“A minha mãe não quis perder o sítio onde lanchava. E então comprou a Benard”

Quentes e acabados de fazer, alheios a modas, regimes e revoluções. Entenda-se: um croissant é um croissant e até o estômago mais humilde se afidalga com uma boa dose de doce.

A célebre Benard nasceu na Monarquia, aguentou-se na República, voltou a servir a coroa, e hoje tenta sobreviver ao cerco de turistas plebeus. 150 anos de história são recheados com uma corte de clientes variada e um arranque que foi uma nesga de oportunidade para um público afastado destas lides. Recue-se a essas primeiras décadas do defunto século XX, quando num café dificilmente se avistaria uma senhora desacompanhada do marido. Pois o interior deste espaço, como outros pioneiros no ramo da confeitaria, foi exceção a essa toada amarguíssima, tendo começado por acolher uma fauna predominantemente feminina, confortável neste reduto, de onde se saía com a reputação imaculada – os cavalheiros terão chegado pouco mais tarde, seduzidos pela doçaria, e não menos pelas vistas.

Quanto à tradição, chegados a 2018 faz por ser o que sempre foi. “Temos três pasteleiros e confecionamos tudo como em casa. Um deles, o senhor Lopes, abriu a casa com a minha mãe”. Hoje há milhentos produtos que podem substituir ovos e etc, como 99% das pastelarias têm. Nós por enquanto, não”, garante Maria Augusta Montes Gomes, atualmente ao leme da Benard, com a sua sobrinha a assumir a parte operacional.

O número 104 tem açúcar que chegue para adoçar um Chiado inteiro e é difícil elencar as preferências onde uma das iguarias é rainha, o famoso croissant. “Nem sei bem o que sai mais. Houve uma altura em que se distinguiam bem os turistas porque não comiam doces, só salgados. Agora alambazam-se tanto que até fico indisposta. São capazes de despachar quatro ou cinco bolos de uma assentada”, descreve a proprietária numa semana em que a casa assinala a data redonda.

Maria Augusta Montes Gomes, atual proprietária da pastelaria Benard, fotografada por Fernando Corrêa dos Santos

Do Loreto à Garrett

Foi na Rua do Loreto, que em 1868 Élie Benard, nascido no seio de uma família de padeiros e conserveiros oriunda dos Pirenéus, e que por volta de 1862 estaria toda reunida em Lisboa, deu o seu nome à pâtisserie que fundou, em tempo de abundância na cidade de referências francófonas e anglófonas.

“Lisboa estava seguramente amena e cintilante naquele 4 de junho de 1868. Elie Benard
saiu de sua casa, na rua larga de São Roque 1, e tomou o caminho da Baixa.
Podemos admitir que se tinha acostumado bem à capital portuguesa e que apreciava
viver no coração da cidade, onde o bulício de gente acima e abaixo era, para o ainda jovem comerciante francês, sinónimo de clientela. O seu destino era a rua Áurea, onde ficava o cartório notarial do doutor Barcelos Júnior. Elie tinha marcada para esse dia a celebração de uma escritura importante para os seus negócios: decidira-se a arrendar uma nova loja, situada nos números 21 e 23 da rua do Loreto. Gostava do espaço, que incluía um saguão onde existia “um barracão com uma porta e duas janelas, todo lajeado e com telhado mourisco”. Era aí que tencionava construir um ou dois fornos, naturalmente “de maneira que não possam prejudicar os inquilinos da mesma propriedade”. Tudo perfeito para a padaria que ali ia instalar”.

É assim que começa o livro comemorativo, a lançar em 2019, que recorda o trajeto do fundador e da centenária casa. “BENARD – “Um século e meio a adoçar Lisboa”, da autoria de João Bernardo Galvão Teles marca assim os festejos da efeméride que nos convida a recuar na História.

Um menu retirado dos anos 20, do século passado, ainda a casa mantinha a designação de patisserie

Foi apenas em 1926 que a designação do endereço se aportuguesaria para “pastelaria”, para se escapar ao pagamento à Câmara de avultados 500 reis, extensível a dísticos das fachadas em línguas estrangeiras. Mas antes dessa transição, corria 1902, a Benard subia o Chiado e tornava-se vizinha da atual A Brasileira, que só abriria portas três anos depois. Já nos anos 40, a morada passaria para as mãos de Manuel José de Carvalho.

Um anúncio dos anos 40

Para a posteridade fica esse banquete que terá sido servido a rainha Isabel II, quando a monarca britânica visitou Portugal, em 1957. “É o que ouço dizer, e até aqui tenho umas dezenas de pratinhos, que eram sobras do banquete que terá sido servido à rainha Isabel. Também li há tempos que quem a serviu foi o Hotel Aviz. Mas acho estranho, porque não teria os acessórios suficientes para tanta gente. Não consigo garantir mas uma das caixas tinha de facto essa referência ao banquete”, aponta Maria Augusta Montes Gomes, que ao cair dos anos 70 do século passado assistiu a uma das manobras mais arriscadas da sua mãe, Maria Augusta Montes.

