Aida de ‘Alma e Coração’: de mulher-a-dias para a novela da SIC

Estava a passar a ferro numa casa onde trabalhava como mulher-a-dias quando me ligaram da produtora a dizer que tinha sido escolhida para o elenco de Alma e Coração”. Cleonise Malulo, 46 anos, entra-nos todos os dias pela casa adentro como Aida na novela da noite da SIC, e tem dado nas vistas.

Mas chegar à representação, cumprindo um desejo antigo, foi o culminar de um longo e sinuoso percurso de tentativas – alguns ‘sim’ e muitas ‘negas’ – por parte desta angolana de olhos gigantes e expressivos que trocou Luanda por Lisboa aos 19 anos e que começou por trabalhar como bailarina no Cabaret Maxime e no Parque Mayer, nos anos 90 do século passado.

Uma mulher que teve, já neste milénio e enquanto as oportunidades não ganhavam forma, tantas vidas como ser jardineira na Câmara Municipal de Oeiras, bailarina no Casino Estoril, dona de uma loja de marroquinaria em Caxias, empregada doméstica, baby sitter, empregada de restaurante e cantoneira.

“Ser atriz é um plano B. Tenho sempre um plano A que já passou por ser babysitting, que fiz durante três anos, fui jardineira na câmara de Oeiras, onde estive durante 11 anos e tantos outros trabalhos”, revela Cleo, diminutivo pelo qual é tratada, em entrevista ao Delas.pt. E querendo agarrar esta oportunidade com todas as forças que tem, a atriz, que é hoje coreógrafa no Teatro Maria Vitória, em Lisboa, não teme o futuro, embora espere que seja feito de representação.

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“Ainda não estou angustiada com o fim da novela porque agradeço todos os dias a Deus quando me levanto. Tive a oportunidade da minha vida, tenho recebido muitos elogios, tenho feito por evoluir como atriz e não estou à procura de fama, gostaria de ser reconhecida pelo meu bom trabalho, por ser boa atriz”, pede, numa conversa em que o riso e a voz embargada se sucedem à medida que os altos e baixos da vida vão sendo desfiados.

Mulher-a-dias, servir em restaurantes e participações especiais na TV

Casada e com um filho quase a completar três anos, Cleo tinha somado, até aqui, participações especiais e curtas em novelas como Paixão (2017), Amor Maior (2016), Depois do Adeus (2013), Windeck (2012), Makamba Hotel ou Hora da Lei (ambos em 2008 para a TVZimbo angolana). Mas a sua fonte de rendimento estava muito longe de chegar da ficção.

“Estava a trabalhar numa empresa de limpezas e cheguei a servir num restaurante, parada é que não podia ser, precisava de rendimentos”, recorda ao Delas.pt, revelando: “Quando me ligaram [de Alma e Coração] eu estava a ouvir, mas nem estava a acreditar. Foi uma confusão grande cá dentro.”

Afinal, as contas da atriz estavam fechadas desde o dia em que fez o casting. “ Quando cheguei aos estúdios vi montes de atrizes, que admiro imenso, e pensei: “Esquece, olha aqui as dinossaurinhas todas, não vou conseguir”, diz, entre sorrisos. “Fiz depois as provas e tive a sensação de que não ia ficar. Mas, mesmo assim, fiquei contente porque, para mim, foi um casting bom, muito bom. Estava orgulhosa”. Acabaria depois por ficar com o trabalho que pode mudar ou não a vida diante dos ecrãs.

De empresária de sucesso à tragédia

E se agora a vida de Aida de Alma e Coração parece estar nos eixos, não é preciso recuar muito para perceber que nem sempre foi assim. Há pouco mais de uma década, Cleo decide abrir, em Caxias, uma loja de produtos capilares africanos que, rapidamente, evolui para loja de roupa e marroquinaria. Um investimento que começou a correr bem e que lhe permitiu ser “jardineira na câmara de Oeiras de manhã, aperaltar-se no salto à tarde e brincar em modo dona-de-loja e ser estimada por isso, ser bailarina no Ballet Afro no Casino Estoril à noite e trabalhar como bengaleira no Coconuts (em Cascais) ao fim de semana”. “Era uma vida pesada, mas não me importava, eu gostava disso”, reconhece Cleo.

