‘A Amazona Portuguesa’: Quando ser homem é mais fácil que ser mulher

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A desigualdade entre géneros não é de agora e o livro A Amazona Portuguesa prova isso mesmo. O terceiro romance histórico de Mário Silva Carvalho, 69 anos, relata a vida de uma mulher nascida no final do século XVI a quem, provavelmente, a sorte só sorriu por ter encarnado o papel de um rapaz.

Bem à frente do seu tempo, Antónia Rodrigues – assim se chama a protagonista da obra – ignora os padrões impostos pela sociedade, sendo fiel aos seus gostos e personalidade. Corre atrás dos sonhos de menina, revelando-se uma mulher independente, valente e corajosa.

Em entrevista ao Delas.pt, Mário Carvalho falou sobre esta mulher empoderada que nos faz refletir sobre o papel da mulher e as suas capacidades.

Mário Silva Carvalho com o livro “A Amazona Portuguesa” [Fotografia: Gerardo Santos / Global Imagens]
Sendo este um romance histórico, teve de conjugar ficção e realidade. Como é trabalhar esses dois elementos juntos?

Eles lutam um bocado entre si. Às vezes gostaríamos de dar mais azo à ficção, mas não nos podemos esquecer que temos de respeitar a História. Há um conjunto de acontecimentos e figuras que têm que ser respeitadas. Neste livro, estamos a falar de um período muito recuado, em que a documentação é escassa, tendo recorrido, na primeira fase, a obras que falavam de Antónia Rodrigues, uma guerreira portuguesa que passou anos em Mazagão. Há vários livros e documentos que contam a história dessa terra e que referem Antónia.

E quem é Antónia Rodrigues?

Antónia Rodrigues é uma menina, nascida em Aveiro, por volta de 1580. De origem humilde, teve uma infância complexa, difícil e magra. Aos 13 anos, ruma a Lisboa e, a pedido dos pais, fica na casa de uma irmã, que se revela uma mulher indiferente e sem afetos. Um dia, decide partir à aventura e entende que a forma mais segura de o fazer é disfarçar-se de rapaz.

“Gostava de brincar na areia com espadas, atirar pedras, mergulhar na água da ria e brincadeiras com bonecas ou com o fuso não eram com ela. Mesmo as tarefas domésticas nas quais a mãe insistia que ela ajudasse, não lhe diziam muito”

Foi um disfarce difícil de manter?

Nem por isso. Ela era “arrapazada”, como dizemos em linguagem corrente: uma maria-rapaz, como muitas outras. Gostava de brincar na areia com espadas, atirar pedras, mergulhar na água da ria e brincadeiras com bonecas ou com o fuso não eram com ela. Mesmo as tarefas domésticas nas quais a mãe insistia que ela ajudasse, não lhe diziam muito. Como desde pequena acompanhava o pai na pesca da Ria de Aveiro, dominava as artes da marinhagem. Decide, por isso, assumir o papel de grumete e utilizar os seus conhecimentos para disfarçar a sua condição de menina. Não foi muito original, passou de Antónia Rodrigues a António Rodrigues e é assim que se apresenta nas margens do Tejo, questionando em cada nau e caravela se precisam de um ajudante. Consegue integrar na tripulação de uma caravela que partia para Mazagão e lá foi.

E fisicamente? Como se camufla Antónia Rodrigues dando origem a António?

É uma mulher envolta em ligaduras, para esconder o peito, e usa ceroulas constantemente. Há apenas um testemunho contemporâneo da vida dela e que a retrata. Pertence ao juiz Nuno Duarte Leão, desembargador da Casa da Suplicação que era o Supremo Tribunal de Justiça na altura. Ele diz que conheceu Antónia Rodrigues e descreve-a como uma menina delicada e pequenina. Era muito recatada no que dizia, até porque quanto mais falasse, mais perguntas lhe fariam. Por isso era uma pessoa muito discreta. Andaria com certeza sempre com o coração nas mãos, pois sabia que não podia facilitar.

“Além disso, Antónia perseguia um sonho, naquela altura raríssimo: aprender a ler e a escrever. Esta ambição surgiu quando descobriu que as meninas também podiam saber ler e escrever, quando um dia, em Aveiro, viu uma menina a ler num convento”

Antónia Rodrigues permanece como António durante alguns anos. O facto de se apresentar como rapaz traz-lhe benefícios?

