Adriana Calcanhotto: “Essa foto de capa é o mar que temos hoje”

Em 1998, Adriana Calcanhotto lançava o seu primeiro álbum, composto totalmente por canções inspiradas no mar, a que deu o nome de Maritmo. Uma década depois veio Maré e, na última sexta-feira, 11 anos depois, surgiu Margem, o disco que vem fechar a trilogia.

A conciliar as aulas que dá na Universidade de Coimbra com a carreira musical, a cantora de 53 anos fez este trabalho com calma e sem pressões. A capa, em que aparece dentro de água rodeada de plástico e lixo, funciona como chamada de atenção para um dos problemas ambientais que mais a preocupa atualmente: a poluição dos oceanos (percorra a galeria de imagens no topo do texto para ver algumas das fotografias mais recente de Adriana Calcanhotto).

Numa passagem por Lisboa para promover o novo álbum, a brasileira quis ser entrevistada na Livraria da Travessa, uma das mais recentes da capital portuguesa, com as portas abertas há pouco mais de um mês. É entre os livros que continua a sentir-se em casa, esteja em que país estiver.

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Estamos numa livraria. A Adriana canta vários poetas e já deu muitos concertos em livrarias e bibliotecas em Portugal. É entre os livros que se sente bem?

Sinto-me muito bem entre os livros, adoro. Já fiz muitos concertos em livrarias e sinto-me muito bem, inclusive acusticamente. Cantar onde há livros dá muito certo.

Costuma ler muito? Que tipo de livros lê?

Sou muito curiosa, leio sobre os assuntos que me interessam. Leio, sobretudo, muita poesia e um pouco de filosofia e história.

Já cantou um poema de Mário de Sá Carneiro. O que acha da poesia e dos autores portugueses?

Gosto muitíssimo de poesia portuguesa. Considero que alguns são mais musicais do que outros, mas isso acontece com toda a poesia. No Mário de Sá Carneiro encontrei um tipo musicalidade. Isso também tem muito a ver com quem está a musicar, o tipo de vocabulário musical que a pessoa tem. Já musiquei algumas coisas de Adília Lopes, Fiama Pais Brandão e gosto muito de Herberto Helder, mas até agora ainda não consegui musicar. Gosto de ler mesmo aqueles em que não ponho música.

Disse uma vez, numa entrevista, que o Brasil não é um país de leitores. Isso mantém-se nas gerações mais novas?

Disse que não é um país de leitores mas não só. Disse que é um país que não lê poesia mas consome poesia através da música. Continua a ser assim e isso é muito bom. Fernando Pessoa é um poeta muito conhecido no Brasil através do trabalho musical de Maria Bethânia. Não só por isso, mas ela tem uma importância muito grande no amor enorme que o Brasil tem por Fernando Pessoa.

Tal como vem sendo hábito, neste álbum mistura vários estilos. Samba, bossa nova, baladas. Não gosta de estar presa a um só estilo de música?

Sim, não gosto de ficar presa a coisa nenhuma, embora, dentro de todos esses estilos que visito, se reparar bem lá no fundo, tudo aquilo é samba.

Começou a fazer álbuns com o mar como tema em 1998. Este vem fechar a trilogia. O que mais a apaixona no mar e em tudo o que o envolve?

Muitas coisas no mar me inspiram como metáfora da condição humana, a literatura sobre o mar e a forma como temos tratado o mar é um reflexo e sintoma da nossa civilização e sociedade. Os clássicos da literatura sobre o mar são livros que precisam de ser relidos durante uma vida e nunca são iguais. Isso é muito interessante porque vamos mudando, amadurecendo e, de cada vez que lemos esses clássicos, eles mudam também. Isso para mim é fascinante.

Quando fez o primeiro álbum com este tema já queria fazer uma trilogia? Foi algo já pensado nessa altura?