Um copo de verde e o famoso croissant

Habituada ao negócio das confeções e pronto-a-vestir, sobretudo lingerie e roupas de casa, “tinha zero experiência”, quando dediciu assumir estas rédeas, contrariando tudo e todos. “Meteu-se nisto porque se a Benard fechasse ficava sem sítio para lanchar. Era uma coisa importante. Mas fez más contas. Foi a primeira e única vez que a vi chorar na vida, com a cabeça em cima da mesa. A minha mãe não quis ouvir-nos, quando a pusemos perante todo aquele cenário complicado. Eram montantes impossíveis. Apanhou-nos no Porto e telefonou-me muito satisfeita a dizer ‘comprei a Benard’”, recorda a filha, sublinhando a permanente inquietação e criatividade materna, mesmo face a cenários negros, a taxas de juro altíssimas, a inflações malucas, a penhoras e outros fantasmas.
“Apeteceu-me chegar ao pé dela e dar-lhe com uma coisa na cabeça. Depois viu-se grega com isto. Para além das dívidas e execuções, a casa estava um nojo, a cair de podre. Contava com cinco mil contos mas afinal teve que vender dois apartamentos em Carcavelos para recuperar a Benard”, continua, recuperando ainda a veia de viajante da mãe e a sua importância nos destinos do negócio. “Tinha uma capacidade de transformar tudo o que não prestava em algo bonito, algo que eu não tenho. Os croissants, que são uma modernice da minha mãe, devem ter surgido numa dessas viagens. Chegou e deu a volta à sua maneira, nunca copiava integralmente. É diferente do francês.
A determinada Maria Augusta Montes frequentou a Benard até à sua morte, em 2003. Tinha a sua mesa e um peculiar ritual, que uma vez quebrado servia de diagnóstico. “A minha mãe era de Braga e todos os dias ao almoço bebia um copo de vinho verde e bebia um café. Quando não tomava uma destas coisas era porque estava doente. Gostava de doces também, como eu.”
A remodelação que imprimiu em oitentas visou melhorar a confeitaria que outrora ali funcionou, a “A Gratidão”, perita em frutas cristalizadas. Das espaçosas cozinhas nasceram os salões, e foi inaugurada uma nova sala de refeições. Mas nem só no consolo da barriga se apostou.
Um registo do Chiado, já nos anos 70 @DR

Maria Augusta Montes era uma amante da música, do teatro, das artes em geral. Um gosto, recorda João Bernardo na sua obra, que se refletiu na vivência da Pastelaria Benard, “frequentemente palco de saraus musicais, passagens de modelos e outros encontros
culturais”. Em 1991, por exemplo, o estabelecimento serviu de cenário no filme Fábula em Veneza , de Rui Goulart, vencedor de uma Palma de Ouro no Festival de Valência e
que contou no elenco com António Victorino d’Almeida, Lídia Franco, ou Rui Mendes.

A pastelaria serviu nomes como a pintora Maria Helena Vieira da Silva ou Mário Viegas, amigo de Maria Augusta Montes e que fundara ali a dois passos a Companhia Teatral do Chiado. Na memória prevalece esse jantar que reuniu à mesa o Nobel da literatura José Saramago e os escritores Lídia Jorge e José Cardoso Pires, saídos de um colóquio no Centro Nacional de Cultura, nos anos 90. “Mais recentemente, partilharam a sua ligação à Benard as escritoras Helena Sacadura Cabral, que confessou ter ficado rendida aos jesuítas no tempo em que preparava a fundação da revista Máxima, e Rita Ferro, que na sua juventude ia à pastelaria na companhia da mãe depois da missa no Loreto. Em outubro de 2016, o nobel peruano Mario Vargas Llosa foi visto na esplanada”, lê-se ainda no livro que chegará em breve.

Que comecem os festejos

É a 13 de dezembro de 2018 que a Benard inicia um período de celebração que se estenderá pelo ano de 2019, desenvolvendo e promovendo diversas atividades para assinalar a data redonda. O dia inclui um concerto, a partir das 15h00, de “Os Três Bastardos”, banda composta por João Campos, Mico da Câmara Pereira e Rui Melo.

Música, pintura, tecnologia e literatura irão passar pela pastelaria ao longo do próximo ano. O amanhã, esse, é uma incógnita, adianta a atual responsável. “O Chiado é outro. Não me quero adaptar e não sei sinceramente que vou fazer no futuro. Estou numa encruzilhada. Quero manter um estabelecimento português para portugueses, mas os portugueses não querem vir para o Chiado. Hoje vêm tipos com amplificadores de som, gente a pedir dinheiro, e a turistada manhosa que acha que manda nisto. Com honrosas exceções, o que vem para aqui é muito mau turismo. Até eu conseguir é como o Titanic. Cá vou tocando”.

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