“A investigação na área da saúde tornou-se, para mim, um imperativo moral”

mmiraldo
Marisa Miraldo [Fotografia: DR]

Professora Associada no Imperial College London, Marisa Miraldo é a portuguesa que está a trabalhar com o Ministério da Saúde no sentido de, desde o início de dezembro, encurtar distâncias para os doentes com HIV, fazendo com que estes deixem de ir aos hospitais buscar os medicamentos de que necessitam, para passarem a ir às farmácias mais próximas. Trata-se de um projeto-piloto que, se correr bem, poderá servir de base a outros tipos de doenças. E o cancro até pode ser um deles.

Nesta entrevista, a investigadora, de 40 anos, natural das Caldas da Rainha – que é também professora-visitante na Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova -, defende o Serviço Nacional de Saúde português, mas diz que há muito por fazer para o melhorar. Desafios? “Podia escrever um livro sobre isso…”.

Residente no Reino Unido – em 2001 foi para York fazer doutoramento em Economia de Saúde e em 2008 integrou o Imperial College -, Marisa Miraldo diz que o Brexit é “um desastre”. E diz mais: as consequências geradas pelo referendo que definiu a saída do Reino Unido da União Europeia já se estão a sentir: “Existiu um aumento do crime relacionado com xenofobia e discriminação mais geral. Foi o primeiro impacto imediato no pós-referendo. Mas há outros, a falta de mão-de-obra já se começa a sentir, a nível universitário muitos académicos receiam vir trabalhar para a Inglaterra, muitos dos que cá estão planeiam sair.” Uma entrevista que também olha para o que se está a passar com algumas mulheres portuguesas, que estão a ver os seus filhos serem retirados pela segurança social britânica e a serem entregues, posteriormente, a famílias de acolhimento, pagas pelo Estado.

Qual foi o nível de participação neste projeto de levar os medicamentos HIV até mais perto dos pacientes, das farmácias dos hospitais para as de proximidade?
O meu papel neste projeto foi o de desenhar uma intervenção, de um modo cientificamente rigoroso, que permita, no final do piloto, perceber qual o impacto da dispensa de antirretrovíricos nas farmácias comunitárias em indicadores clínicos, de satisfação e de qualidade de vida dos doentes e de custos para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e para a sociedade. Sou ainda responsável pela avaliação do impacto do projeto-piloto.

Qual era a realidade com a qual os pacientes lidavam e o que muda com esta alteração?
Até ao momento, a dispensa de terapêutica antirretroviral combinada (TARVc) era, tanto em sistema ambulatório como em internamento, da responsabilidade exclusiva dos hospitais públicos e do SNS. Os pacientes tinham que se deslocar frequentemente ao hospital para obterem os medicamentos que necessitavam. Alguns deles tinham que percorrer largas distâncias para o fazer, alguns tinham de fazer mais de 100 quilómetros. O que muda é o que temos que avaliar. No entanto, este tipo de políticas visa potenciar uma maior autonomia de escolha dos pacientes [que pretende chegar aos 750], maior comodidade, e, sobretudo, um melhor acesso à terapêutica, que pode ter um impacto significativo na adesão à mesma.

“Há uma série de doenças para as quais a medicação com perfil de segurança semelhante ao dos antirretrovíricos é dispensada nos hospitais para doentes estáveis. (…) Por exemplo para alguns medicamentos oncológicos”, afirma Marisa Miraldo, professora associada no Imperial College London

Quais os custos envolvidos para implementar esta medida?
O impacto nos custos é parte importante da nossa avaliação do piloto. De momento não sabemos. A nossa análise será de custo-efetividade, isto é, analisaremos os custos e os benefícios da dispensa na farmácia comunitária face à dispensa no hospital. Só deste modo se poderá concluir se vale a pena esta intervenção a nível nacional. Teremos avaliações intermédias a seis meses, 12 meses e 18 meses.

É uma realidade que pode ser alargada a outras doenças?
Sim. Há uma série de doenças para as quais a medicação com perfil de segurança semelhante ao dos antirretrovíricos é dispensada nos hospitais para doentes estáveis. Dado que os hospitais, por norma, não estão uniformemente distribuídos no país, vários doentes têm de viajar grandes distâncias para levantarem a sua medicação. Por exemplo para alguns medicamentos oncológicos.