Sim. A razão primeira dela se ter assumido como rapaz foi por uma questão de segurança, de sobrevivência. Uma menina sozinha em Lisboa não era fácil. Sendo rapaz era apenas mais um, havia tantos abandonados nas ruas. As raparigas estavam em casa ou em conventos. Além disso, Antónia perseguia um sonho, naquela altura raríssimo: aprender a ler e a escrever. Esta ambição surgiu quando descobriu, um dia, em Aveiro, uma menina a ler num convento. Nessa altura apenas cerca de 2% da população devia ter acesso à educação, sendo a percentagem de mulheres muito menor. Só as filhas dos nobres, e nem todas, tinham esse privilégio. Ela aprender foi um feito conseguido em Mazagão e só porque se apresentava como rapaz.

E atualmente? Continua a ser mais fácil quando se é homem?

Hoje os desafios são completamente diferentes. Tenho uma carreira na banca e nos seguros e ao longo do meu percurso profissional tive diretores gerais mulheres. Diria que hoje, apesar de não haver uma paridade completa, as tarefas das mulheres são muito diferentes das de tempos passados. Atualmente, na sociedade portuguesa, já encontramos o sexo feminino em cargos importantes e de chefia. Pode haver limitações, mas os obstáculos do passado eram muito maiores. Eu tenho quase 70 anos e há 50 era considerado de mau tom uma mulher fumar na rua, por exemplo. Só no século XX é que o papel da mulher muda, de facto. O século XIX é marcado pela figura da mulher como dona da casa, sendo esta considerada uma mulher perdida quando encontrada sozinha na rua a uma certa hora. Na altura de Antónia Rodrigues, início do século XVII, as senhoras donas só se deveriam ausentar de casa de cabeça tapada e acompanhadas pelo marido, deveriam manter-se no recato do domicílio, salvo quando iam à igreja. Caso contrário, eram vistas com maus olhos. Antónia contrariava tudo isso. Ela não se enquadrava nos padrões da época.

Antónia Rodrigues era, então, uma mulher à frente do seu tempo?

Completamente. Diria que é uma mulher que conseguiu dominar as suas circunstâncias. Conseguiu encontrar caminhos, encontrar respostas para as dificuldades que tinha. Ultrapassando o seu estatuto de mulher, transformou-se num homem durante aqueles anos. Ela viveu par a par com outros homens e agia como um. Concretiza vários atos de guerra, era uma mulher valente. Mas claro que, ao longo da vida, vai tendo vários sobressaltos, por ter medo de ser descoberta. Ela sabe que por baixo da couraça de guerra ela é uma mulher.

“E se eu cair num campo de batalha, quando começarem a desbravar o meu corpo, descobrirem que por baixo da minha carapaça existe um corpo de mulher?”

A certa altura, Antónia Rodrigues começa a despertar algumas paixões – enquanto António. É uma forma de reforçar o seu disfarce?

Claro. Ela entra no jogo e as meninas de Mazagão começam a simpatizar com o cavaleiro António Rodrigues. Podemos imaginar: um soldado delicado, com mãos pequenas e linguagem diferente da dos outros soldados, brigões e gabarolas… Ao início, Antónia entende que seria bom para o seu disfarce, por isso responde aos versos de amor que as meninas lhe mandavam. Até que acontece o inevitável: uma delas ganha uma paixão enorme por ela. Beatriz, filha de um senhor muito importante e poderoso de Mazagão, quando vê o seu amor ser negado, cai de cama doente.

É nessa altura que Antónia deixa cair a máscara?

Quando viu que não tinha saída, Antónia decide revelar o seu segredo e confessa ser uma mulher. Para salvar a Beatriz que estava a definhar, ela destrói o seu projeto de vida, o seu embuste. Em termos práticos, se isso não tivesse acontecido ela podia ter morrido anonimamente como homem, ela própria invoca isso dizendo algo como: “E se eu cair num campo de batalha, quando começarem a desbravar o meu corpo, descobrirem que por baixo da minha carapaça existe um corpo de mulher?” Foi a valentia dela que impôs esse estatuto de respeito. Mesmo os antigos companheiros fugiam de conversar com Antónia, porque ela sabia as “conversas de homem”. Por outro lado, também lhe reconheciam o valor, porque lutaram ao lado dela, sabiam e reconheciam a sua valentia, por vezes maior que a deles. A Antónia passou a mulher mas não perdeu qualidade guerreiras.

E como é que o Mário Carvalho descobriu Antónia Rodrigues?

Há cerca de quatro anos, fui a Aveiro, ao mercado do peixe, e vi uma placa sobre Antónia Rodrigues. Na altura andava à procura de um tema, andava a dançar entre várias possibilidades e esta foi mais uma. Cheguei a casa, comecei a pesquisar, a procurar livros sobre esta figura e a partir daí já não parei, sendo o resultado este livro.

 

[Imagem de destaque: Gerardo Santos / Global Imagens]

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