Aida Tavares: ” Vou ter nesta temporada mais algumas mulheres que nunca passaram pelo São Luiz”

Aida Tavares é desde 2015 diretora artística do Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, e um dos raríssimos casos de uma mulher a ocupar este tipo de cargo, no país. A trabalhar neste espaço desde 2002, conhece os cantos à casa como poucos. Foi diretora de cena e coordenadora de direção de cena, adjunta da direção do teatro até ser nomeada oficialmente para o cargo de diretora artística, sucedendo ao programador José Luís Ferreira. Uma decisão contestada, à altura, por não ter decorrido de concurso, mas que “não fez mossa” na missão que Aida Tavares traçou para o seu mandato à frente do São Luiz: fazer o “acompanhamento e desenvolvimento do trabalho dos artistas”, como explicou em entrevista ao Delas.pt, antes do arranque da nova temporada, 2017/2018. Nos primeiros dois anos como diretora conta que quis trazer àquela sala da capital artistas que nunca tivessem por lá passado. Constatou que grande parte eram mulheres e o que começou por ser uma afirmação de igualdade de género rapidamente se tornou natural numa programação que procurou trazer projetos novos e diferenciados a um dos teatros municipais da cidade, contando para isso como uma forte representação feminina. A relação com o público e a internacionalização do São Luiz como co-produtor de espetáculos, dentro e fora de Portugal, são outras das marcas que Aida Tavares pretende deixar enquanto diretora. Leia a entrevista e na fotogaleria, em cima, consulte alguns destaques da programação para a próxima temporada, que arranca a 15 de setembro.

 

Qual é o balanço que faz destes dois anos e meio como diretora (oficial) do Teatro São Luiz?
Acho que estou a meio de um caminho, mesmo! Estes primeiros dois anos significaram o início de algumas alterações relativamente ao posicionamento do teatro, quer à escala da cidade, quer à escala do país e mesmo no plano internacional – que era uma relação que não existia. Portanto, estes dois anos serviram para testar diversos caminhos e abrir portas, sobretudo. No plano nacional não há uma grande alteração. Em termos das grandes produções portuguesas, eu diria que a maior mudança tem a ver com o facto de neste momento se fazer mais a disciplina de dança do que se fazia em anos anteriores. É uma área que tem vindo a ter um crescimento e um posicionamento diferente. O projeto ‘Mais Novos’ que também é novo e tem sido uma experiência extremamente rica, importante e determinante na fixação de públicos infanto-juvenis e familiares. E, pela primeira vez, o Teatro São Luiz fez opções claras no caminho internacional.

Que tipo de opções?
Do ponto de vista da relação com a programação internacional, trazendo projetos internacionais, mas criando pontes e estabelecendo uma relação para a internacionalização dos artistas portugueses. Estamos a fazer esse caminho, acho que estes dois anos têm um balanço muitíssimo rico. Um dos exemplos é o que aconteceu, em 2016, com o Teatro Praga. A partir das nossas relações, o ‘Zululuzo’ faz uma residência na Bienal de Teatro de Istambul, de quem somos parceiros. Estreia em Istambul, a seguir faz Paris, Brasil, também numa relação nossa com o Sesc, de São Paulo, faz o Festival Mirada [Brasil] e só depois é que abre a temporada em Lisboa. Isto é o exemplo de uma relação que nós queremos estabelecer no plano internacional. Por outro lado, fazemos opções claras, também plano internacional, de acompanhamento a alguns artistas, que queremos continuar a trabalhar, como é o caso da [encenadora e marionetista italiana] Marta Cuscunà, que veio já fazer dois espetáculos cá, e agora vamos ser co-produtores internacionais do seu novo projeto. Mas também artistas consagrados, como o Romeo Castellucci. Somos co-produtores do projeto ‘Democracy in America’, que vem a Lisboa no próximo ano. E a Christiane Jatahy. Vamos ser co-produtores do seu novo projeto, com o Odion, de Paris. Estas são as linhas mestras de programação.

Aida Tavares é diretora há dois anos do Teatro São Luiz, em Lisboa, um dos teatros municipais da cidade. (Leonardo Negrão / Global Imagens)

Depois há também a programação do público.
Temos um projeto, no qual estivemos a trabalhar na última temporada, que se chama ‘O Público vai ao Teatro’, e que é um projeto de mediação de públicos e desenvolvido com três tipos de grupos: crianças, adultos e professores, uns no ativo e outros ainda em formação, que ao longo dessa temporada nos acompanharam na programação – fazendo workshops, discutindo com artistas, assistindo a ensaios, conversando connosco sobre o que é o ato de programar, e no próximo ano este projeto vai ter uma segunda etapa. Há um fim de semana em que eles vão programar as salas todas, numa discussão com o programador. Isso vai ser a concretização daquilo que eles têm vindo a adquirir e a aprender, ao logo deste ano.

