Aborto: uma década de escolha livre

gi
[Fotografia: Arquivo Global Imagens]

Dez anos. Assinala-se este sábado, 11, uma década sobre o referendo que veio dar o sim da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) até à décima semana de gestação e despenalizar uma prática de aborto ilegal, feita às escondidas, em condições perigosas para a saúde pública do sexo feminino e que chegava à ditar a morbilidade e, por vezes, a morte a muitas mulheres, vítimas de práticas mal feitas.

Hoje, os números da IVG por opção, coligidos anualmente pela Direção-Geral da Saúde, apontam para um decréscimo. E se, em 2008 foram realizadas 18.014 interrupções voluntárias, em 2015 foram reportadas 16.454, uma descida paulatina e que se tem vindo a verificar desde 2013.

Ao mesmo tempo, e apesar do decréscimo, é importante vincar que as mulheres desempregadas são quem mais recorre ao aborto. No ano passado, foram mais de 3200 (20% do total), em 2014 tinham sido quase 3450.

“Isso foi ainda mais evidente no período de austeridade”, recorda Alexandra Silva, presidente da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PPDM).

Em 2013, foram reportadas 4218 IVGs levadas a cabo por mulheres que não tinham emprego.

Isilda Pegado, deputada social-democrata e da Federação Portuguesa pela Vida, olha para o decréscimo dos números de outra perspetiva: “Têm de se fazer as contas face ao número de nascimentos e só no ano passado é que os abortos por opção desceram realmente. Mas mesmo que a IVG tenha decrescido, são 17 mil mulheres sujeitas a este flagelo, a esta destruição física e psíquica”.

“Sucesso” ou “chaga social”?

Longe de se tratar de um tema consensual, a sociedade portuguesa tem voltado ao assunto com muita regularidade, fosse pela discussão, fosse por petições que deram entrada na Assembleia da República e que levaram, no ano passado e entre outros aspetos, à introdução do pagamento de taxas moderadoras para quem fizesse IVG no Serviço Nacional de Saúde. Uma as primeiras leis que foi revertida assim que o novo governo socialista, apoiado pelos partidos de Esquerda (PC, PEV e BE), entrou em funções e ainda antes de ser regulamentada.

Em dia de evocação da data, as associações que trabalham esta matéria têm posições antagónicas. E se a PPDM e a Associação para o Planeamento da Família (APF) falam em “sucesso” – com Duarte Vilar diretor-executivo da APF a recordar que se trata de uma decisão que “atinge 25% das mulheres em algum momento das suas vidas” -, a Federação Portuguesa pela Vida (FPV) fala em “chaga social” e lamenta “as vidas das mulheres que tiverem de fazer esta escolha e as crianças que não nasceram”.

Plataforma quer uma educação sexual mais relevante

“Nos últimos anos, a educação sexual que tem vindo a ser implementada tem ficado muito àquem do que deve ser promovido entre jovens e que não vai ao encontro das necessidades do que os jovens precisam de saber”, relata Alexandra Silva. A presidente da PPDM exemplifica até com um caso pessoal e que acompanhou de perto. “Tenho um filho que está no secundário e a Educação para a Sexualidade que teve lugar na aula de Educação Física resumiu-se a uma dança entre rapazes e raparigas. Não é isso que eles precisam de saber, o que devem saber é como se protegem, como são negociadas as relações entre duas pessoas e como promover o respeito”. Por isso, Alexandra Silva reitera a importância da aposta na “educação sexual” como caminho para “a prevenção precoce da gravidez”.

Um pedido vincado quando corre uma petição que pede a retirada do tema da IVG do Referencial da Educação Para a Saúde do 2º ciclo de escolaridade [10 e 12 anos de idade]. “Não podemos escamotear o tema, não faz sentido retirá-lo, escondê-lo”, diz Alexandra Silva, que prossegue:

“Já assistimos a isto em 2015, a uma petição que lançou a revisão do IVG. Estas iniciativas dos cidadãos podem dar azo a alterações legislativas e nem sempre para melhor”, sublinha.

Do outro lado da barricada, Isilda Pegado, deputada do PSD e voz da Federação Portuguesa pela Vida, pede leis que protejam a maternidade e a paternidade, com o intuito de proteger “as mulheres que são empurradas por estas decisões por fatores que lhes são alheios, porque têm trabalho precário, por serem pressionadas pelos companheiros e pelas famílias”.

