A revolução de género chegou e está em todo o mundo

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O número de janeiro da revista ‘National Geographic’ é dedicado à questão do género e das mudanças que a própria definição do conceito tem sofrido e que vai além do binómio rapaz e rapariga, homem e mulher.

A publicação americana vê-as como uma “revolução” e para ilustrar as alterações que estão a acontecer nas sociedades atuais fez duas capas: uma com uma menina transgénero de nove anos e outra com um grupo de pessoas, na qual aparecem mulheres e homens transgénero, um homem cisgénero , um bi-género, um intersexual não binário e um andrógino. Alguns destes termos são relativamente conhecidos do grande público, outros começam agora a ser normalizados na linguagem oficial e corrente, como intersexo ou intersexual, que define alguém que tem órgãos reprodutores (internos e/ou externos) masculinos e femininos e/ou cromossomas de ambos os sexos e que foi adicionado à sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgéneros e Transsexuais). Atualmente, em Portugal usa-se a sigla LGBTI.

É, precisamente, para dar conta de todas estas mudanças e do seu impacto nas vidas individuais e coletivas das pessoas que a ‘National Geographic’ dedicou o seu número de janeiro da edição americana à “Revolução de Género” – na versão portuguesa da revista os trabalhos sobre o tema estão espaçado pelas edições de janeiro, fevereiro e março.

Capas da edição americana de janeiro de 2017 (DR)
Capas da edição americana de janeiro de 2017 (DR)

“A temática do género tem estado a ser discutida em todo o mundo. Tentámos olhar para ela de uma forma inclusiva e abrangente e é, por isso, que temos histórias e imagens que retratam as vidas de mulheres e raparigas, homens e rapazes e de pessoas que se identificam de outra maneira dentro do espetro do género”, explica ao Delas.pt a diretora da ‘National Geographic’ americana, Susan Goldberg.

Tudo isso é resultado de um trabalho que começou há dois anos, quando a sua equipa começou a pensar na temática e em como a explorar. Já a cobertura jornalística do tema foi concebida, escrita e fotografada durante o ano de 2015 e o verão de 2016, seguindo para impressão em outubro passado. Em dezembro estava nas bancas.

O processo de produção desta edição é detalhado no site oficial da revista, onde também são explicados muitos dos conceitos abordados, clarificados alguns mitos, como o de que ser-se transgénero é sintoma de doença mental, e distinguidas questões biológicas, como a intersexualidade, de definições culturais e identificações individuais ou de orientação sexual.

A revista também não esconde que tratar este assunto criou alguma polémica entre os seus leitores americanos, traduzindo-se na perda de alguns, mas também no apoio de outros.

Num momento em que os direitos das mulheres e das minorias estão a ser postos em causa nos Estados Unidos, pela administração de Donald Trump, perguntamos até que ponto a expressão desta “revolução de género” pode estar ameaçada.

“Na ‘National Geographic’ não cobrimos diretamente a política, embora façamos a cobertura dos resultados de decisões políticas – como, por exemplo, decisões sobre como se deve lidar com as alterações climáticas. O mesmo se passa com o género: vamos cobrindo a história do género sob uma lente científica e cultural à medida que os acontecimentos se vão desenrolando”, refere Susan Goldberg. Nesse sentido, faz notar um dos fatores a ter conta na futura discussão sobre género nos Estados Unidos: “numa sondagem recente com mil jovens millennials, metade disse pensar que o género é uma variedade. Se tantos jovens acreditam nisso, isso diz muito sobre o rumo que esta discussão vai ter no futuro”, considera.

Susan Goldberg, diretora da National Geographic (Fotografia: Mark Thiessen/National Geographic)
Susan Goldberg, diretora da National Geographic (Fotografia: Mark Thiessen/National Geographic)

Um inquérito do centro de sondagens Gallup, de 11 de janeiro deste ano, mostra que, em 2016, houve mais americanos adultos a identificarem-se como LGBT: 4,5% da população adulta do país, o correspondente a mais de 10 milhões de pessoas. O valor indica uma subida gradual e consistente desde 2012, ano em que eram 3,5% os que se incluíam naquele grupo.

O mesmo inquérito revela também que são os millenials (a geração nascida entre 1980 e 1998), os que mais responderam afirmativamente sobre se se identificavam com alguma das categoria englobadas pela sigla LGBT. Em 2012, 43% os millenials – que são 32% da população adulta americana – consideravam-se LGBT, número que passou para 58% no ano passado.