É uma espécie de projeto-piloto ou é para continuar?
É para continuar. Para já, vamos avançar para a próxima temporada neste contexto, com um lado mais formativo. Eles vão ver espetáculos não só aqui, como noutras salas – vão continuar a ter essa relação com os espetáculos – e depois acaba com esse módulo de programação no qual vamos trabalhando ao longo do ano. Digamos que é um projeto subterrâneo e transversal a todo o teatro, porque eu acho que é fundamental essa aproximação das pessoas. Há outros projetos, sobejamente conhecidos, como o Bilhete Suspenso, o nosso serviço de audiodescrição, de língua gestual portuguesa, de sessões descontraídas. Há uma série de objetivos que nós tínhamos traçado, no início deste mandato, e que estamos a desenvolver na área das acessibilidades e do serviço público.

E esses projetos têm conseguido trazer mais público ao Teatro ou ainda é preciso fazer mais?

Têm. É público que habitualmente não vem. Se um cego não tiver audiodescrição, pode ouvir, mas dificilmente vem. Como os surdos. A língua gestual é fundamental para eles estarem por dentro do espetáculo que estão a ver. São serviços, de facto, facilitadores. Não é na busca do público. Servimos o público, que tem aquelas necessidades, e os espaços têm de estar adaptados a tudo isso.

Mas de um ponto de vista mais lato, e falando noutros projetos que referiu, além das acessibilidades, como se faz para trazer as pessoas ao teatro, sobretudo depois de uma profunda crise económica?
Por um lado, há uma questão de acessibilidade neste teatro que são os preços. Nós praticamos preços, efetivamente, populares com um enorme leque de descontos. As pessoas conseguem vir ao teatro por 6, 7 euros, que é um bilhete praticamente de cinema. E depois para os que não podem ou que estão em situações de risco temos o bilhete suspenso, da parceria com algumas instituições. Temos esse lado que tem a ver com a possibilidade de toda a gente poder ir ao teatro, e que tem a ver com esse tipo de políticas que estamos a desenvolver. Por outro lado, projetos como ‘O Público vai ao Teatro’, que nos permite uma mediação depois com as escolas e com os professores. São 90 pessoas e se isto for possível de se multiplicar nas suas escolas, nos seus empregos, porque são pessoas que vêm de sítios muito diferentes… O grupo de adultos tem de tudo um pouco e estabelecer essa relação é alargar os públicos e claro que esse é sempre um objetivo quando se programa um espaço destes. E, de facto, não nos podemos queixar. Devo dizer que, de há três anos para cá, subimos de 48 mil espetadores, por ano, para 80 mil. Somos uma sala com muita programação, mas também muito público.

Como foi dirigir o Teatro nestes anos de crise? O São Luiz foi uma espécie de oásis, neste panorama, durante esse período de maior constrangimento financeiro.
É outro tipo de gestão, do ponto de vista orçamental, estando em contra-ciclo. Mas a importância que a Câmara dá a este setor foi determinante para o trabalho que desenvolvemos em tempo de crise. Isso fez com que nós conseguíssemos apoiar muitos mais projetos de criação nacional. E, de facto, virámo-nos bastante para conseguir – embora não consigamos fazer tudo aquilo que é necessário – suportar uma parte substancial da crise que as companhias e os criadores estavam a viver. Desse ponto de vista foi muito importante estruturas como a nossa manterem esse equilíbrio financeiro. E fomos um pólo fundamental – como outros teatros do país. Co-produzimos, somos motores de criação em termos nacionais. Apesar de ser uma pressão enorme, acho que essa estabilidade foi fundamental para as estruturas e para alguns criadores.

