Glúten: vilão ou vítima da moda?

pão-de-leite

À medida que as alergias alimentares crescem – a Universidade Northwestern (EUA) mostrou que, nos últimos cinco anos, o número de internamentos e consultas hospitalares relacionados com esta condição aumentou cerca de 30% por ano – não param de surgir novos regimes alimentares que prometem melhor qualidade de vida. Um dos que tem ganho popularidade é a dieta sem glúten, até há pouco apenas seguida pelos celíacos, pessoas alérgicas a esta proteína. Agora, a questão que se coloca é: não comer glúten apresenta benefícios para as pessoas saudáveis?

“Não”, diz a nutricionista e autora do livro Sumos e Águas Detox, Lillian Barros, “A não ser quem tenha algum tipo de intolerância, não”. No entanto, deixar de consumir glúten tem vantagens para quem pretende perder peso, pois, esclarece a especialista, “esta proteína presente na maioria dos cereais, também integra grande parte dos alimentos processados que, ao serem evitados, deixam as pessoas mais desintoxicadas e, logo, desinchadas”. É que apesar do glúten estar associado ao pão e massas, também está presente em salsichas, fiambre, patês e refeições congeladas, entre muitos outros alimentos que povoam as prateleiras dos supermercados.

“Já os celíacos, que se estima sejam cerca de um por cento da população, não podem de todo ingeri-lo”, adverte Lillian. A doença, uma condição inflamatória crónica do intestino delgado, pode ser assintomática ou apresentar um quadro de sintomas clássicos como diarreia, flatulência, dor abdominal, dermatite ou fadiga crónica – condicionando gravemente a qualidade de vida do doente – e é detetada mediante análises clínicas e biópsia intestinal. “Neste caso, nem usar uma torradeira que esteve em contacto com o pão normal é aconselhável”, explica a nutricionista.

Ana Rita Lopes, coordenadora da área de nutrição clínica do Hospital Lusíadas, concorda com Lillian Barros, embora ressalve que “alguns estudos mostram-nos benefícios numa exclusão temporária do glúten em doentes com síndrome do cólon irritável”.

No que toca aos celíacos recomenda que façam uma leitura atenta dos rótulos alimentares; armazenem os alimentos sem glúten separadamente e devidamente identificados; utilizem utensílios diferentes para a confeção e manipulação dos seus alimentos, assim como uma torradeira/tostadeira e óleos de fritura exclusivos; e, fora de casa, questionem sempre quais os ingredientes usados na confeção das suas refeições.

“Devem evitar os molhos, que têm frequentemente adição de farinha de trigo, assim como fritos, que podem ter sido preparados com óleos onde foram cozinhados produtos com glúten”, acrescenta. “Quanto às sobremesas, as melhores opções são a fruta fresca ou gelados isentos de glúten”.

Novos caminhos antiglúten

Nem todos os estudiosos da alimentação concordam que o glúten seja incólume para a maioria. Humberto Tomás, terapeuta formado em acupuntura pela Nanjing University of Traditional Chinese Medicine, alerta para as conclusões de nutricionistas e pesquisadores, como por exemplo Dr. Joseph Mercola, autor de The No-Grain Diet… e Sayer Ji, de The Dark Side of Wheat – New Perspetives on Celiac Disease & Wheat Intoleranc. “Ambos verificaram consistentemente na prática clínica que, ao se excluir o glúten da dieta dos pacientes mesmo que não celíacos, a sua saúde, independentemente dos sintomas apresentados, melhorava substancialmente”.

E, acrescenta, “apesar do conhecimento geral de que o açúcar tem um óbvio impacto negativo na saúde, facilmente identificável por cáries dentárias, hiperatividade, o aumento pouco saudável da glicose e insulina no sangue, já o consumo do pão vulgar só está associado à doença celíaca e não a outros sintomas que a transcendam, como enxaquecas, depressão, eczemas e dermatites diversas, doenças autoimunes, sinusite e/ou rinite, cancro intestinal, demência e epilepsia”.

