Admirável Mundo Novo #eufariaomesmo

Diz o Artigo 98’ da Convenção dos Direitos do Mar das Nações Unidas: “qualquer navio está obrigado a prestar assistência a qualquer pessoa encontrada no mar em risco de se perder e a resgatar quaisquer pessoas em aflição, se informado que elas precisam de assistência”.

Naturalmente que, por se tratar de uma questão básica de sobrevivência e de respeito pelos direitos humanos, não está em questão a nacionalidade dos envolvidos. Chama-se, em linguagem corrente, salvar vidas. E não é crime.

Foi o que fez Miguel Duarte, voluntário da ONG Alemã Jugend, um dos 10 tripulantes do Navio Iuventa. Ajudou a salvar a vida de mais de 14 mil pessoas, repito 14 000 pessoas, ao longo dos 4 anos que passou a ajudar a recolher refugiados do mar. Pessoas que, de outra forma, teriam provavelmente morrido afogadas.

E por isso, Miguel, assim como toda a tripulação do navio, são agora acusados de ‘apoio à imigração ilegal por terem ajudado a resgatar milhares de migrantes no Mediterrâneo’. Se a acusação avançar para tribunal e forem considerados culpados arriscam-se a uma pena que pode ir até 20 anos.

Miguel repete, para todos os que o querem ouvir: ‘Quando vejo uma pessoa a morrer afogada não lhe pergunto se tem passaporte, tiro-a da água’, sublinhando que ‘estas pessoas não vêm por escolha própria. Uma mãe nunca deveria ter de por os seus filhos num barco em alto mar, com tão poucas probabilidades de sobreviver’ (como disse em entrevista ao Observador). Obviamente.

A ONG Humans Before Borders lançou uma campanha para ajudar a defender o Miguel na justiça italiana com o hashtag #eufariaomesmo que, felizmente, tem contado com o apoio de milhares de portugueses e o governo também já garantiu todo o apoio do estado português: ‘ é preciso olhar com cuidado para a tentativa de tratar como crimes ações que foram e são inspiradas em razões humanitárias’, afirmou o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, ao mesmo tempo que Marcelo Rebelo de Sousa louvou os atos de Miguel e toda a tripulação salientando que no Direito Nacional ‘a questão do auxílio é um direito em caso de risco de vida’.

Eu, quando me ponho na situação, repito bem alto #eufariaomesmo.

EU FARIA O MESMO.

Espera-se que o bom senso impere e que o Miguel seja ilibado. Neste momento, nem quero levantar outra possibilidade.

O que quero agora é perguntar a todas as que me estão a ler: quem não faria o mesmo?

E talvez ir mais longe: e se fosse connosco, se fossemos nós a ser obrigados a escapar do nosso país sem quaisquer salvaguardas e em condições precárias, com risco de vida para nós e para os nossos, aceitaríamos que se tratasse a questão dos refugiados da mesma forma?

Claro que não. E aqui estou a generalizar, até porque Portugal tem sempre tido uma atitude muito razoável nesta matéria, mas sabemos todos que essa não é a atitude generalizada na Europa. O que é triste.

Antes de serem refugiados, os refugiados são pessoas cujos direitos humanos são inalienáveis e têm de ser salvaguardados acima das leis de qualquer estado. E, sim, esta é mais uma questão que nos diz respeito a todos e que está a acontecer neste momento na Europa – que somos todos nós. Não vale a pena fechar os olhos e assobiar para o lado, a realidade é esta: há campos de refugiados na Europa e não podemos fingir que não é nada connosco.

Todos os dias morrem pessoas no mar a tentar escapar de situações limite e essas pessoas não podem simplesmente ser tratadas como números.

Terminei agora de ver uma série da BBC chamada ‘Years and Years’ (criada pelo Russell T. Davies) e que pode ser vista por cá na HBO Portugal. Tem 6 episódios e um ponto de partida simples e cirúrgico: apresenta-nos uma família em 2019, com o mundo como o conhecemos agora (em profunda mudança) e faz-nos avançar até 2029, projetando os efeitos de tudo o que está a acontecer (política, social e tecnologicamente) nas vidas daquela família a quem, naturalmente, nos vamos afeiçoando.

O conceito é tão interessante e, sob o meu ponto de vista, funciona tão bem pelos motivos óbvios: ao pessoalizar os grandes temas, ao humanizá-los, ao fazer-nos sentir que nos pode, de facto, acontecer a nós, não nos deixa ficar indiferentes. E responsabiliza-nos pelo mundo e por nós próprios – que talvez seja o mais importante no momento.

A crise climática não é brincadeira. A crise dos refugiados não é ficção. A tecnologia começa a substituir a mão-de-obra humana, acaba com postos de trabalho e compromete a sobrevivência de famílias todos os dias e ninguém está a pensar em alternativas. Por outro lado, o uso excessivo da tecnologia por parte das crianças (hoje em dia 1 em cada 11 crianças, entre os 8 e os 18 anos, é viciada em tecnologia) afeta seriamente a motricidade fina e contribui para uma diminuição das capacidades de concentração e de memória que condicionará o desempenho destes adultos no futuro. O avanço da extrema-direita compromete o diálogo entre os países e a manutenção de sociedades baseadas na igualdade, na liberdade e na tolerância pelas quais tanto lutámos. As fake news são uma realidade. E a manipulação da informação também. O consumo desenfreado está a explodir com o planeta. E as questões não ficam por aqui. Nem a nossa sensibilidade pode ficar.

O planeta somos todos nós e é bom que tenhamos consciência disso enquanto é tempo. Porque, embora cheio de desequilíbrios e terrivelmente injusto, é o mundo que temos e é maravilhoso e surpreendente na riqueza de possibilidades que nos oferece todos os dias e que nos cabe a nós preservar.

Mais uma vez: obrigada, Miguel, pelas vidas todas que salvaste sem olhar para os passaportes. Somos pessoas, não somos números.

Sem estragar ‘Years and Years’ para quem ainda a vai ver, faço questão de terminar aqui com parte de um discurso da matriarca da família num dos episódios:

“(…) Tem sido um século difícil. Mais difícil do que se pensava. Caramba, que carnaval! A culpa é vossa. De todos vós. Podemos sentar-nos o dia todo a culpar outras pessoas. Culpamos a economia, a Europa, a oposição, o tempo, as ondas de história, como se não tivéssemos controlo, como se fossemos impotentes. Mas a culpa é nossa. (…) É este o mundo que construímos. Parabéns a todos!”

E agora trocar a culpa por responsabilidade e pormos todos mãos à obra? Cada um no seu jardim. Antes que seja tarde demais. Este Admirável Mundo Novo somos nós.