Não. Quando fiz o primeiro era só um disco de mar. À medida que começou a nascer a ideia do segundo, com uma canção aqui e outra lá, percebi que ia ser mais um disco sobre o mar. Aí estabeleci a trilogia porque vi que vinha aí um segundo e que provavelmente esse não daria conta de tudo, mas não sabia se ela seria completa ou não. Agora está completa enquanto trilogia, o que não significa que o assunto esteja esgotado.

Desde o primeiro álbum com este tema passaram-se 21 anos. O que mais mudou no mar?

Todos os problemas humanos em relação ao mar, a forma como tratamos o mar desde o primeiro disco até agora, ganharam uma urgência enorme e isso, para mim, é muito preocupante.

Na capa deste álbum aparece dentro de água, rodeada de lixo e plástico. É uma imagem forte. Pretende que funcione também como uma forma de consciencialização ambiental?

Essa foto da capa é o mar que temos hoje. Podia fazer uma fotografia num mar turquesa, mas essa não é a realidade do mar hoje.

Numa das músicas diz: “O plástico do mundo no peixe da ceia”. No Brasil já há muita gente a agir para combater este problema ou ainda há um longo caminho a percorrer?

Há muito a fazer, mas parece-me que com a Internet e as redes sociais as pessoas entenderam finalmente que mandar o plástico para o mar, que é essa espécie de lixeira, não é solução porque os peixes estão lá e o plástico volta para o prato. Comemos o lixo que mandámos para o mar. De alguma maneira há uma consciencialização maior desse ciclo e da ideia de que o planeta não é inesgotável. É tarde, mas dá-me esperança o facto de as crianças estarem conscientes disso e já estarem a agir enquanto nós pensamos. Isso dá-me algum conforto.

No seu site diz que Margem, a primeira faixa deste álbum, foi uma música que demorou algum tempo a construir e que foi feita ao contrário. Foi por isso que a escolheu para abrir este trabalho, apesar de La La La ser o primeiro single?

Nos anos 40 e até antes, quando se começou a gravar, tudo eram singles. Depois é que começou a coisa do álbum cheio e agora voltou-se para o single. Então saíram três primeiros singles e vai sair mais um com o álbum todo. Margem é o nome do disco e é uma canção que fala sobre identidade, que demorei algum tempo a fazer e fiz separando-me um pouco da guitarra, tentando ir para outros caminhos melódicos a que não posso ir quando estou com a guitarra porque estou limitada a esse instrumento. São tentativas de compor de maneira diferente e estou a perguntar-me quem sou eu, deixando de fora todas as respostas óbvias e externas de identidade. Não sou aquilo que o meu passaporte diz que sou, mas então quem sou? É isso que a canção pergunta.

Tua e Era Para Ser foram duas músicas que tinha oferecido a Maria Bethânia. Porque quis regravá-las para este trabalho?

Essas duas canções só posso gravar porque fui eu que escrevi, porque depois de a Maria Bethânia gravar uma música já não faz sentido que alguém grave, não é preciso, mas dou-me essa liberdade porque fui eu que escrevi. Peço perdão, mas é a canção da autora.

Fazia sentido fazerem parte deste trabalho?

Achei que fazia sentido neste grupo de canções.

Na Era Para Ser ouvimos uma guitarra portuguesa, certo?

Ouvimos guitarra portuguesa e, desta vez, tocada por um músico português. Já fiz algumas experiências com este instrumento, que tem um timbre lindíssimo, mas sempre tocadas por músicos brasileiros. É o tipo de coisa que tem o timbre da música portuguesa mas não tem a lógica musical de um músico português. Um músico brasileiro não consegue fazer essa lógica musical portuguesa e para mim são muito surpreendentes e comoventes aqueles intervalos. Quando está no arranjo de uma canção que escrevi parece que explicita todo o Portugal que está contido nas coisas que faço agora. Não há nada que faça que não tenha Portugal, mas quando é uma guitarra portuguesa tocada por um músico português como este reforça e explicita essa ideia.

