Aldina Duarte é a voz que encerra, esta quinta-feira, 28 de setembro, às 21h30, as noites ‘Sou do Fado’, no largo São Carlos. Esta iniciativa, de entrada gratuita, no âmbito do ‘Lisboa na Rua’, tem levado fadistas consagrados àquele espaço da capital, ao longo deste mês. Um palco que é bem diferente daquele que enquadra o fado intimista de Aldina Duarte. Vencidas hesitações iniciais, a cantora diz-se preparada para transpor o seu universo, o seu fado, para o largo do teatro que é casa da ópera, em Portugal. “Quando há um enquadramento arquitetónico, que já experimentei em alguns lugares, como é o caso, privilegiado e com uma beleza e uma alma próprias, eu arrisco”, afirma a fadista, em entrevista ao Delas.pt. Se houver margem no concerto, Aldina Duarte vai arriscar também cantar dois fados do seu novo disco, com lançamento previsto para 13 de outubro. “Quando Se Ama Loucamente” é o título do álbum e de um dos temas do alinhamento, que tem assinatura de Manel Cruz, ex-vocalista dos Ornatos Violeta. O disco é um tributo à escritora Maria Gabriela Llansol e um dos diferentes projetos que ocupa Aldina Duarte, neste momento.

O que é que preparou para este espetáculo no Largo São Carlos, que encerra o ciclo de concertos ‘Sou do Fado’?
Tive muitas dúvidas e muitas hesitações quando aceitei porque a dimensão e o ar livre no meu tipo de repertório são dois fatores muito importantes. Mas quando há um enquadramento arquitetónico, que já experimentei em alguns lugares, como é o caso, privilegiado e com uma beleza e uma alma próprias, eu arrisco. E já me aconteceram concertos ao ar livre com uma força incrível no que diz respeito à intimidade e à concentração que o meu repertório me exige – quer para mim, quer para quem me ouve. Quando se consegue numa dimensão acima da média para o que é habitual, como é o caso deste espaço e ao ar livre, essa união entre o público e aquilo que tenho para lhes dizer é, de facto, indescritível.

E que repertório escolheu para um espaço como este?
Pensei se, dentro do meu repertório, escolheria um repertório mais extrovertido ou mais introvertido, se faria uma mistura equiparada dos dois registos e decidi que não. Vou fazer um concerto talvez tão ou mais íntimo do que é habitual.

E como é que se põe essa “intensidade intimista”, como refere no seu Facebook, num palco com estas características?
É confiar nos céus, nos anos de trabalho e na grande paixão e convicção que tenho nos fados que canto, mais do que em mim.

Que temas se vão poder ouvir?
Vou cantar temas de todos os meus discos. Vou fazer um alinhamento que nunca fiz e vou criar um guião, como sempre. Na minha cabeça eu estou a contar uma história com princípio, meio e fim, independentemente da maneira como cada um a recebe. Há quem receba fado a fado, há quem receba o todo, não importa. Eu preciso criar essa ordem e esse guião. Tenho de pensar nos meus concertos como um filme, que trata daqueles assuntos e tem aquelas personagens. E eu quando canto estou sempre a cantar para alguém, na minha cabeça ou no meu coração. Vou fazer isso. Se correr bem, nos encores vou estrear dois fados do meu novo disco.

Disco esse que sai em outubro e sobre o qual tem vindo a desvendar alguns detalhes. Um deles é o título do álbum, “Quando Se Ama Loucamente”, cuja faixa com o mesmo nome é da autoria de Manel Cruz, ex-vocalista dos Ornatos Violeta. É um nome que associado ao fado é uma surpresa. Como surgiu essa participação?
Estava em casa, fui ao email de manhã, como é habitual e tinha um tema que o Manel Cruz fez, dedicado a mim, e fiquei espantada. Eu sou fã dele desde sempre, mas não sabia que ele também gostava tanto e admirava tanto o meu trabalho – como ele me veio a dizer – ao ponto de, do nada, fazer um tema a pensar em mim. Isso é muito tocante.