Humberto Tomás, que recentemente lançou o livro Nutrição, Energia-Vitalidade-Saúde na Vida Diária e Desporto (2015) explica: “É que o trigo que se consome hoje em dia é muito diferente do dos nossos antepassados, porque foi intensamente manipulado/hibridizado nos anos 60 e 70 do século passado, em busca do máximo teor de amido e glúten, exatamente os elementos essenciais da estética e textura (elástica) normalmente almejados nos produtos derivados do trigo.”


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Então o que aconteceu ao cereal que os nossos avós consumiam? Sofreu modificações de alguns dos genomas, o D em particular, apontado como a fonte principal de uma proteína, a gliadina – potencial desencadeadora não só da doença celíaca, como de outros efeitos negativos sobre a parede intestinal.

“Este facto tem várias implicações para a saúde em geral, pois sabemos a importância da saúde intestinal para uma eficaz absorção de nutrientes, equilíbrio do sistema imunitário, e da saúde quer física quer emocional”, alerta Humberto Tomás.

“O desenvolvimento da permeabilidade intestinal é um fator chave no despoletar de reações inflamatórias e nas doenças autoimunes, já que favorece a passagem anormal no intestino, depois do tubo digestivo, de fragmentos de proteínas ou antigéneos que podem desencadear uma resposta do sistema imunitário”, conclui.

Mais: o glúten pode causar algo semelhante à adição. Na sua composição atual “torna-se numa mistura de polipeptídios (cadeia de aminoácidos) – que são aditivos, estimulam o apetite e conseguem atravessar a barreira hemato-encefálica, o mesmo recetor ao qual os narcóticos se ligam, criando um efeito no cérebro que, embora de prazer, é viciante”, explica Humberto Tomás. Pois é. Quem não sonha com pizas, croissants e tostas mistas volta e meia todos os dias?

A investigadora Christine Zioudrou e os seus colegas do National Institute of Health (EUA), que apelidaram de exorfinas estes polipetídeos, relacionaram-nos com problemas como esquizofrenia e autismo, mas também a desvios comportamentais, como apetite desenfreado e distúrbios alimentares diversos.

“De qualquer forma os efeitos mais simples são reversíveis”, tranquiliza Humberto, “se se deixar de comer trigo o efeito dissipa-se e o cérebro recupera”.

Nada como experimentar

Perante perspetivas cada vez mais distintas e controversas nada como testar na própria pele se o glúten lhe é ou não prejudicial, ou se desenvolveu, eventualmente, alguma intolerância. “Os sintomas associados são semelhantes aos sofridos pelos celíacos, mas menos acentuados”, diz Lillian Barros.

A intolerância pode ser aferida mediante análises. “Mas quem não quiser ou não puder suportar os custos, que podem ascender aos 300 euros, consegue através da eliminação do glúten da sua dieta durante duas ou três semanas, e posterior reintrodução, perceber se este é ou não causador de algum tipo de mal-estar”, aconselha.

Durante esse período devem evitar-se todos os cereais à exceção do arroz, milho, sorgo, quinoa e amaranto. Quanto à aveia, apesar de não ter glúten, por ser cultivada e processada juntamente com o trigo, pode conter vestígios, pelo que não deve ser consumida a não ser que na embalagem tenha a indicação de que é “gluten free”.

Mas atenção que não é preciso deixar de comer massa ou pão; já há várias marcas disponíveis no mercado com produto sem glúten. E quem pretender uma alimentação ainda mais natural e saudável pode fazer bolos, pão, quiches ou piza em casa, com misturas de farinha de alfarroba, bolota, arroz ou trigo sarraceno (que é uma semente), entre outras. Depois há que estar atento aos rótulos dos alimentos e manter a disciplina.

Humberto Tomás avisa, no entanto, que não será fácil: “Mesmo nas casas de produtos naturais, muitos alimentos excluem o glúten mas contêm outras substâncias pouco saudáveis como açúcar, aromatizantes, intensificadores de sabor, soja, ou milho (em geral transgénico, à exceção do biológico), óleos vegetais refinados, e sal comercial, entre outros, o que quanto a mim não os tornam alternativas viáveis.”

Uma garantia os três especialistas dão: após este período de purificação – se realmente conseguida – perceberá melhor quais os alimentos mais favoráveis ao seu metabolismo. E, mesmo que o glúten não seja o seu maior inimigo, terá perdido alguns centímetros e desintoxicado sobretudo o intestino, fígado e pâncreas.