O São Luiz dispõe de serviços de língua gestual portuguesa e audiodescrição para alguns espetáculos. Aida Tavares quer que em breve estes possam também ser legendados em inglês e francês. (Leonardo Negrão / Global Imagens)

Trabalha no São Luiz desde 2002, antes deste cargo já tinha tido funções de direção. Mudou muito no seu dia-a-dia, a partir do momento em que foi nomeada diretora artística deste Teatro Municipal de Lisboa?
Sim e não. Eu passei por muitas áreas desta casa e há um fator que acho fundamental que é a relação que eu tenho com a equipa. Acho que é uma mais-valia enorme desse ponto de vista, eu conhecer toda a gente, ter trabalhado lado a lado, naquele palco, como diretora de cena e coordenadora de direção de cena com toda a equipa técnica. Tenho um domínio e um conhecimento técnico sobre os espetáculos. Há uma componente técnica e cénica para a qual eu estou preparada e é fantástico para mim como programadora, porque quando olho para o palco sei o que é que estou a ver no plano técnico e isso ajuda-me muito na adaptação dos espetáculos a esta sala. Essa dimensão da relação foi fundamental. Tento que não mude muito, mas claro que muda sempre. Passo muito mais tempo no escritório e muitas vezes também estou fora, a ver coisas. Mas agora, por exemplo, acabei de vir da copa, de almoçar com a equipa. É uma coisa que faço com muita frequência e, como já não estou tanto daquele lado, no dia-a-dia, tento muitas vezes estar com as pessoas. Tento sempre preservar isso, porque os teatros fazem-se de pessoas.

Essa evolução profissional não foi bem entendida por algumas pessoas, quando foi nomeada diretora artística do São Luiz, no início de 2015. Surpreendeu-a essa contestação?
Não, não me surpreendeu.

Não estamos habituados a esse tipo de mobilidade profissional?
Não. Na verdade acho que não. E, para além da questão de ser uma pessoa que já cá estava, houve outro fator que teve a ver com o concurso. Essa foi a grande questão. Não me pareceu, daquilo que eu li, que a questão fosse comigo. O que estava ali a ser contestado era o modelo, ou resultado do concurso. Acho que isso faz parte e nós mostramos aquilo que somos, aquilo que valemos e a importância que temos no desempenho diário das nossas funções. Acredito sempre nisso. E há um outro princípio que para mim é fundamental: jamais aceitarei alguma função, e já fui convidada para várias, para a qual não esteja qualificada. Aceitei o desafio, pensei muito, saberia que o eco da decisão poderia não ser entendido, mas encaro isso com alguma naturalidade. Não me fez mossa.

Que tipo de público vem ao São Luiz, sendo que não é o único teatro municipal de Lisboa?
Sim, na verdade, se olharmos para os dois teatros municipais [São Luiz e Maria Matos] é muito interessante, porque essa relação estabelecida entre mim e o Mark [Deputter] também é relativamente recente. Com o início dos nossos novos mandatos temos vindo a estabelecer alguma relação de parceria: as noites Maria&Luiz, o cartão Maria&Luiz. Além dessas parcerias, nós trabalhamos com artistas bastante diferentes e em momentos diferentes da sua vida. O Maria Matos tem uma relação maior com os artistas emergentes, faz uma programação também muito internacional mas com artistas que não têm entrada no modelo de programação do São Luiz. E isso é muito tranquilo para nós, porque de facto há essa diferença entre os públicos. A relação que nós temos e a missão dos dois teatros são bastante diferentes. É muito interessante uma cidade como Lisboa ter dois teatros municipais, que têm uma programação completamente diferente mas estabelecem entre si alguma relação, e nós vamos ter alguns projetos na próxima temporada. Artistas que começaram no Maria Matos e que já faz sentido fazer um trânsito para o São Luiz. Fazemos depois a ligação no trabalho do artista. Isso vai acontecer, por exemplo, nesta próxima temporada. E isso também é novo e tem sido uma aposta.

Qual é a principal missão do São Luiz?
Acho que tem como missão principal o apoio à criação artística contemporânea e depois, dentro disto, acho que o São Luiz tem de ter um trabalho de fundo relativamente às artes performativas, essencialmente dança, teatro e música. Mas a música num contexto diferente, porque o trabalho que fazemos com a música não é feito noutros teatros. São projetos em que damos condições aos músicos para trabalhar e isso acho que é uma missão fundamental do São Luiz: o acompanhamento aos artistas e dar-lhes condições de trabalho para continuar. Estamos a fazer isto em várias das artes performativas. Mas a música é um exemplo interessante. O trabalho que o Camané fez aqui, com orquestra e com os arranjos do Filipe Raposo, num contexto muitíssimo especial, não fará noutro sítio. Estes desafios, nesta relação que estabelecemos com a música, são muito diferentes do trabalho habitual que os artistas da área da música fazem. Vamos desenvolver, para o ano, um projeto com o Ricardo Neves-Neves, um jovem encenador com quem começámos a trabalhar e a quem vamos dar condições para desenvolver uma criação com orquestra e com coros. Um dos meus objetivos é que essa relação de acompanhamento e desenvolvimento do trabalho dos artistas seja uma marca da nossa missão. E acho que é uma missão fundamental de um teatro, seja nacional ou municipal.

