Adriana Queiroz: ” Kurt Weill sempre foi um fascínio para mim”

adriana queiroz capa
‘KW – Kurt Weill’ é o novo espetáculo que Adriana Queiroz leva ao palco já este sábado, dia 16 de setembro (às 21h) e domingo, dia 17 (às 17 horas) no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa. Concebido e interpretado pela artista, o espetáculo conta com a interpretação da Orquestra Metropolitana de Lisboa e do pianista Francisco Sassetti com orquestrações de Filipe Raposo. ‘KW-Kurt Weill’ percorre a vida e obra do compositor alemão, através dos três idiomas e dos três países onde viveu Alemanha, França e Estados Unidos da América. Mais focado nestes aspetos biográficos e menos no lado político, conhecido sobretudo da sua parceria com Bertold Brecht, este espetáculo convoca as diferentes facetas de Adriana Queiroz, cantora, atriz e bailarina, que começou por estudar dança clássica aos três anos, tendo pertencido à Companhia Nacional de Bailado, ao Ballet Gulbenkian e à Companhia de Olga Roriz. Mais tarde estreou-se na representação, no teatro. E da palavra dita passou à música, o seu “segundo instrumento de trabalho” que a acompanha desde sempre, como diz em entrevista ao Delas.pt. Na mesma conversa fala sobre este espetáculo que agora estreia e do seu fascínio pelo compositor alemão, mas também de um projeto sobre vozes femininas que tem preparado e pronto a ensaiar, à espera de um teatro que o receba: “Mulheres do Sul”.

Que tipo de espetáculo é este ‘KW- Kurt Weill’?
Eu não faço concertos, sou bailarina. De bailarina tornei-me atriz e foi a palavra que me levou à voz, ao canto. É um espetáculo, que tem concerto mas também uma linha dramatúrgica como fio condutor. Quando me perguntaram se era rapariga para fazer um espetáculo sobre o Kurt Weill disse logo que sim. E ao fim de um mês ou dois meses a pesquisar sobre ele e fiquei absolutamente fascinada pela sua vida.

O que é que a fascinou nele?
O Kurt Weill foi obrigado a fugir dos sítios onde esteve. Foi obrigado a fugir pela Gestapo [na Alemanha], ficou sem nada e destruíram-lhe a obra toda, foi para França e lá foi muito mal recebido, por ser comunista. Foi obrigado a ir-se embora, para Marselha, daí também teve de sair e foi para os Estados Unidos da América. E morreu em 1950 e passado poucos meses depois da sua morte começa o Macartismo e a caça às bruxas. Portanto, teria sido novamente expulso do país onde estava. O facto de este homem, em cada país para onde vai, recomeçar do zero, despir-se quase de tudo o que aprendeu para se encher da riqueza da música e das origens e de tudo o que era inerente aquele país e àquela cultura é um absurdo quando o mandam embora de todo o lado. Ele fez isso. Numa altura em que se erguem muros, barreiras, campos de refugiados, acho que este homem é um exemplo hoje daquilo que se passou há quase 100 anos. Independentemente de o expulsarem de alguns sítios, ele é uma história do ser humano perante todas as adversidades e foi isso que me encantou nele. Depois também há um lado pessoal. Eu já mudei três vezes de carreira…

Adriana Queiroz, nos ensaios com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, nos ensaios do espetáculo “KW-Kurt Weill” (Fotografia: JFS / Global Imagens)

Também se sentiu a começar do zero, sempre que transitou de uma arte para outra?
Sempre. Saí da Gulbenkian talvez influenciada pelo meu pai, que achou um horror eu deixar o Ballett Gulbenkian quando estava no apogeu da minha carreira e era primeira bailarina. Mas o meu pai também deixou a carreira dele quando estava no topo. E esse ideal ficou-me desde pequenina, eu quero que as pessoas me recordem como bailarina no auge da minha prestação, da minha fisicalidade e da minha energia. Despedi-me de todas as minhas companhias: da Companhia Nacional de Bailado quando achei que já não devia ser bailarina clássica e queria outras coisas fui para o Balett Gulbenkian, daí fui para a Companhia Olga Roriz e ao fim de sete anos também me vim embora. Sempre achei que estar muito tempo numa companhia é a morte do artista. Quando o sonho e a magia para eu tenho de seguir outro sonho. Não consigo viver num sítio onde eu própria não esteja à procura de um sonho, de um novo trabalho. Eu sempre que acaba um espetáculo, tiro uma semana e começo a escrever o próximo. Isso aconteceu com todos.

Voltando ao espetáculo, o alinhamento foca os três países onde Kurt Weill viveu. Mas como é que escolheu os temas, que tipo de alinhamento quis trazer para o palco?
Como fiquei fascinada com a vida dele criei duas linhas dramatúrgicas, sendo a primeira cronologicamente a vida e a fuga deste homem. O seu cariz social e cívico está apresentado, não está apresentado o lado político porque ele a partir do momento que foi para os Estados Unidos ele nunca mais falou alemão, nunca mais quis voltar à Alemanha ou ouvir falar sobre a Alemanha e afastou-se por completo, não do seu lado social mas de todo o seu lado político. Neste espetáculo aquilo que as pessoas mais vão ver retratado, na camada mais profunda é, de facto, a vida do Weill e as três décadas que estão representadas por três ambientes, por três mudas de roupa.

Os figurinos são do José António Tenente.
Eu gosto de trabalhar com o José António Tenente porque ele faz o mesmo tipo de pesquisa que eu. Uma pessoa diz-lhe: ‘eu que quero um fato assim para isto’. E ele percebe exatamente aquilo que se diz.