“Precisamos de definir apoios concretos para as que não têm condições económicas, sociais e familiares, devemos estabelecer apoios jurídicos para as que são ameaçadas nos locais de trabalho se não fizerem abortos”, pede.

Medidas que – afirma a deputada do PSD – têm de ser “enquadradas no âmbito do Orçamento do Estado e num plano mais vasto” com o propósito de evitar “o despovoamento do país, que é o que está a acontecer, apesar do aumento ligeiro da taxa de natalidade a que assistimos no ano passado”.

Dez anos sem mortes. Federação pela Vida nega

As associações pró-IVG falam em êxito e vêm lembrar que, desde a introdução da lei, não há mortes de mulheres a relatar decorrentes de práticas abortivas ilegais. “Desde a implementação desta lei, desde 2011, que não existe qualquer morte associada ao IVG e isso é muito positivo”, congratula-se Alexandra Silva, da Plataforma de Mulheres. E salienta que “o número de abortos praticados em Portugal está a decrescer desde 2012”, deitando por terra os argumentos mais pessimistas e as acusações de que o sexo feminino poderia vir a recorrer a esta prática, uma vez liberalizada, sem limites.

Duarte Vilar, da Associação para o Planeamento da Família, explica que “apenas 3% das mulheres fez IVGs com um intervalo curto” e que tal “significa um número muito reduzido”. A presidente da Plataforma das Mulheres também concorda: “a confirmarem-se esses números, não me parece que seja um valor significativo”.

Isilda Pegado é crítica, vai atrás no tempo e lembra que há, pelo menos, “uma morte a relatar” e acusa a Direção-Geral da Saúde de a ter querido esconder. “Em 2010, uma jovem de 24 anos, morreu num hospital em Coimbra na sequência de uma IVG”, afirma.

A deputada social-democrata questiona “os números publicados”, diz poderem “não ser os certos” e espera que “a Inspeção Geral da Saúde cumpra a sua função nesta matéria”. Diz ter “informações de que há mais mortes”, mas não avança dados concretos para já.

E o aborto clandestino? Quantas mulheres morriam antes?

Não há dados até porque era uma prática ilegal e apenas havia eco dela quando as mulheres davam entrada em hospitais com problemas decorrentes de IVGs, inscrevendo-as em estatísticas que pouco ou nada se relacionavam com a prática do aborto. Mas sobre esta morbilidade e mesmo morte, Isilda Pegado responde:

“Nós somos contra todos os tipos de aborto, até o clandestino. E é importante destacar que o legal também regista mortes e que esta lei não veio pôr fim à prática clandestina.”

Sem iniciativas pensadas para já sobre esta matéria, Isilda Pegado lembra “o trabalho que é desenvolvido diariamente por associações que apoiam mulheres que querem ter os seus filhos”, contrariando o número de bebés que não chegam a nascer. “Desde a entrada da lei em vigor, falamos de 150 mil crianças cuja vida não existe e que podiam ser hoje 150 mil alunos do 1º e 2º ciclos do ensino básico, o que significaria emprego para mais de três mil professores”.

Os sinais internacionais que chegam dos Estados Unidos da América

Uma das primeiras medidas tomadas por Donald Trump assim que chegou à Casa Branca passou por mexer nas políticas de apoio à IVG quer dentro de portas, quer além-fronteiras (Mexico City Policy). Esta tomada de posição levou países europeus, com a Holanda a tornar-se na primeira grande porta-voz da oposição a esta política e a anunciar o investimento em fundos internacionais para apoiar a Interrupção da Gravidez.

Mas será este equilíbrio frágil suficiente ou os sinais que chegam dos EUA podem vir a impor-se? “A decisão norte-americana é um sinal preocupante dos tempos e nem todas as pessoas têm as mesmas possibilidades da família Trump”, afirma a presidente da Plataforma de Mulheres. Alexandra Silva explica que “todos os grupos que têm vindo a surgir, de orientação política mais radical, não tomam em consideração as necessidades das pessoas e das mulheres”.

O referendo: “sim”, disseram os eleitores

A 11 de fevereiro de 2007, os portugueses eram convocados às urnas para responder se concordavam com a “despenalização da IVG, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado”. Mais de 2 milhões e 230 mil pessoas escolheram sim, face a um milhão e 534 mil votantes. O resultado seria depois vertido na lei 16/2007, sobre a ‘Exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez’.

Imagem de destaque: Arquivo Global Imagens