Dentro dessa missão, procurou trazer mais criadores do sexo feminino – em 2015 trouxe 12 criadoras para desenvolverem trabalho no São Luiz. As mulheres ainda estão sub-representadas na programação cultural?
Sim. Foi muito interessante, porque naquele momento [da nomeação para diretora artística] eu estava numa fase de interregno, já estava a dirigir o Teatro, e tive de começar a fazer [a programação], num tempo recorde. Comecei a imaginar criadores que tinham a ver com aspetos de teatro que achava que nunca tinham passado pelo São Luiz e que faria todo o sentido trabalharem cá. E estava a pensar isto em geral, não só em mulheres. Quando começo a colocar os nomes numa folha eram mulheres e isso fez-me pensar muito sobre essa questão e acho que, de facto, muitas vezes há menos possibilidade de as mulheres trabalharem. A partir daí imaginei que também eu sendo mulher – pela primeira vez o São Luiz tem uma mulher na direção artística e sou das poucas em termos nacionais – era interessante olhar para isso. Convidei uma mulher fotógrafa, que é a Estelle Valente, que tem um olhar extraordinário sobre as pessoas. Houve todo um statement que se desenhou a partir daí, mas que surge deste exercício que fiz logo no início: vamos colocar numa folha quem é que faria sentido estar aqui, nunca esteve e tem de passar a estar.

E apercebeu-se que eram mulheres.
Eram basicamente mulheres, poucos homens.

Que nomes femininos, entre os mais conhecidos ou relevantes, é que não tinham passado pelo São Luiz até à data?
A Joana Craveiro, a Sandra Faleiro, a Ana Luena, que é uma artista emergente, a Gisela João, que nunca tinha feito aqui nada, a Beatriz Batarda, que nunca tinha encenado aqui, a Olga [Roriz] que não vinha cá há muito tempo. De repente, estavam ali aquelas mulheres todas – e vou ter nesta temporada mais algumas mulheres que também nunca passaram aqui – que, na sua maioria, nunca tinham estado no São Luiz e que vieram. E vamos continuar a trabalhar com a maior parte delas. Acabou por ser uma espécie de statement deste período do meu mandato, que está sempre presente. Não procuro isso particularmente, mas de facto há muitas mulheres que não têm possibilidade de encenar em muitos sítios, por exemplo. E às vezes fazem-se umas opções que não se percebe bem porquê. E, pronto, foi uma coincidência super feliz. Para mim fazia todo o sentido.

Sendo um teatro municipal, a paridade é responsabilidade acrescida ou devia ser?
Eu não penso nisso, se calhar, dessa forma tão matemática. Mas sim, essa abertura na relação com as diversas áreas, sim. Acho que a programação do São Luiz mostra um pouco isso, essa diversidade e essa liberdade, que acho que é fundamental.

Voltando à internacionalização, que falou logo no início, hoje Lisboa é uma cidade que está no mapa global, recebendo milhares de turistas, figurando nas revistas internacionais. É também vista, lá fora, pelos estrangeiros, como uma capital de cultura?
Sim, completamente. As pessoas ficam muitíssimo impressionadas coma oferta cultural que a cidade tem. E eu noto isso nas reuniões com parceiros. As pessoas ficam muito impressionadas quando vêm cá. A oferta cultural na cidade é enorme, para o número de habitantes, obviamente. Nós também nessa vertente estamos a tentar fazer com o Turismo de Lisboa um trabalho mais persistente para legendarmos espetáculos portugueses em inglês e francês. É um dos nossos objetivos. Já temos muitos turistas a virem ver espetáculos, nomeadamente de música e dança, temos um flyer especial só para a parte internacional e temos já visitas guiadas ao teatro em inglês.

Quais são os projetos que já gostava de ter posto no palco do São Luiz mas ainda não conseguiu?
Acho que a maior parte dos sonhos estão a ser realizados e acho que é um caminho que estamos a conseguir fazer tranquilamente, dando ao São Luiz uma importância em termos nacionais e internacionais que acho que este Teatro merece. E sobretudo deixa-me muito feliz a relação de confiança que temos com os artistas e com o público. Esse é o meu grande sonho, que esta casa seja uma casa de confiança do público e de confiança dos artistas.

 

Fotografias: Leonardo Negrão/Global Imagens