Como surgiu esta possibilidade de participar?
Este projeto surge da importância da acessibilidade à terapêutica no controlo clínico da infeção por VIH/SIDA. A delegação da dispensa pode promover a acessibilidade a terapêutica a doentes estáveis com infeção por VIH. Neste contexto, há cerca de um ano recebi o contacto do Gabinete do Sr. Secretário de Estado Adjunto e da Saúde [Fernando Araújo] no sentido de desenhar o estudo cientifico que acompanha a implementação do projeto-piloto, e de avaliar o seu impacto. Por exemplo, no caso da terapêutica antirretrovírica de elevada potência (TARV), os ganhos individuais em saúde, em qualidade de vida e sobrevida foram evidentes, o que nos países desenvolvidos induziu uma modificação na utilização dos recursos de saúde, com os doentes com infeção por VIH a passarem dos cuidados predominantemente em internamento hospitalar para o ambulatório.

“O que penso do SNS resume-se muito bem no facto de que, sempre que posso, venho ao médico em Portugal. Em termos comparativos e muito gerais, penso que o nosso SNS seja melhor em termos de acompanhamento do doente que o National Health System”, afirma a professora do Imperial College London

Há mais participações previstas no horizonte?
Sim, possivelmente, mas ainda não estão definidas. Há cerca de um ano, recebi o contacto do Gabinete do Sr. Secretário de Estado Adjunto e da Saúde no sentido de avaliar a possibilidade de uma parceria com o Imperial College London, com vista à avaliação externa do impacto das políticas de saúde do atual governo. Este projeto é o primeiro no âmbito dessa colaboração. O fundamento desta colaboração é a vontade de fazer um trabalho conjunto com vista à implementação de políticas baseadas na evidência empírica – o que cá fora se chama evidence based policy.


Leia mais sobre a taxa de incidência de HIV nas mulheres, bem como sobre a nova vacina

Leia também mais sobre a atualidade em torno do Serviço Nacional de Saúde aqui e aqui


Como economista da saúde, e estando em Londres, como olha para o SNS?
O que penso do SNS resume-se muito bem no facto de que, sempre que posso, venho ao médico em Portugal. Em termos comparativos e muito gerais, penso que o nosso SNS seja melhor em termos de acompanhamento do doente que o National Health Service (NHS – serviço de saúde público britânico). Embora o NHS tenha uma prática clínica especializada mais de ponta, com equipas médicas multidisciplinares, o acesso inicial a cuidados médicos especializados é difícil e desigual, em parte por consequência do modelo de financiamento do NHS e pelo excessivo poder de gatekeeping [guardião] dos médicos de clínica geral.

“O NHS lidera nesse aspeto [na liderança estratégica decorrente da colaboração com outros setores, incluindo o privado e a sociedade civil] e o SNS poderia aprender com essa experiência”, afirma Marisa Miraldo

E o que é que da saúde no Reino Unido pode ser importado para Portugal e em que é que Portugal não precisa de receber lições de ninguém?
O que se pode trazer para Portugal é a transparência e envolvimento de vários stakeholders [agentes] na formulação estratégica de políticas, o que passa por processos consultivos com as várias instituições governativas e operacionais, mas também a população em geral, os doentes, e a academia. Só deste modo é possível desenhar politicas e fomentar uma prestação de serviços baseados na evidência empírica. Dou aulas em política de saúde e uma das palavras que ainda hoje me é difícil de traduzir é stewardship nos sistemas de saúde. O vocabulário de um país diz muito da sua realidade. A liderança dos sistemas de saúde tem que obrigatoriamente passar pelo uso estratégico do corpo de evidência do que funciona ou não funciona. Para tal, é instrumental um investimento continuado na observação dos resultados de políticas semelhantes em outros sistemas de saúde.

E por cá, isso acontece?

No SNS, historicamente, faz-se pouco disso em comparação com outros países e por vezes seguem-se tendências internacionais para as quais não há evidência ou pior, a mesma sugere que não traz benefícios. Além do sistema formal de saúde, a liderança estratégica significa colaborar com outros setores, incluindo o privado e a sociedade civil, para promover e manter a saúde da população de forma participativa e inclusiva. O NHS lidera nesse aspeto e o SNS poderia aprender com essa experiencia.