Isso quer dizer que este disco será mais do que fado, com outros géneros musicais?
Não há nada que seja mais do que fado. Nada [risos].

Portanto, foi o Manel Cruz que veio ao encontro do fado?
Eu acho que é um encontro do Manel Cruz comigo e com o meu fado. Não sei se o Manel Cruz terá essa ligação ao fado, mas a mim tem e ao meu fado também.

Voltando ao concerto desta noite. O público deste tipo de espetáculos é diferente.
Sim, eu venho aqui desde jovem assistir a concertos de vários estilos musicais. E este público está habituado a ouvir música e em Lisboa tenho um público fiel, que me acompanha e sabe ao que vem.

Mas aqui vão juntar-se outros…
Outros públicos. Exato. Que eu espero que seja, numa parte, aquele público de que eu estou habituada a fazer parte quando estou a ouvir outros concertos, que é um público maravilhoso: sabe ouvir, sabe aplaudir, sabe participar como público.

Muitos também a ouvirão pela primeira vez, porque este é também um local de passagem e turístico. Tem alguma expectativa em relação a isso?
Não, eu não penso nisso. Nunca penso nos resultados nesse aspeto. A minha única preocupação atualmente, depois de algumas conquistas que fiz, ao nível do público e do percurso que me propus a fazer, que era bastante arriscado porque era demasiado singular, é não defraudar quem me ouve e me acompanha há tantos anos e me permite existir enquanto fadista a fazer o que quero. Podia não ter resultado e há muitas pessoas na minha área artística, com muito mais sucesso do que eu. Mas nada ocupou o meu espaço e isso foi bom. E estar cá há 20 e tal anos é maravilhoso.

Está a trabalhar num texto com a atriz Maria João Luís. O que nos pode contar sobre isso?
São quatro espetáculos, a partir do [livro] ‘Finisterra’, do Carlos Oliveira. Isto é outra aventura paralela em que eu estou e em que eu espero permanecer, primeiro porque sou uma admiradora do trabalho incondicional da Maria João Luís, andámos juntas na António Arroio quando éramos adolescentes. Acompanhei-a sempre, desde então, e ela agora propôs-me trabalhar num dos textos, para mim, mais belos da literatura portuguesa e de um dos maiores escritores de sempre. Então eu vou ser uma espécie de banda sonora daquele acontecimento, ainda que seja personagem e que também leia partes do texto. Já temos quatro espetáculos marcados, em novembro e em dezembro, fora de Lisboa. Neste momento, é um desafio, a par do meu novo disco, deste concerto no Largo São Carlos. Acho que as coisas vêm na altura em que estamos preparados para as receber.

E tem também um projeto no Museu do Fado.
Sim, tenho há um ano um grupo que se fidelizou e que se tornou na comunidade ‘Fado para Todos’, no Museu do Fado, que tem três temporadas bimestrais: fevereiro/março, maio/junho e outubro/novembro. É feito à semelhança de uma comunidade de leitores mas com fado. Ouvimos fados, discutem-se gostos – que é uma coisa raríssima, mas que é possível -, educa-se a audição. Além de se discutirem temas, eu também invento uns jogos, com muitas expressões artísticas, sobretudo com os poemas, as palavras – muitos jogos de palavras, que contribuem para aprofundar a relação com o fado.

Tem esses projetos, diversos, mas há uma constante na sua vida profissional: o Sr. Vinho.
Sim, há 22 anos. Canto de terça a sábado, no Sr. Vinho [casa de fados situada na zona da Lapa, em Lisboa]. Só não estou quando estou em concertos ou a fazer outras coisas. Eu tenho uma relação com o senhor vinho que é um amor de uma vida inteira. Nunca me imaginei, pela minha natureza um pouco selvage, que poderia conseguir encontrar um espaço onde ficaria a cumprir uma rotina com tanto gosto e com tão bons resultados. É ali que eu cresço artisticamente, é naquela rotina que me aperfeiçoo. É a minha oficina, o meu espaço sagrado, o mais sagrado de todos antes de todos. Nunca um concerto seja onde for será mais importante que uma noite no senhor vinho para mim.

Fotografia: Isabel Pinto