“Existem dois eventos de moda e o que faz falta é uma semana de moda”

Notícias Magazine

Adelino Costa Matos é Presidente da ANJE desde janeiro deste ano, formado em gestão, olha para a moda como um setor de negócio que quer ajudar a desenvolver. Falámos como empresário de 36 anos sobre a estratégia do Portugal Fashion para o desenvolvimento do design de moda nacional, sobre o futuro do evento e sobre a possibilidade da criação de uma única semana de moda em Portugal. Este sábado começa o segundo evento de moda do país, o Portugal Fashion, com uma noite de desfiles em Lisboa.

Como é que uma pessoa da área de gestão, e com uma especialização muito grande na área das tecnologias renováveis, vê e trabalha a moda nacional?

Vejo a moda portuguesa com muito interesse. A moda de hoje é bastante mais dinâmica do que há uns anos. Não sendo a minha área sempre tentei acompanhar o setor e agora de uma forma mais próxima desde que estou na ANJE. Diria que o papel do Portugal Fashion, que já faz 22 anos, tem sido importante, mas obviamente estes últimos anos têm sido diferenciadores graças à dinâmica que queremos incutir ao setor.

Que dinâmica é essa?

Podemos avaliar o sucesso que temos tido a nível nacional, mas também a nível internacional. Os nossos designers estão muito bem posicionados fora do país. Vemos portugueses também a liderar grandes empresas no setor da moda, o que obviamente é um orgulho para nós. Assistimos ao sucesso de empresas como a Farfetch e outras. O contexto em que Portugal e a moda portuguesa estão hoje é com certeza melhor do que no passado.

O que é que mudou, para estarmos agora melhor que no passado?

Acho que a moda também está a usufruir um pouco do que está a rodear o nosso país, ou seja, Portugal hoje também está mais na moda. Passámos um período difícil nos últimos dez anos, em todos os setores, e agora felizmente estamos a renascer e a moda também beneficia desse facto.

A moda é um setor de negócio diferente dos outros?

Todos os setores são diferentes, cada um tem as suas especificidades. O ponto fundamental é olhar para a moda também como um negócio. No passado olhava-se para a moda muito com uma vertente apenas de imagem. Hoje claramente qualquer setor em que exista uma aposta explícita tem de ser encarado como um negócio.

Qual é a especificidade deste setor?

Evoluímos de um país direcionado para apenas alguns criadores, e muito industrial, com uma manufatura muito virada para a exportação. Acho que hoje conseguimos criar um contexto interno que visualiza toda a cadeia de valor, conciliando design com a componente da marca, com a manufatura, e criar um selo português.

O que é que falta à moda de autor portuguesa para ser tão reconhecida lá fora, como o setor do calçado, ou a nossa capacidade de produção de roupa?

Estamos a seguir um caminho interessante para esse reconhecimento. Tem que existir uma aposta especializada na moda de autor, para que se consiga pensar no negócio, e pensá-lo de forma a que este consiga ser exportável. Acho que na moda de autor muitas vezes se pensa muito na imagem, e isso tem de ser aliado a uma forte componente de gestão.

Há mercado interno para a sobrevivência da moda de autor ou é algo que para ser viável tem sempre de passar pelo mercado externo?

Para apostar no setor comercial a nível de gestão, não podemos ver o mercado interno como sendo apenas Portugal. Numa componente comercial, independentemente do setor, temos de olhar para as coisas numa componente mais internacional e para um mercado maior.

O que é mais importante para uma marca de autor, a criatividade ou a vertente de negócio?

Uma coisa não vive sem a outra. Se tiver um mau plano de negócios e um excelente design, duvido que a marca seja bem sucedida, mas o contrário também é difícil. A capacidade de gestão de uma marca destas tem de ter sempre as duas componentes.

Quais são as ferramentas concretas que o Portugal Fashion tem dado aos criadores para conseguirem manter o nível de internacionalização que têm neste momento, de forma independente?

Os criadores que estão com o Portugal Fashion e beneficiam das idas às grandes semanas de moda têm que aproveitar esta oportunidade para que estas presenças internacionais se traduzam em vendas, abertura de pontos de venda, criar contactos tanto com compradores como com jornalistas. Claro que a criação destes contactos também parte muito do esforço deles e do interesse em aproveitar essas oportunidades.

Como é que se faz a escolha dos designers que vão às semanas de moda internacionais?

A escolha parte do conselho executivo do Portugal Fashion, sendo que esta atual direção quer pensar o evento de forma mais estratégica. Estamos neste momento com um plano que foi aprovado recentemente e que vai trazer bastantes alterações. A nossa estratégia passa por o Portugal Fashion ser mais independente dentro da ANJE, com intenção clara de termos um painel próprio e o mais independente possível, para fazer essa avaliação dos designers e do seu trabalho.

Este ano o Portugal Fashion realizou pela primeira vez a Open House, que levou a Londres marcas de caçado e joalharia. Esta mudança de estratégia está relacionada com a renovação dos subsídios europeus que o evento recebe?

