Sempre fiz questão em me ‘bancar’ e isso é uma opção que tem de ser muito clara, seja o que se escolha para a vida. Por exemplo, a minha filha adora cantar mas diz que não nasceu para ser cantora. Ela é blogger e escreve sobre crianças. Tem a sua profissão, que adora, e adora ser mãe de família, organizar a casa…

Essa nunca foi a sua praia?

Nunca. A minha praia sempre foi ir, ir, ir. Por exemplo, para mim, descansar é abrir olhos para o mundo, não é ficar em casa a olhar para o teto. Isso é a morte. Se eu consegui alguma coisa nestes 42 anos de profissão foi a oportunidade de andar pelo mundo e ganhar novos olhares.

Gosta de o fazer sozinha?

Adoro viajar sozinha. Gosto de almoçar e de jantar comigo. Gosto de estar comigo, de escrever… No outro dia, já em Lisboa, foi desmarcado um almoço com um amigo. Então fui a um restaurante que conheço, disse que estava sozinha, prepararam uma mesinha para mim e eu fiquei ali, diante do Tejo, a comer peixe, a escrever, a beber um vinho e num estado de felicidade enorme.

A Fafá canta todo um rol de músicas que falam de amor. Que coisa mais louca já fez por amor?

Por amor, só não matei. Mas morri muitas vezes.

Como se refaz do fim? Como se volta ao início?

É para falar?

É.

Pega-se um bom whisky, um disco de rasgar os pulsos e chora-se. Escrevem-se mensagens desaforadas, depois morre-se de vergonha… (risos) Um amor só se cura – e só assim vale a pena – quando se lava tudo com lágrimas. E depois passa, vai passando. Eu adoro apaixonar-me.

E agora, está apaixonada?

Não, mas adoraria!

[Fotografia: Jorge Amaral/Global Imagens]
Falou dos seus pais e de como lhe permitiram ser livre. A Fafá, na adolescência, usava grandes decotes e saía para dançar com a família em bordéis.

O meu pai era uma figura fabulosa e a minha mãe também. Era ela que dizia, ‘Fátima, abre um botão nesse decote, que o que é bom é para se ver’.Quem fazia as minhas roupas era a minha mãe. Do meu pai herdei o gosto pela literatura. Ele adorava ler. A minha casa tinha sempre a porta aberta e discutía-se política, havia mesa farta e o violão. Deu-me uma base muito saudável. Despertou em mim a vontade de conhecer gente. Nasci e cresci no meio de um estado democrático e devo isso aos meus pais. Também a frontalidade. Nestes 42 anos de carreira, nunca me submeti a uma peça de marketing. Também a liberdade de me ouvir, devo-lhes a eles.

Na década de 70, como eram entendidos estes comportamentos? Alguma vez se sentiu julgada pelos decotes, pelas saídas, por essa liberdade?

Muitas vezes. Desde criança que aprendi a administrar o não. Eu não era aquela menina comportada, a que queria aprender piano, recortar as roupas para as bonecas… Não sei ser hipócrita e já me bati com pessoas com as quais não podia. Entretanto, entendi que as portas que se fecharam por conta da minha frontalidade e espontaneidade foram as que nunca deveriam ter sido abertas.

Era a minha mãe que dizia: ‘Fátima, abre um botão nesse decote, que o que é bom é para se ver’.Quem fazia as minhas roupas era ela. Do meu pai herdei o gosto pela literatura.

Saí de casa com 16 anos, a minha música explodiu quando tinha 17. Eu era uma menina, não sabia nada. A primeira vez que me reconheceram na rua, fui para casa e chorei a tarde toda. Não sabia o que era aquilo e, até hoje, tenho paranóia em relação à minha privacidade, à minha casa, namorados, filha, neta, amigos. Tenho pavor de exposição. Às vezes assusta-me o mundo de hoje em que tudo é colocado nas capas das revistas. Mas a vida trouxe-me muitas experiências – umas agradáveis, outras desagradáveis – que fortaleceram a personagem Fafá.

Nunca fraquejou perante as críticas?

Muitas vezes. Já chorei muito. Quando gravei a primeira música popular, Memórias, a crítica chamou-me de brega e até aí tudo bem, não gostavam do estilo. Ok! Mas não conseguia entender porque é que as pessoas me ofendiam pessoalmente. A primeira vez que eu tive uma crítica muito violenta, disseram tudo e mais um pouco. E das 40 pessoas que frequentavam a minha casa, ficaram três. Mas passaria por tudo de novo, porque essas experiências mostraram-me a realidade, na qual as pessoas não são livres, estão sempre a julgar.

E há ainda muito julgamento quando se fala, por exemplo, do desejo da mulher, que é um tema que a Fafá traz constantemente para o seu repertório.

Muito. E uma coisa é sexo e outra é amor. Quando estão juntos, é perigosíssimo (risos).

Este tabu – como tantos outros – acaba por ser alimentado até pela educação que é dada às nossas crianças. Enquanto mãe, como abordou estes temas do desejo, do sexo e do prazer com a sua filha?

Sempre conversei com ela sobre a vida. Sexualidade é como a música: tem de ser lentamente construída. As crianças começaram a ter uma erotização muito cedo, sem saber sequer o que isso é. Acho horrível, porque estamos a queimar etapas sem a descoberta. Hoje, fico chocada com o funk, com meninas de 11 anos a dançar sem cuecas, a filmar e a enviar para os rapazes. Uns dizem que é modernidade. Isso não é modernidade. A mulher é dona do seu corpo quando ela sabe o que é o seu corpo e quando sabe o que fazer com ele. O Tchan, Na Boquinha da Garrafa, essas músicas foram uma regressão imensa da liberdade da mulher. Porque ela voltou a ser uma peça de carne achando que aquilo é liberdade. A descoberta da sexualidade é lenta, é gradual, é prazenteira. E foi isto que tentei passar à milha filha.

Para terminar e pegando neste fenómeno do funk que acaba de descrever lembro a campanha ‘A reconstrução do Brasil – contagem regressiva 2018’. Nesta campanha, a Fafá alerta para o vazio das frases feitas. Qual é a frase feita, sobre o seu país, sobre a política e o povo brasileiro, que mais a irrita?

Queremos diretas já’. Porque as diretas já foram aprovadas nos anos 80. Quando eu vejo meninas de 30 anos a pedir diretas, digo: ‘mas nós temos diretas, nunca votaram?’ E a resposta é: ‘Ah! Nessa época viajo’. Esta dicotomia entre a frase feita e o raciocínio é o que mais me incomoda. Estamos a viver no mundo da Internet, onde uma frase de efeito se transforma numa bandeira da qual ninguém sabe a origem. Temos um Brasil partido ao meio, muito facilmente manipulável. Temos uma juventude que quer participar, sem saber como nem por onde, sem pesquisar, sem aprofundar, sem conhecer a sua história. Assusta-me olhar e ver pessoas a agitarem bandeiras sem saberem a profundidade do mastro. Aflige-me ver este país com tanta esperança, tanta possibilidade e tanto tesão a não buscar consistência.

Petra Alves

Imagem de destaque: Jorge Amaral/Global Imagens