A história do Luís que não tinha história!

Celmira Macedo, psic—loga
Lisboa, 18/02/2016 - Celmira Macedo, psic—loga colaboradora do site Delas.pt. (Leonardo Negr‹o/Global Imagens)

Era uma criança, como todas as crianças e a pergunta que fiz quando cheguei à escola, foi mesma de sempre: “Quem são meus companheiros/as de viagem?” Entenda-se aqui, os meus alunos/as. Gosto de conhecer quem vou amar, pois é disso que se trata quando se é professora de educação especial. Amar. Caso contrário, mais vale escolher outra qualquer coisa para fazer, e eu, escolhi esta. Ainda hoje me ecoa na alma a apresentação do Luís:

“Este é o nosso deficiente, tem Paralisia Cerebral, não conte muito com ele, coitadinho!”

No interior norte transmontano, todos se compadeciam do seu karma. A marca que transportava estigmatizada na aura era a porta de entrada de uma sociedade falsamente rica em valores de cidadania. O protecionismo dedicado ao Luís amputou-lhe inocentemente os sonhos e as vivências. Negou-lhe a possibilidade de aceder às mesmas oportunidades dos colegas: de saber, de fazer, de estar e de ser.

“Coitadinho!!”

A paralisia cerebral definia-o. O Luís não tinha história, era apenas “o deficiente”. O rótulo ditava-lhe um caminho já irreversível, determinava aquilo que dele se esperava: menos que nada.

Eu estava incrédula. Como poderia afirmar-me como profissional naquele contexto?

Numa sociedade fortemente enraizada pela tipificação das pessoas, o futuro do Luís estava minado. Infelizmente esta não é uma realidade exclusiva do interior norte, é uma maleita coletiva. Uma epidemia preconceituosa que temos todos de ajudar a combater, simplesmente porque ao contrário do que a maioria pensa, não são as limitações que definem a essência humana.
O Luís, tal como milhares de crianças que chegam à escola, trazem na “bagagem” as suas especificidades, a sua visão do mundo e a sua forma de estar e de ser. Têm capacidades, necessidades, interesses e motivações e daí partem para a sua construção como indivíduos. E nós podemos ajudar! Como? Tratando-os como pessoas, com os mesmos direitos e deveres, respeitando-os sem a tentação de os “apaparicar” pelas suas condições.
Se tenho encontrado obstáculos? Sim, mas não desisto. Vivo desde então com a consciência de que se prioriza a escolarização e os resultados académicos, em detrimento da solidariedade e da cidadania.

Estou ciente da mordaz ignorância de que “a presença destas crianças nas salas de aula impede o progresso das outras”. Tenho a dolorosa noção que estes mitos e crenças infundadas, impedem a extensão e profundidade da sociedade que quero ajudar a construir e na qual acredito: as pessoas constroem-se no contacto com os seus pares, na equidade das oportunidades que lhes proporcionamos, nas experiências e vivências que juntos podemos ter. Assim se edifica a cidadania e a inclusão (as verdadeiras).

E nisto continuarei a acreditar e a lutar… sempre! Até que as forças me faltem, porque a ruralidade e o preconceito moram dentro de cada um de nós!

Kiss, kiss. Bang, bang!celmira