Um ritmo alucinante que durou alguns anos e, por volta de 2010, culminou num convite que, afinal, estava envenenado. “A loja estava muito bem, cresceu muito. Depois, uma pessoa incutiu-me a possibilidade de fazer uma sociedade em Angola. Levámos os produtos para lá, abrimos o espaço e, nos três meses em que lá estive, tudo correu bem. Mas, quando me vim embora, a suposta sócia nunca apareceu na loja, e acabou mal”, conta, de voz embargada.

Aida de 'Alma e Coração' Cleonise Malulo
Aida de Alma e Coração, da SIC, com Sharam Diniz [Fotografia: Divulgação]
Uma situação que a deixou “endividada até à raiz dos cabelos” – contas a particulares e a entidades públicas que ainda hoje anda a saldar com o trabalho que exerce – e que a deixou à fome e à beira do desespero. “Cheguei a passar fome”, desabafa. “Todo o dinheiro que fazia tinha de ser para pagar as dívidas”, suspira. Tempos de desespero que levaram Cleo mesmo ao limite. “Comecei a entrar em desespero, agora percebo porque é que as pessoas se matam. Não sou beata, mas acredito muito em Deus e só Ele sabe de onde já me tirou. Cheguei a pensar em matar-me.

“Fui varrer ruas e já não era ninguém”

Valeu a ajuda de alguns – poucos – amigos que lhe puseram comida em casa e a necessidade de voltar a olhar para a vida e para novos planos A. É neste contexto que, em 2011, Cleo regressa à câmara de Oeiras – de onde tinha saído para resolver os problemas em Luanda – não como jardineira, mas para ser cantoneira. “Inscrevi-me, fiz o concurso, fiquei e fui varrer ruas”, conta, em lágrimas.

Ao Delas.pt, a atriz explica que que a põe a chorar não é o facto de ter esta profissão, mas antes a forma invisível como passou a ser tratada. “Eu não tinha vergonha do que estava a fazer, mas as pessoas são más. As que iam à minha loja e para as quais eu era a Cléo, a dona Cléo, passavam por mim agora e não me viam”, conta, de olhos marejados. “À primeira vez, pensas: ‘Se calhar, não me viu”. À segunda vez, vais falar e percebes que não querem mesmo falar contigo. E vinha de toda a gente”

Hoje em dia, a Aida de Alma e Coração não cala a raiva contra a discriminação. “Tornei-me invisível mais pela questão económica do que por uma questão de pele, porque quando era a dona da loja, era negra na mesma e, aí, tratavam-me muito bem. Fui varrer ruas e já não era ninguém.”

Um preconceito que, na opinião da atriz, vai mais longe: “Trabalhar como jardineira, cantoneira, como mulher-a-dias é o que a sociedade impõe ainda à raça negra. Não vamos fazer filmes porque fui a entrevistas para muitas outras coisas – secretária, rececionista, ficar atrás de um balcão – e nunca me chamaram. Agora, fui sempre contactada quando me candidatei a empresas de limpeza ou para empregada doméstica”, diz.

Do Cabaret Maxime às revistas do Parque Mayer

Ainda antes de completar o Liceu, Cleonise aproveitou uma vinda da mãe – que trabalhava numa transportadora aérea em Luanda – e dos irmãos de férias a Lisboa para nunca mais voltar à capital angolana. “Uns amigos que andavam comigo na dança convenceram-me a ficar e fui para o Cabaret Maxime”, desfia a atriz que não completou a formação de Clássica na íntegra, fez jazz, ginástica rítmica, desportiva, de competição.