Quem é o músico português que toca no seu álbum?

É o Ricardo Parreira.

Gosta de fado?

Gosto muito do fado e de todas as possibilidades desse género de música. Gosto das experiências que Amália fez com os poemas de Camões.

Com este, já gravou 18 álbuns. Olhando para trás, e se tivesse de escolher o seu preferido, qual seria?

Não consigo. Geralmente é o mais recente, o que está mais perto.

Os três álbuns que lançou dedicados às crianças tiveram imenso sucesso no Brasil. Pretende lançar mais trabalhos para esse público mais novo?

Tenho vontade de fazer mais, só ainda não fiz porque fui fazer outras coisas, como dar aulas em Coimbra. Para isso tenho de estudar muito e é uma oportunidade incrível que a universidade me dá ao convidar-me para dar aulas. Para fazer as coisas no nível que gosto de fazer não consigo fazer tudo ao mesmo tempo. Não descarto a ideia de fazer mais discos para crianças porque, desde sempre, a ideia foi abrir uma discografia. Nem tinha o objetivo de dar concertos, mas acabei por fazer porque eram as crianças que estavam a pedir e foi maravilhoso. Isso não posso prometer, mas álbuns sim.

Vive entre o Rio de Janeiro e Coimbra, onde dá aulas. Como tem sido gerir a vida e carreira entre duas cidades tão distantes?

São distantes geograficamente e na maneira de viver. A grande vantagem é essa, serem duas formas de vida muito diferentes. Quando estou numa não fico a pensar na outra, no sentido de: “Ai, gostava de estar lá agora.”Quando estou numa estou a viver aquela vida, daquela cidade. Deve ser assim, sem comparações.

Depois destes anos a viver em Portugal, o que mais a tem surpreendido no povo português?

Não gosto de ideias preconcebidas, não crio expectativas. Uma coisa que sempre me surpreende muito é que no Brasil não pensamos que Portugal, sendo tão pequeno, possa ser tão diverso. Temos a ideia de que somos diversos porque somos gigantescos, mas Portugal também é muito diverso, desde os sotaques aos costumes. É um país muito rico.

Participou também nas Conferências do Estoril este ano, onde se discutiu os desafios da lusofonia. Quais são, para si, os maiores desafios que enfrentamos atualmente?

Os desafios não são relativos à lusofonia, mas sim ao mundo, à diversidade, justiça global. Ontem perguntaram-me: “Como é que eliminamos os problemas?” Não eliminamos, jamais eliminaremos. A pergunta certa é: “Como é que lidamos com os problemas do mundo?” É através da educação e isso não é um bloco lusófono que vai resolver.

Como analisa o cenário musical atual do Brasil?

É algo impressionante, cada vez mais rico, cada vez mais efervescente. Agora é muito mais democrático, fácil e acessível produzir música. As crianças fazem música em casa ou no quarto. Há muitas pessoas a produzir música num só computador, é impressionante. O que se chamou um dia de “canção de protesto” está hoje na mão do rap e do hip hop. A vida marginal está a falar através desses estilos de música. O feminismo também tem essa voz através da música. As meninas negras estão a produzir músicas nos seus computadores. Foi uma coisa que se deu muito rápido. Quando comecei a minha carreira havia o músico, produtor, engenheiro de som, assistentes… Só homens a fazer isso. Hoje não. Elas compõem, cantam, tocam e isso é algo muito bom.

Em novembro atua em Lisboa e no Porto. O que podemos esperar destes concertos?

Ainda não tenho esses espetáculos em mente, só sei que o repertório da trilogia vai lá estar, vou cantar alguns êxitos e vou fazer algumas coisas que, ainda não sei o que são, mas provavelmente canções que conversem com o repertório da trilogia.

Adriana Calcanhotto vai dar aulas na Universidade de Coimbra