Um dos figurinos criados pelo estilista José António Tenente, num espetáculo em que a roupa marca também as diferentes épocas apresentadas em palco (Fotografia: DR)

 

Portanto, a roupa acompanha os diferentes momentos retratados no espetáculo.
As luzes e a roupa, assim como os membros da orquestra, que são os meus verdadeiros interlocutores. Há uma segunda camada dramatúrgica, mais superficial, mas que é aquela que faz o espetáculo em sim, em que eu começo na orquestra, sou um membro dela. Abre o pano, a orquestra ataca e a cantora não aparece. Portanto, esta rapariga que está na orquestra começa a cantar, à segunda música ela não aguenta porque quer contar aquela história aos colegas. E aí é que passa a haver uma dicotomia para o público e para orquestra, que não conseguem compreender se aquela era a mesmo a diva que decidiu começar o espetáculo ali e não dizer nada a ninguém se ela é a rapariga da orquestra.

Estão as três artes em palco: música, teatro e dança?
A dança não está em palco, está na fisicalidade. Cada vez que tenho um concerto, as pessoas dizem: ‘tem uma voz muito bonita, mas que bem que dança’. E eu fico: ‘ora essa, eu não me mexi’. Mesmo que eu esteja quieta as pessoas dizem que eu danço muito bem. Portanto, há uma fisicalidade inerente. Tudo aquilo que faz espetáculo, sem ser gags, porque não sou muito apologista de puxar a gargalhada, mas preciso de momentos entre as músicas de modo a que a pessoa saia daquele momento para entrar no outro. Eu não sou entertainer. Não tenho um alter-ego, mas existe uma intérprete que está interpretar aquele mundo.

Disse no início desta entrevista perguntaram se era rapariga para fazer um espetáculo sobre o Kurt Weill, mas fizeram-lhe um convite? Como é que surgiu a ideia de fazer este projeto?
Não, foi uma conversa banal. Só que Kurt Weill sempre foi um fascínio para mim. Todos os mundos que são habitados pela palavra e pela mensagem fascinam-me, além da música. O meu segundo instrumento de trabalho é, desde os três anos, a música, porque eu sou bailarina. Portanto, a música acompanhou-me a vida toda. Ainda para mais sou bisneta de uma cantora de ópera, neta de um cantor de ópera, sobrinha de uma cantora de ópera e os meus pais eram cantores. Eu só não cantei porque quis fugir a isso. Com quatro anos, ao contrário das outras crianças, eu ficava aflita porque todos falavam e riam muito alto. Os cantores de ópera riem todos com a voz colocada [risos]. A música é inerente à minha vida, o meu interesse em chegar à música vem da interpretação, de chegar à mensagem, vem através do teatro.

Adriana Queiroz, começou por ser bailarina, integrando diversas companhias da dança nacionais. Depois estreou-se na representação e em 2009 como cantora no espetáculo ‘NOW’. Em KW-Kurt Weill canta em três línguas: alemão, francês e inglês. (Fotografia: JFS / Global Imagens)

Tanto que fez primeiro teatro antes de passar aos concertos.
Sim. Há sempre para mim a preocupação da palavra, a não ser que seja uma música lindíssima que eu posso querer cantar só por cantar, de facto a minha preocupação nos espetáculos é dizer estas palavras maravilhosas, estas mensagens, estes textos. Isso é realmente o meu maior desafio. Depois é cantar.

Em línguas diferentes, no caso deste espetáculo.
Ele passa por três décadas, mas também por três línguas diferentes. O período alemão é cantado em alemão, o francês em francês e o americano em inglês. E como a orquestra “obriga-me” a voltar para cena e eles tocam o ‘Mack the Knife’, a música que eu não queria cantar. E eu aí decido-a cantar em português.

Depois deste espetáculo e da semana que costuma tirar, no final de cada um, já tem outro para começar a preparar?
Esse espetáculo que estou a preparar já começou, já parou, já voltou. Neste momento está parado, porque o Pedro Jóia está assoberbado de trabalho e eu também, mas, sim, estou a preparar o “Mulheres do Sul”. Obviamente, é mais uma viagem. Há dois anos começou a haver esta dualidade na União Europeia, entre os países do norte e os do sul e eu orgulhosamente dizia que era uma mulher do sul. E então fui ver o que é que isso queria dizer artisticamente. Fui pelas cantoras, pela música, e fui primeiro à América do Sul. Depois fui para a Europa. Temos muitas ativistas a nível de literatura mas não há cantoras. Na África ainda há, mas em vez de ser uma grande salganhada sobre cinco continentes acabei por voltar para a América do Sul, onde, de facto, entre os 1900 e 1980, as cantoras foram extremamente politizadas, ativistas e mudaram a mentalidade dos povos. Numa segunda camada, escolhi canções que só tivessem sido cantadas por mulheres. Depois eu não sou cantora de intervenção e estar a desvirtuar uma coisa que é uma corrente muito própria não podia ser. Então acabei por escolher cinco ativistas fantásticas: Elis Regina, Mercedes Sosa, Voleta Parra, Maria Bethânia e Chavela Vargas. Não pode haver melhor. E numa terceira camada pensei, não quero falar só sobre estas mulheres, quero falar sobre canções que independentemente de não serem políticas, pela força das mulheres que as cantaram, ou de como eram apreendidas no tempo da ditadura, tornaram-se hinos à liberdade. O ‘Como Todo Cambia’, que no Peru juntou um povo inteiro, ou ‘Como os Nossos Pais’, da Elis Regina, que passou pela censura. Depois fui buscar o Pedro Jóia. Já ensaiamos, neste momento estamos parados. E estou à espera de um teatro. Enquanto não houver intenção de nenhum teatro pôr isto em cena não posso estar a apaixonar as pessoas por este espetáculo.

Ana Tomás

Imagem de destaque: DR