Acórdão do Porto: APAV diz que suspensão da pena é “um sinal perigoso”

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) considera ser “um sinal perigoso”, a opção do Tribunal da Relação do Porto em manter a pena suspensa aos dois homens condenados por terem abusado sexualmente de uma jovem inconsciente, em 2016, numa discoteca de Vila Nova de Gaia.

“A suspensão da execução da pena de prisão é não apenas um desfecho surpreendente mas sobretudo um sinal perigoso”, refere num comunicado enviado à imprensa, em reação ao polémico acórdão, que motivou a convocação de vários protestos no país, esta semana – veja, na galeria imagens da manifestação de ontem, no Porto.

No comunicado, a APAV refere que, apesar do ponto de vista legal e da jurisprudência, seja possível a aplicação da pena suspensa em vez da pena de prisão efetiva – no caso de Gaia a condenação foi de quatro anos de pena suspensa, “ao analisar-se esta decisão judicial, resulta claro que as elevadas exigências de prevenção não apenas geral – como é reconhecido na própria decisão – mas também especial – ao contrário do concluído na decisão – justificariam outra opção”.

“Recorde-se que estamos perante indivíduos que, ‘à vez’, na casa de banho de uma discoteca – que, não esqueçamos, era o seu local de trabalho, pelo que aos deveres gerais enquanto cidadãos acresceriam as obrigações específicas decorrentes da sua atividade profissional, nomeadamente em relação aos clientes -, abusaram sexualmente de uma pessoa num estado de embriaguez que em muitos momentos a colocou em situação de inconsciência e que – e este é um ponto fundamental – não manifestaram qualquer arrependimento pela prática dos crimes”, lembra a organização, em comunicado.

Para a APAV, “ainda que a detenção, a prisão preventiva e todo o processo, culminando no julgamento, possam ter tido algum efeito dissuasor da prática de outros crimes no futuro, a verdade é que não resulta da decisão judicial qualquer sinal exterior por parte dos arguidos de interiorização da gravidade das suas condutas, pelo que não se compreende como podem ser as exigências de prevenção especial consideradas reduzidas”.

A propósito da pena escolhida, a APAV lembra também que mesmo não se tendo tratado de um crime de violação, no sentido técnico-jurídico, mas de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência não se traduz numa “diferença substancial ao nível da gravidade das condutas”, lembrando que os dois tipos de crime partilham dois elementos, presentes neste caso, a ausência de consentimento e uma “moldura penal aproximada”, quer no seu “limite mínimo” – três anos no caso da violação, dois anos no caso de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência – e “igual no seu limite máximo” – 10 anos.

A associação critica ainda a desvalorização sobre o grau de ‘ilicitude’ avaliado no acórdão, que a considerou não elevada, “pelo facto de os danos físicos serem inexistentes ou diminutos, é não só incorreto como redutor: incorreto porque a vítima apresentou equimoses e hematomas em diversas partes do corpo em consequência dos atos dos arguidos, tendo tal sido considerado provado, pelo que negá-lo ou minimizá-lo, como é feito nesta decisão judicial, é fator potencialmente causador de vitimação secundária; redutor porque, como é por demais sabido, os danos principais, mais profundos, mais duradouros e mais difíceis de ultrapassar neste tipo de crimes não são de natureza física, mas sim psicológica, habitualmente com consequências na vida pessoal, familiar e social das vítimas”.

A APAV pede por isso, e à semelhança do que já aconteceu com outro acórdão do mesmo tribunal, num caso de violência doméstica, mais formação para os magistrados e outros profissionais que lidam com estas matérias. “Decisões como esta reforçam a necessidade de um maior investimento na formação dos magistrados sobre estas matérias, não tanto no que se refere ao enquadramento legal que baliza o julgamento da causa mas na análise mais vasta da factualidade em apreciação”. Ou seja, uma análise que inclua, segundo a associação, “maior e melhor conhecimento multidisciplinar” e menos “mitos e estereótipos sociais e culturais”.

A APAV foi uma das organizações que, há cerca de um ano, pediu a intervenção do Conselho Superior da Magistratura no polémico acórdão do Tribunal da Relação do Porto sobre um caso de violência doméstica, que condenou a penas leves os autores de crime de violência doméstica contra uma uma mulher, que envolveu agressões à vítima com uma moca de pregos. As queixas contra a decisão, e os argumentos usados para a fundamentar, acabaram por resultar num processo disciplinar movido pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM) contra os juízes autores desse acórdão, Neto de Moura e Luísa Senra Arantes. O mesmo órgão, anunciou, contudo, não irá abrir inquérito aos juízes do acórdão do caso da discoteca de Gaia.

 

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