Eu não diria que é uma renovação de estratégia, é uma complementação de uma estratégia que já seguimos. A partir do momento em que fazemos um investimento para estar presentes nas principais semanas de moda, porque não aproveitar esse investimento complementando estas ações com outras áreas. Este evento estava pensado para ser em maio, não se pôde realizar e por isso surgiu agora, aproveitando os desfiles em Londres. Não foi pensado com o objetivo dos fundos, que agora estão em análise. Foi sim pensado com a nossa entrada em janeiro.

Este tipo de iniciativas que envolve áreas que têm as suas próprias associações, com várias ações de promoção do setor em que são especializadas, também elas financiadas por fundos europeus, faz sentido? Não existe uma canibalização dos setores e da sua promoção?

Acho que não. O nosso país tem de ter uma estratégia e essa estratégia tem de ser complementar aos vários setores. Uma associação setorial tem a sua ação direcionada àquele setor e quando se fala de feiras especificas deverão ser tratadas por cada associação. Mas quando falamos de ações conjuntas, acho que existe uma falta de estratégia bastante grande e é aí que os esforços têm de ser comuns, os portugueses têm de estar mais juntos nas coisas que fazem. É aqui que a ANJE e esta direção querem ter um papel agregador da indústria. Quando ações são conjuntas e não setoriais o Portugal Fashion gostaria de alargar a sua ação de atividade para abranger outras áreas que são complementares.

Acha que é possível haver esse tipo de alianças para ações comuns ou os interesses particulares de cada associação acabam por falar mais alto?

Vou responder de uma forma muito prática do lado da ANJE. Nós gostaríamos de ser um elo agregador e que isso de facto acontecesse. Para investirmos em ações como a Open House é porque achamos que é possível e que para nós é o que faz sentido. Queremos ter uma estratégia comum e sermos mais fortes juntos.

A ideia é boa, mas na prática isso é de facto possível?

Sendo um jovem empresário e representante da ANJE tenho de ser sempre otimista e positivo. Se achamos que é esta colaboração que faz sentido é o que temos de tentar que aconteça e é isso que estamos a fazer. Obviamente que nos vamos deparar com problemas, mas se estivermos todos alinhados, e esquecendo os problemas do passado, é mais fácil encontrar uma estratégia comum.

Faz sentido existirem duas semanas de moda em Portugal?

Eu acho sinceramente que não existem duas semanas de moda em Portugal. Existem dois eventos de moda em Portugal e o que faz falta é uma semana de moda no país. Tal como as ações conjuntas internacionais, podíamos pensar estrategicamente mais do que no nosso próprio umbigo e fazer uma ação portuguesa, que não fosse nem de Lisboa nem do Porto, que pudesse potenciar efetivamente o que fazemos de bom.

Já existiu esse diálogo entre o Portugal Fashion e a ModaLisboa?

Eu entrei há nove meses, o que posso dizer é que tenho ideia de que no passado já existiram essas conversações e que nós sempre demonstrámos abertura para, dentro de algo que faça sentido para o país, analisar a melhor forma de conjugar esforços. E não quero falar em particular da ModaLisboa mas sim de todas as associações.

Neste caso em particular, quando falamos de semanas de moda é da ModaLisboa que temos de falar, porque é a associação que tem um evento com o mesmo modelo de promoção da moda portuguesa que o Portugal Fashion. Para haver uma semana de moda portuguesa é de facto necessária uma negociação com a ModaLisboa. Já foi dado algum passo neste sentido?

Para haver uma semana de moda nacional podemos tentar, no limite, coordenar esforços. E uma coordenação de esforços não quer dizer que exista uma perspetiva clara de organização única. A coordenação é fundamental para não existir um Portugal Fashion muito sólido no Porto e que está a apostar cada vez mais em Lisboa, quando uma semana antes houve um evento em Lisboa. Acima de tudo acho que pode haver uma coordenação de esforços e de agenda.

É curioso essa posição da parte do Portugal Fashion, porque a Eduarda Abbondanza, no programa Conversas Delas, na TSF, falou precisamente de uma coordenação de esforços entre os dois eventos. Portanto a ModaLisboa e o Portugal Fashion têm a mesma posição em relação a este assunto. Nunca tiveram mesmo esta conversa?

Não confirmo nem desminto. Aquilo que posso dizer é que a ANJE está comprometida a ser um elo agregador, seja a nível nacional, seja a nível internacional.

A Eduarda Abbondanza, entre as coisas que nos disse, referiu-se ao apoios financeiros que o Portugal Fashion recebe, e a que pode concorrer por não estar em Lisboa, dizendo que “se fôssemos analisar ao nível da lei da concorrência isto é completamente desleal”. Quer comentar estas declarações?

Eu não tive oportunidade de ler as declarações, e não vou responder porque não é o teor desta conversa. O que posso responder é que o Portugal Fashion não tem demérito por estar localizado onde está. Se estamos num local que nos permite ir buscar fundos comunitários, não vejo qual é o problema de recorrermos a estes fundos. Esta é uma situação que acontece em todos os setores económicos, não é só na moda. Não temos culpa de termos acesso a fundos comunitários, eles existem. Acima de tudo temos de ter uma grande consciência para os aproveitar da melhor forma.

