A mulher merecia. A culpa é sempre nossa

Quem ler o Acórdão do Tribunal do Porto relativo ao caso de violência sobre uma mulher em Felgueiras, de uma ponta à outra, fica a saber que a mulher merecia o enxerto de pancada que recebeu com um pau cravejado de pregos. Esta não é a minha opinião, mas é uma opinião que se consegue formar a partir da confirmação da sentença de um ano de pena suspensa para um agressor e uma multa pecuniária para o outro. Sim, há dois homens envolvidos – um ex-marido e um ex-amante, em conluio – na agressão à mulher de Felgueiras.

A representação da justiça costuma ter dois pratos com a mesma medida. Vamos por nos pratos, e com palavras simples, as partes:

  1. Uma mulher casada fez sexo com outro homem que não o marido.
  2. Dois homens adultos juntaram-se para bater nessa mulher.

Vamos agora por os resultados destas ações nos mesmos pratos:

  1. A mulher foi agredida “na cara: ferida corto-contusa com 2 cm, suturada com 5 pontos de seda na região frontal; –no pescoço: lesão abrasiva na região ântero-lateral direita numa área de 3×4 cm; -no tórax:-equimose de 5×4 cm na mama esquerda, » escoriação de 7 cm na mama direita; * equimose de 4×4 cm na omoplata esquerda; –no abdómen: equimose de 10×4 cm na região do flanco esquerdo; – no braço direito: 15 escoriações lineares na região posterior do braço, a maior das quais com 8 cm de comprimento, 9 equimoses na região anterior do braço e antebraço, a maior das quais com 6×3 cm e equimose na região posterior do polegar de 6×1 cm; – no braço esquerdo: equimose de 12×11 cm na região posterior do 1/3 médio do braço; equimose de 9×4 cm na região posterior do antebraço; 3 equimoses na região anterior do antebraço, a maior das quais com 6×4 cm; – na perna direita: equimose de 7×3 cm na nádega; –na perna esquerda: equimose de 4×2 na região posterior do joelho, equimose de 4×2 na região posterior da perna”, lê-se no acórdão.
  2. O ex-marido… bom o ex-marido ficou triste e… ofendido.

A honra não é para aqui chamada para falar do dano feito ao homem. Ser traído no casamento não é desonra para ninguém. Desonra é trair, porque provavelmente implica mentir, enganar, falhar compromissos assumidos. As ações ficam com quem as pratica e os senhores juízes, tão adeptos da cultura milenar, também já terão ouvido esta expressão.

O problema do Acórdão é que mostra que a culpa da agressão à mulher é da própria mulher, a própria vítima. E quando vemos a quantidade maioritária de penas suspensas que são dadas aos acusados de violência doméstica, percebemos que a forma de pensar será a mesma em quase todos os tribunais. Há uma suspeição pendente na cabeça de cada vítima de violência passional, há qualquer coisa que diz aos juízes que é a vítima que está a falhar nas suas obrigações de cônjuge.

Pouco importa o que diz a lei, que criminalize agressões contra mulheres em contexto passional. Pouco importa o que nos diz a vida – um relacionamento extraconjugal que rapidamente termina, logo seguido do fim da relação institucional diz-nos que o casamento não estava bem. O amante passageiro será com certeza uma forma estranha de conseguir certezas ou alívio de uma relação em fase terminal, mas justifica uma agressão? O acórdão diz que sim.

Se esta mulher agredida não tem direito a vontade própria, teoricamente nenhuma mulher terá. Da leitura do acórdão na íntegra conseguimos perceber que o amante deve ter decidido que “se a mulher não ia ser dele, não seria ser de mais ninguém.” Terá contado ao marido todos os detalhes da relação e preparado assim uma vingança comum. Foram dois homens contra uma mulher. Dois homens contra uma mulher. Mas as circunstâncias em que as agressões ocorrem desculpam os agressores, tudo porque a vítima resolveu não ter nenhuma relação com nenhum deles. Achou por bem autodeterminar-se. Estava errada ao pensar que o podia fazer.

Agora, é só relembrar alguns números de mulheres que resolveram autodeterminar-se:

Um terço das 43 mulheres assassinadas pelos maridos nos últimos cinco anos, na Grande Lisboa – ou seja, 13 – já tinha apresentado queixa às autoridades por violência doméstica. Mais de metade das vítimas estava em processo de separação (51,2%), por iniciativa delas, e a grande maioria das mortes (68,4%) aconteceu no prazo de dois meses após a separação,” lê-se no Diário de Notícias

Calhando, o juíz acabou de assinar a sentença de morte da mulher de Felgueiras. Mas o que é que isso interessa? Ela merece. A culpa é sempre das mulheres.