Paula Rego, a filha e as histórias delas

Paula Rego fotografada em Cascais, Casa das Histórias (Carlos Manuel Martins/Global Imagens)
Paula Rego fotografada em Cascais, Casa das Histórias (Carlos Manuel Martins/Global Imagens)

A pintora portuguesa mais famosa pediu à filha que escrevesse um livro para as suas ilustrações. ‘Sopa da Pedra’ é o título. Uma conversa com Paula Rego e Cas Willing.

A rapariga substitui o frade, conquista a aldeia e cria novas receitas. Mais uma vez, o trabalho de Paula Rego pinta-se do ponto de vista feminino. “Diferentes países têm diferentes versões desta história que não envolvem um padre. Por que não uma rapariga?”

“Tudo são histórias. É através delas que descobrimos o mundo e quem somos. As portuguesas são as melhores porque nos fazem perceber o que é ser português”, conta Paula Rego.

A paixão por histórias
Paula Rego, 80 anos (fará 81 no próximo dia 26 de janeiro), sempre adorou histórias, não consegue imaginar o mundo sem elas. É por isso que o seu museu, em Cascais, se chama Casa das Histórias. E a última exposição ali inaugurada, em meados do mês passado, patente ao público até 26 de abril, com o título Caçadora Furtiva, tal como o museu, resulta dessa paixão. É isso que as paixões nos levam a fazer. Caçar.


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Paula Rego sempre adorou histórias. A Tia Ludgera contava-lhe muitas, algumas podiam durar dias e dias, como uma série. “Todas as crianças gostam que lhes contem histórias, não é?”, pergunta a pintora. Sim. “Tudo são histórias. É através delas que descobrimos o mundo e quem somos. As portuguesas são as melhores porque nos fazem perceber o que é ser português. As antigas mostram a natureza humana tal qual ela é. Não foram alteradas pelo sentimentalismo. Estão cheias de crueldade impensada e de atos de bondade. Detestaria que perdêssemos o contacto com as nossas histórias”, diz Paula Rego. Por isso, pinta-as. Pintou-as a vida toda, seguindo talvez o conselho do marido e mentor, o pintor inglês Victor Willing (1928-1988), que, como contou recentemente ao The Guardian, lhe dizia “lê um livro e ‘ilustra-o'”.

Um editor e amigo queria fazer um livro, mas a pintora precisava de um texto e perguntou à filha se o fazia. Cas Willing acabou por ceder à persuasão materna.

‘Sopa de Pedra’ (ed. Porto Editora, 2015) foi isso e o seu contrário. Paula tinha um conjunto de desenhos que queria que ficassem juntos. Pertenciam uns aos outros. Teve-os guardados por algum tempo. Um editor e amigo, Stephen Stuart Smith, queria fazer um livro, mas a pintora precisava de um texto e perguntou à filha se o fazia. Cas Willing, relutante no início, acabou por ceder à persuasão materna.

O tema da sopa da pedra
“A Paula disse que o tema era a história da sopa de pedra”, diz Cas. “Com uma história tão conhecida pensámos que poderíamos encontrar uma versão antiga que pudesse ser usada. Mas era muito difícil encaixar os desenhos em alguma coisa que tivesse que ver com versões mais tradicionais. Acabei por dizer que ia tentar ver o que conseguia inventar.”

“Disse que ela podia escrever a história que quisesse. Era com ela. Dei-lhe o portfólio e levou os desenhos”, diz a mãe.

“Estava consciente de estar a pegar em pedaços da nossa história comum. O pai com as pernas partidas. A apanha do mexilhão. A vida da aldeia portuguesa”, conta Cas Willing.

Levou-os para casa “para poder passar algum tempo com eles”. “Acho que eram dez… talvez fossem menos. Apesar de a Paula dizer que eram baseados na história da sopa de pedra, isso não era óbvio. Havia uma rapariga a mendigar e a mesma rapariga com uma panela, mas também havia macacos com asas e um homem doente e um casal zangado. Espalhei-os no chão e tratei-os como um storyboard para um filme [Cas Willing é argumentista]. Ordenei-os e reordenei-os, tentei várias sequências até chegar a qualquer coisa que sentisse que tinha um princípio, um meio e um fim. Quando isso aconteceu, escrevi a história. Noutras circunstâncias ou estado de espírito talvez tivesse escrito uma coisa diferente. Estava consciente de estar a pegar em pedaços da nossa história comum. O pai com as pernas partidas. A apanha do mexilhão. A vida da aldeia portuguesa. Embora seja o “truque” da história tradicional que dá a estrutura, espero que exista também uma jornada emocional.”

Quando acabou, havia vazios, por isso pediu à mãe que os ilustrasse. Decidiram que partes precisavam de ilustração, Paula Rego fez mais desenhos – a rapariga em desespero, a apanha do mexilhão, mais alguns na aldeia – a história foi ajustada e vitória, vitória, acabou-se a história.

As histórias de uma vida
“Foi um processo dinâmico, com muita colaboração entre nós. A Paula não é de todo uma ilustradora. Ela usa as histórias dos outros para pintar a sua própria vida. A única forma de garantir que as imagens se relacionam com a história é escrevê-la depois. Pode dizer que eu fui a ilustradora e ela escreveu as imagens. Fui guiada por ela”, diz Cas. “Resultou”, diz a mãe. “Sim, e até me diverti a fazê-lo”, responde a filha.

Nesta nova ‘Sopa de Pedra’, a rapariga substitui o frade, conquista a aldeia e até cria novas receitas, não parte à procura de outros a quem enganar. Mais uma vez, o trabalho de Paula Rego pinta-se do ponto de vista feminino. Não é que ela não goste de padres, não tem nada contra eles, até acredita em Deus e reza a Nossa Senhora e a todos os santos, mas é mulher e é a partir dessa condição que olha o mundo.

“Diferentes países têm diferentes versões desta história que não envolvem um padre.
Por que não uma rapariga?”, questiona a pintora. Claro que a rapariga podia ter continuado a viajar e a ganhar a vida enganando estranhos para lhe darem comida, mas essa seria uma vida triste, diz Cas. “Desta forma, ela dá-lhes alguma coisa em troca. Ganha o seu sustento e tem um sítio para ficar. Todos beneficiam. É um final (mais) feliz.” Nem Cas nem Paula pensaram numa moral para a história, mas, uma vez que o pai dá três dons à rapariga – diz-lhe que ela é forte, que é bonita e que é esperta; que da mãe herda o cesto, o vestido e as receitas; e que com a sua própria resiliência transforma a herança numa vida boa, a moral talvez seja que “não há nenhum príncipe para a salvar, por isso tem de o fazer sozinha”, diz Cas. “Tem de se esforçar para ser boa em alguma coisa e sobreviver. É talvez mais acertado não ficar à espera do príncipe.”

Perfil: entre Inglaterra e Portugal
Paula Rego (1935) cresceu entre a Ericeira e o Estoril. Em 1952 foi estudar para a Slade School of Fine Art, em Londres, onde conheceu o pintor Victor Willing, com quem casou e teve três filhos: Caroline (Cas), Victoria e Nick. Os primeiros oito anos de Cas foram passados em Portugal e o português foi a primeira língua. Até à adolescência dos filhos, Paula e o marido viviam entre Inglaterra e Portugal. Em 1976, mudaram-se definitivamente para Londres. É lá que Paula tem o seu estúdio. “É o lugar para onde levo Portugal.”


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