Era possível existir Portugal Fashion sem recurso a estes fundos?

Tal como outros eventos a nível nacional, à data de hoje o Portugal Fashion precisa de ser financiado. Este setor, e especificamente associações que se direcionam para o desenvolvimento de setores a nível nacional e internacional, é natural que sejam financiados, já que não estamos a trabalhar diretamente para nós. Por outro lado, continua a ser uma prioridade da atual direção da ANJE minimizar, neste mandato, a necessidade dos fundos comunitários. É nossa intenção criar um modelo de negócio que minimize a dependência destes fundos.

Como é que se pode fazer? Passará por patrocínios, organização de eventos que gerem receitas?

Sim. Temos ainda um caminho longo a percorrer na área dos patrocínios. Ainda temos de pensar num modelo ideal com as marcas e criadores para existir uma partilha de custo, como obviamente pensar no Portugal Fashion numa vertente mais comercial.

Alguma dessas coisas se poderá ver já no próximo Portugal Fashion?

O plano estratégico é muito recente e parte das ações desta nova estratégia está pensada para ser implementada no período de 6 ou 9 meses. Nesta edição do Portugal Fashion o mais importante foi reforçar a presença em Lisboa, com um evento a um sábado pela primeira vez.

Escreveu para o Expresso uma crónica em que fala da falta de mão-de-obra técnica e fabril na indústria portuguesa. Este é um problema que também se estende ao setor têxtil?

Este é um tema bastante atual. A falta de mão-de-obra é um assunto transversal a todos os setores a nível nacional. Há dez anos, fruto da crise que tivemos, muitos jovens altamente qualificados saíram do país. Isto trouxe-nos uma grande falta de recursos qualificados, mas também uma problemática grande porque o ensino foi muito direcionado para as universidades, em alguns casos bem. Há vinte anos o importante era ter o nono ano, depois era o décimo segundo, depois a licenciatura a seguir o mestrado. Agora temos muitos jovens com um esforço financeiro enorme neles e nas famílias para terem uma licenciatura e mestrado, muitas vezes para entrarem nesses cursos, acabam por ir para áreas que não gostam e em cursos com grande taxa de desemprego. Este conceito de privilegiar as licenciaturas, ainda que não haja saídas profissionais, acabou por prejudicar muitos jovens em idade ativa que noutras alturas seriam encaminhados para o ensino profissional. Um dos grandes erros do nosso país foi diminuir substancialmente o ensino profissional industrial. O que quer dizer que a nossa gama intermédia de profissionais reduziu bastante, passados dez anos e com o crescimento da economia não criámos condições para renovar esta classe de trabalhadores. Existe uma grande falta de mão-de-obra, que na minha opinião, é crítica para o futuro económico do nosso país.

Qual é a solução?

A solução é rever toda a vertente educacional adaptando-a à realidade económica do nosso país.

Isto é só um problema das políticas que se tomaram ou existe um preconceito social em relação aos curso profissionais?

Eu diria que este é um país de doutores e engenheiros, todos têm a mania que temos de ter uma licenciatura. E isso obviamente prejudicou o ensino profissional, mas por outro lado o financiamento que é dado às instituições de ensino foi também muito direcionado para o ensino superior.

Onde é que se vai buscar a mão-de-obra hoje em dia se não existem técnicos?

Posso garantir à data de hoje que há linhas de fabrico paradas por falta de colaboradores. Por isso muitas vezes não se vai buscar mão-de-obra, porque simplesmente não se consegue arranjar.

Em que setores é que isso acontece?

Na metalomecânica, por exemplo. No setor têxtil, em parte, também já tenho conhecimento de alguns casos. O setor mais industrial tem graves problemas hoje em encontrar colaboradores, tendo algumas vezes até que recusar encomendas por falta de capital humano para a capacidade produtiva.

Em Itália a Sáfilo, que é um dos maiores produtores de óculos a nível mundial, também tinha este problema de falta de mão-de-obra especializada. A solução passou por a própria empresa fazer formações na área com empregabilidade garantida por um determinado período nas suas linhas de produção. Acha que este pode ser um caminho para Portugal?

É um caminho porque vai complementar a menor aposta a nível nacional no ensino profissional.

Esta preocupação com a formação também é um cuidado do Portugal Fashion quando investe num setor tão industrial como a moda?

Tem de ser. No passado tem havido esses cuidado com o acompanhamento de alguns criadores. É uma das nossas prioridades que isso aconteça ainda mais, dentro da própria ANJE, tendo em conta que somos muito focados no empreendedorismo, criar programas específicos direcionados para a componente de moda. Queremos interligar a ANJE e o Portugal Fashion na vertente do empreendedorismo e formação para que os nosso designers e marcas possam ter um apoio e acompanhamento mais direcionado para este setor.

Já há algum curso destes a decorrer ou ainda é apenas uma ideia?

Começou obviamente por uma ideia, mas será algo muito importante para nós nos próximos dois anos. Para isso já temos um programa de aceleração, que é um curso curto, desenhado neste momento com uma formação geral de gestão direcionada para a área da moda.

“A moda é uma área que tem muito dinheiro mas só do Centro para cima”