“Uma das áreas importantes que necessita urgentemente de mudança é o facto de os sistemas de saúde ainda serem excessivamente centrados no hospital (…). É essencial uma maior autonomia nos cuidados primários na coordenação e integração de serviços, bem como maior discrição no controlo de recursos financeiros e de tecnologia”, recomenda

Quais são os grandes desafios a que se deve dar prioridade área da saúde em Portugal?
Há tantos… podia escrever um livro sobre isso… Em termos gerais, a sustentabilidade financeira dos sistemas de saúde, que passa pela prevenção primária e secundária, pela mitigação da fragmentação na prestação de cuidados de saúde, e por um novo paradigma de financiamento que promova a integração e a continuidade na prestação de cuidados médicos. Uma das áreas importantes que necessita urgentemente de mudança é o facto de os sistemas de saúde ainda serem excessivamente centrados no hospital, com os cuidados de saúde centrados num modelo agudo e episódico de atendimento, com a prestação de serviços excessivamente orientada por um modelo excessivamente biomédico. O enfoque excessivo nos cuidados especializados não só implica um custo de oportunidade elevado, mas também, e talvez mais importante, não facilita a continuidade na prestação dos cuidados necessária para fazer face ao aumento da prevalência de doenças crónicas. A continuidade e a multidimensionalidade na prestação de cuidados são de extrema importância na gestão das doenças crónicas.

Como resolver isso?
O SNS terá que investir mais em prevenção primária e secundária. Para tal, é necessário reorientar a prestação de serviços de cuidados secundários para cuidados primários, a fim de reforçar o papel dos médicos de cuidados primários como os principais fornecedores de cuidados médicos, e os gestores do estado de saúde da população. Para tal, é essencial uma maior autonomia nos cuidados primários na coordenação e integração de serviços, bem como maior discrição no controlo de recursos financeiros e de tecnologia. Os profissionais que prestam cuidados primários estão bem posicionados para permitir a colaboração dentro do setor da saúde e entre os diversos setores da economia, permitindo uma plataforma para a integração e coordenação de cuidados fundamentais a prevenção e gestão de doenças crónicas. Essa coordenação exige que os sistemas de saúde invistam no desenvolvimento de novas formas de comunicação entre profissionais de saúde, doentes, população em geral e prestadores informais, a fim de capacitar os indivíduos e promover o seu papel ativo na prevenção e gestão da doença.

“Um desafio importante que lanço ao país é o de criar um policy lab, isto é, um sistema de saúde em miniatura limitado a uma pequena área geográfica. Dentro deste policy lab um novo sistema de saúde poderá ser projetado e várias politicas podem ser testadas”, sugere Marisa Miraldo

O secretário de Estado adjunto e da Saúde revelou, recentemente, em entrevista à TSF, estar a analisar os casos de doentes com seguros que começam tratamentos nos privados, mas que a meio destes – por falta de plafond – vão para o público. O que deve ser feito?
Não me choca o facto de os doentes irem ao privado, desde que financiamento seja público e as tarifas acordadas sejam competitivas. O problema de andar a saltitar é a informação que se perde, o que pode ter impacto na continuidade do tratamento.

Como surgiu a decisão de a Marisa sair de Portugal e ir para o Reino Unido?
A decisão foi simples, queria fazer um doutoramento e, na altura, não havia bons programas de doutoramento em Portugal. Fiz as malas e fui para a Bélgica fazer o mestrado, em 1999. Durante o mestrado, tive o privilégio de trabalhar com um excelente mentor que me incutiu a paixão pelos temas na área da politica e economia de saúde. Desde os tempos da licenciatura, em Economia, o que mais me fascina são as politicas sociais. Nesse tempo, fiz um trabalho sobre o rendimento mínimo garantido, lançado na altura. Desde então, foi sendo imperativo trabalhar numa área em que possa ter um impacto positivo na vida das pessoas. A saúde é uma delas. A investigação nesta área tornou-se para mim um imperativo moral. Os meus interesses são sempre estimulados por políticas existentes, ou por desafios dos sistemas de saúde que necessitam de ser abordados. O que me apaixona no meu trabalho é, precisamente, a possibilidade de ter um impacto positivo no bem-estar e saúde da população, e na gestão eficiente dos sistemas de saúde.