Os desafios dos “não-binários”
Ao fazer um número dedicado às mudanças do género, a diretora da ‘National Geographic’ encontrou alguns factos que a deixaram chocada, como o “grau de ostracismo que enfrentam a comunidade transgénero e outras pessoas que se descrevem de maneiras diferentes dos tradicionais papéis binários de rapariga-rapariga”, confessou a o Delas.pt

Discriminação laboral, maior risco de agressão sexual, violência doméstica, abandono escolar e suicídio estão entre os problemas que afetam esses grupos.

“Está a acontecer uma discussão vigorosa nos Estados Unidos sobre os direitos e aceitação dos transgéneros. A nossa história sobre a ciência de género tenta lançar alguma luz sobre isso, numa perspetiva científica”, ilustra.

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A experiência do género
A ‘National Geographic’ partiu para a abordagem desta temática, como tem feito ao longo dos seus cerca de 130 anos de existência, tratando “a maneira como as pessoas atuam nas sociedades”. “Usámos essa ótica para explorar de que forma os papéis de género são vividos pelo mundo, por raparigas, rapazes e por pessoas que se descrevem a elas próprias num registo não-binário ou entre rapaz-rapariga”, explica Susan Goldberg. Paralelamente, acrescenta, a revista procurou perceber como o género é experienciado pelos mais jovens.

“Um dos artigos tem entrevistas e fotografias de 80 crianças – todas com nove anos –, em oito lugares do mundo (EUA, Canadá, Israel, territórios Palestinianos, China, Índia, Brasil, Nigéria). Perguntámos-lhes sobre que papel desempenhava o género nas suas vidas. Falámos com as crianças porque elas são boas observadoras e boas analistas na explicação de como o mundo realmente funciona, em vez de como nós, adultos, gostaríamos que funcionasse”.

As mulheres nesta revolução
A capa que tem a fotografia de um grupo não inclui nenhuma mulher cisgénero – pessoa cuja identidade ou expressão de género corresponde ao sexo com que nasceu –, mas o sexo feminino está amplamente representado dentro da temática desta edição, como explica a revista no seu site.

Uma das conclusões que o trabalho reflete diz, precisamente, respeito à realidade vivida pelas raparigas, um pouco por todo o mundo. “Infelizmente, é incontornável tantas raparigas descreverem que o facto de serem do sexo feminino as limita. Dizem que o seu género limita os seus sonhos, a sua compreensão sobre o que podem alcançar e a sua ideia de futuro”, salienta.

E ainda que nem todas as raparigas se sintam dessa forma, muitas referem-no, independentemente do seu estrato socio-económico e da sua origem geográfica, apesar das variações culturais associadas.

“Uma rapariga americana disse que a incomodava que não houvesse ‘uma única rapariga presidente’, uma menina da Nigéria contou que se fosse rapaz podia herdar animais – uma elevada posição no estatuto social da sua comunidade; uma outra de Israel se fosse rapaz, seria rabino. Estes limites expressados tão claramente em 2017 são desoladores e pedem uma mudança”, defende Susan Goldberg.

Também as vidas das mulheres em todo o mundo são, segundo a diretora da publicação, “especialmente complicadas”. Nos países em desenvolvimento o retrato é o que vai sendo noticiado: jovens sujeitas ao casamento forçado e precoce, antes de completarem e maioridade, forçadas a deixar a escola e a viver sem o mínimo de direitos básicos, como mostram práticas como a mutilação genital feminina.

“Nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos, as raparigas enfrentam desafios diferentes – muitos extremamente sérios, mas na maioria numa escala diferente dos que enfrentam as raparigas da Serra Leoa, Índia ou de regiões do Médio Oriente e de África.”
Por essa razão, diz Susan Goldberg, a revista de janeiro dedica, dentro do tema do género, muitos dos seus conteúdos à situação das mulheres e das raparigas.

Pessoalmente, o assunto também é caro à jornalista, que é a primeira mulher a dirigir a centenária revista. “Há 35 anos que falo e luto pelos direitos das mulheres. Tenho esperança que este número – e o documentário que sairá dele, ‘Gender Revolution, A Journey with Katie Couric’ – ajude a manter a discussão sobre género com visibilidade pública e no debate público. Quanto mais falarmos dos papéis do género e do que eles significam no mundo, melhor conseguimos criar uma consciencialização para as questões da igualdade e dos direitos humanos”.

 

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