
Ana Gomes é uma das duas mulheres anunciadas – a par de Marisa Matias – na corrida presidencial a Belém. A antiga diplomata e eurodeputada, de 66 anos, é também agora protagonista de um livro onde revela, em entrevista, o seu percurso de vida, as suas reflexões até decidir formalizar a candidatura ao mais alto cargo do país e as suas ambições.
Em Ana Gomes, a Vida e o Mundo [Editora Palimpsesto], a socialista – que corre sem o apoio formal do PS, que deu liberdade de voto, neste sufrágio – conta detalhes da sua vida privada que a maioria desconhece.
Uma obra que resulta de cerca de 20 horas de entrevista com João Pedro Henriques, jornalista do Diário de Notícias, especialista em Política Nacional, e que tiveram lugar em várias manhãs, num apartamento em Cascais, pertença de Ana Gomes e do marido, António Franco, que morreu em julho, e que era conhecida, num detalhe de humor negro, como a casa da viúva.
Veja alguns detalhes da vida e percurso da anunciada candidata à chefia de Estado e ao lugar que está agora nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa. Recorde-se que os vários proponentes às eleições estão em fase de recolha de assinaturas dos cidadãos, que devem ser entregues no Tribunal Constitucional, validadas. Só mediante cumprimento integral deste processo é que haverá lugar a uma formalização da corrida às presidenciais, marcadas para janeiro de 2021.
Primeira classificada:
Ana Gomes candidata-se à carreira diplomática num concurso do Ministério dos Negócios Estrangeiros em 1980 e fica em primeiro lugar. “Candidatei-me, fui desportivamente e tive muita sorte: fiquei em primeiro lugar!”, refere na entrevista. Olhando para trás, Ana Gomes fala, primeiro, em “sorte”. E desenvolve: “Na prova escrita saiu um tema que eu lecionava como monitora na faculdade, sobre comércio internacional. E foram quatro horas a escrever, sem precisar de raciocinar. Conhecia a matéria de trás para diante. E na oral volto a ser sortuda, pois no sorteio entre os 80 temas sai-me exatamente um sobre a integração de Portugal na UE [União Europeia], que era também assunto que eu tinha aprofundado, justamente na cadeira de Direito Internacional Público”.
Revista feminina e a ida para Jacarta
Ser embaixadora em Jacarta foi uma história que, para Ana Gomes, começou numa revista feminina, por alturas de 1995. “Por essa altura, Leonor Xavier [então jornalista da revista Máxima] pede para eu lhe dar uma entrevista, como jovem mulher diplomata. E o secretário-geral do MNE de então, que era o meu querido António Costa Lobo, autoriza”, começa por desfiar. Nessa entrevista, Ana Gomes revela que uma das suas “aspirações como diplomata é um dia ser embaixadora de Portugal na Indonésia”. Jaime Gama, então ministro com a pasta dos Negócios Estrangeiros terá ouvido – e lido, possivelmente – as ambições da diplomata.
Dois casamentos
Ana Gomes foi casada por duas vezes: a primeira com um colega da Faculdade de Direito, António Monteiro Cardoso, em plena revolução de 1974. Sobre esse momento, conta a eurodeputada: “Casámos a 20 de Maio de 1974, numa conservatória em Alcântara e almoçámos num restaurante ali perto, o Galão, com os meus pais, os pais e a irmã dele e o Tó Luís [António Luís Cotrim], que era o meu padrinho. Nem vesti nada de especial. Não tenho sequer nenhuma fotografia do casamento! É horrível, mas é verdade. Não tenho nem uma fotografia do meu casamento com o Toné. Não ligávamos a esses tiques burgueses! Casámos e fomos logo para a revolução a todo o vapor, ou seja, trabalhar em qualquer tarefa, aí sim, assumidamente, já ao serviço do MRPP. Gostávamos muito um do outro, claro”. Tiveram uma filha, Joana.
Separava-se cerca de um ano depois. Mais tarde, casaria com António Franco, com quem ficaria até que, como escreve o autor, a “morte os separasse”.
Mulheres e carreira diplomática:
“Vi resistência de alguns diplomatas mais velhos e vi resistência de algumas mulheres de diplomatas. A certa altura, num almoço de despedida de uma grande funcionária administrativa que se ia reformar, a D. Diamantina – uma tradição do MNE, estes almoços –, estou sentada numa mesa e ao meu lado está um diplomata, aí a meio da carreira, nem me lembro bem quem era, que começa a puxar a conversa. E diz que isto das mulheres na carreira é uma estupidez, isto não é trabalho para mulheres e outras foleirices bacocas”, recorda Ana Gomes, olhando para as barreiras sociais que persistiam há depois da revolução.
Na altura, recorda no livro, Ana responde-lhe: “Ele estava enganado, que este era o tipo de trabalho que até exigia muita sensibilidade feminina e, tanto assim era, que bastava olhar para a carreira e ver que estava cheia de gays!” “E digo que são pessoas que têm uma outra sensibilidade que não é a sensibilidade masculina típica, o que do meu ponto de vista demonstra que isto é uma carreira também para mulheres. Isto foi um argumento ad terrorem para um certo tipo de machões, para reagir a um chorrilho de reacionarices também ad terrorem! Quem na mesa ouviu ficou siderado, ninguém esperava que uma franganita recém-admitida se saísse com aquela…”
A filha e o “sentimento de culpa”
Ana Gomes conciliava o curso de Direito, as lutas do MRPP – onde esteve com Durão Barroso, ainda que com incompatibilidades partidárias – e a maternidade. Mas há um dia em que tudo mudou. “Nessa altura [janeiro de 1976], dedicava todo o meu tempo ao MRPP, o que só era possível porque tinha uma retaguarda fabulosa, que eram os meus sogros e a minha cunhada, que tomavam conta da bebé sempre que nós pedíamos. Mas um dia, naquela cena do traz a alcofinha, mete a alcofinha, para trás e para diante com a bebé, ela apanha uma pneumonia”, recorda Ana Gomes. E desfia: “Aos seis meses de idade [de Joana]. E eu tenho de ir para casa, um mês, praticamente sozinha, para curar a miúda, cheia de sentimentos de culpa […] em relação à minha filha!”. “Começo a pensar que aquilo não fazia sentido nenhum, a cena da revolução a todo o vapor… E ainda por cima os moderados tinham vencido no 25 de Novembro – e o MRPP tinha estado do lado deles. Eu tinha vivido esses dias na sede central. E portanto não podíamos estar ao lado de uma via democrática e ao mesmo tempo a contestá-la, exigindo a via revolucionária. Esse mês em casa para mim foi muito importante e fez-me decidir que não queria mais militância no MRPP. Era Janeiro de 1976. Decido voltar à faculdade, acabar o curso, e apostar no regime democrático”, recorda.
Luta armada
Na obra, a anunciada candidata à Presidência da República revela que se via a recorrer à luta armada para “defender a democracia e a liberdade” contra “fascismo e ditadura”. “Se hoje voltássemos a estar sob fascismo e ditadura, se fosse preciso, ainda faria o mesmo ou mais. E se fosse preciso hoje, para defender a democracia e a liberdade, até pegava em armas, disto não tenho dúvida nenhuma”, afirmou na entrevista.