Quais são, neste momento, as grandes linhas de pensamento desta área: no Reino Unido, na Europa e até em Portugal?
As que mencionei acima são alguns exemplos. Os ganhos de eficiência para garantir a sustentabilidade do NHS; a integração entre a saúde e a assistência social (social care) e novos modelos de financiamento que promovam essa integração; a promoção da saúde mental; a prevenção primária e secundária; fomentar inovação terapêutica e tecnológica em áreas como a oncologia, os antibióticos, a saúde mental.

“O mercado de trabalho [em Portugal] na área da investigação nem sempre é meritocrático e dinâmico como noutros países”, critica a professora

Faz sentido regressar a Portugal? Há espaço nesta área para professores e investigadores?
Fazer, faz. Quando saí, foi por um ano, e durante anos dizia: “É este que volto…” No entanto, há pouco espaço, infelizmente, não só nesta área, em todas as áreas de investigação. Há pouco investimento em investigação, e o volume de oportunidades é ridículo em comparação com outros países. O mercado de trabalho na área da investigação nem sempre é meritocrático e dinâmico como noutros países.

Portugal já olha para a Economia da saúde? Como a vê e trata?
Sim, claro, há excelentes investigadores em Portugal nesta área. Mas podíamos fazer mais… Por exemplo, a criação de centros de investigação multidisciplinares com vista ao desenvolvimento de um stock de evidência suscetível de ter um impacto na politica de saúde em Portugal, e na inovação. Um desafio importante que lanço ao país é o de criar um policy lab, isto é, um sistema de saúde em miniatura limitado a uma pequena área geográfica. Dentro deste policy lab um novo sistema de saúde poderá ser projetado e várias políticas podem ser testadas. Seria interessante que fossem criadas várias estruturas destas na Europa como protótipos de novas formas de organizar e financiar os cuidados de saúde. Portugal poderia liderar nesta área. Estes policy labs deveriam funcionar em paralelo e de um modo articulado, fomentando a aprendizagem entre países, com as experiências de cada laboratório. Deste modo, seria mais fácil planear e implementar projetos-piloto de políticas desenhados de um modo inteligente, que possam servir a compreender em que condições e contextos certas politicas podem funcionar. Esta articulação entre países não existe, o que limita, de certo modo, a evidence based policy.

“O Brexit é um desastre para a Inglaterra”, afirma Marisa Miraldo

Residindo no Reino Unido, como olha para o Brexit? A vida dos portugueses no Reino Unido já está a mudar?
O Brexit é um desastre para a Inglaterra. Do ponto de vista económico, não faz qualquer sentido. O referendo teve por base um jogo político irresponsável, agravado por um jornalismo parcial e de desinformação. Mas o que mais me preocupa é o impacto social. A divisão da população que gerou e, sobretudo, um agravamento da discriminação contra os estrangeiros. Estas consequências já se sentem.

Como por exemplo?
Existiu um aumento do crime relacionado com xenofobia e discriminação mais geral. Foi o primeiro impacto imediato no pós-referendo. Mas há outros, a falta de mão de obra já se começa a sentir, a nível universitário muitos académicos receiam vir trabalhar para a Inglaterra, muitos dos que ca estão planeiam sair. Houve quebras na procura externa do ensino superior, a participação de investigadores em projetos de investigação europeus tem sido mais difícil nos últimos meses, só para mencionar alguns exemplos. O grande impacto vai-se verificar se e quando Brexit for implementado.

“Os serviços sociais [britânicos] têm falta de capacidade de resposta para o volume de trabalho que têm”, afirma a investigadora

Recentemente, tem sido notícia o facto de os serviços sociais britânicos estarem a retirar os filhos a mães, no caso portuguesas. Como olha e como se explica esta realidade, e o que podia ser feito?
E uma realidade que apenas acompanhei nos media. Nestes casos em particular não me sinto confortável a comentar, não há transparência suficiente dos factos para que possa ter uma opinião informada. Em termos gerais, o sistema britânico de proteção de menores rege-se muito por regras e processos rígidos que obrigam ao seguimento dessas regras. Quando os serviços sociais não têm capacidade de resposta, surgem os erros que podem ter consequências graves. Os serviços sociais têm falta de capacidade de resposta para o volume de trabalho que têm.


Leia mais sobre esta polémica aqui