Uma vida de dança que, apesar de ser num Cabaret, nunca colocou Cleo numa posição vulnerável. “Eu só fazia o espetáculo internacional às 21.00 e depois da meia-noite”, conta, recordando que “quem estava no Ballet era respeitado e estava tudo muito bem definido”.

Aliás, entre risos, Cleo fala da ingenuidade com que viveu esses tempos. “No Maxime, tinha duas mães de coração. Uma delas, a Vera, trazia-me sempre a casa já de madrugada. Só mais tarde é que percebi que quando ela não me acompanhava – e me dava dinheiro para eu apanhar o táxi em Paço d’Arcos, assim que saísse do comboio – era porque saía com clientes”, recorda.

Uma vida de dança noctívaga que durou cerca de um ano porque, em 1992, Cleonise subia um pouco mais da avenida da Liberdade, em Lisboa, para começar a trabalhar no mundo das revistas à portuguesa e conhecer, por dentro, a profunda crise que se instalou neste género teatral e naquele disputado espaço da capital.

Ainda assim, durante cinco anos e com salários mais ou menos magros, Cleo esteve na peça Quem Tem ECU Tem Medo, Pão e Laranjas e Pernas para o Ar. Foi aqui que se estreou como atriz: “Fiz de muda e o Carlos Miguel estava apostado em dizer que ia ter uma carreira brilhante de atriz pela frente”, refere, entre risos. 26 anos depois, aí está Cleo na novela da noite de Carnaxide.

Infância “boa”, mas difícil, em Luanda

Nascida em 1972 na capital angolana, Cleonise é a mais velha de cinco irmãos da parte da mãe e cinco da parte do pai. Fala numa infância ”boa”, mas com dificuldades. “A minha mãe, muitas vezes ia trabalhar, e deixava-me a mim e à minha tia no quintal, comíamos terra. Ela às vezes ainda fala nisso a chorar. À noite, quando chegava só havia, por vezes, um biberão de chá preto que era para dividir com a minha tia”, refere.

Uma vida em que, apesar de tudo, a matriarca da família – hoje em Londres – fez de tudo para que não faltasse nada aos filhos. “Lembro-me que devia ter uns nove anos, eu e os meus irmãos não cedíamos, queríamos e tínhamos festas de aniversário, todos os anos vínhamos a Lisboa passar férias. Às vezes, sinto que fui injusta com ela por lhe exigir tanto”, lamenta agora Cleo.

Sem pai – que já morreu e a quem Cleo, aos 16, 17 anos, escreveu uma carta que ele recusou -, a atriz cresceu com o padrasto, com quem nem sempre se deu bem, mas com quem fez as pazes anos mais tarde. “Tivemos uma fase muito complicada, havia violência doméstica e tenho memórias feias, mas entendemo-nos mais tarde”. Hoje, tudo é mais simples e a reunião com os irmãos é algo relativamente comum na família.

Voltar a Luanda ou não? Depende…

Cleonise Silva Marcos Holden Malulo tem estado, nos quase 30 anos de maioridade, entre Lisboa e Luanda, tendo trabalhado sobretudo em Portugal, mas também em Angola.

Por lá, mais recentemente e em 2014, esteve a acompanhar concursos de Misses – tal como já fazia no Miss Oeiras – e não descarta a hipótese de voltar. “Depende, se bem que hoje em dia é mais complicado porque tenho um filho pequeno e família constituída cá”, conta ao Delas.pt.

Sobre a nova Angola de João Lourenço (que sucedeu a José Eduardo dos Santos), esta mulher a quem o apelido Holden lhe trouxe um ou outro susto – embora não seja da família de Holden Roberto, fundador da UPA (União dos Povos de Angola, em 1960) – é cautelosa na análise.

“Para mim, mais do que chegar e remover os antigos dirigentes dos cargos, valorizo antes as medidas que se tomem e que mexam mesmo com o país e a vida das pessoas”. E Cleo não tem dúvidas sobre o que considera prioritário: “Educação, saneamento básico, saúde, é aí que se muda uma sociedade.”

Imagem de destaque: Gerardo Santos/Global Imagens

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