“Esta exposição é um pretexto para pensar a modernidade”

Mariana Pinto dos Santos trabalha há vários anos a história dos modernismos em Portugal e no estrangeiro e é editora da obra literária de Almada de Negreiros, desde 2000. Por isso, a Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, convidou-a para ser a curadora de uma exposição antológica sobre o artista. “José de Almada Negreiros: uma maneira de ser moderno” inaugura amanhã na fundação e mostra várias facetas de um artista profuso e diversificado, um dos nomes maiores do movimento modernista e da arte em Portugal. A historiadora de arte e investigadora, de 41 anos, falou ao Delas.pt sobre a dimensão do artista e do homem, refletida nesta mostra que reúne cerca de 400 obras, entre as quais várias inéditas, e que está patente até dia 5 de junho.

Que obras de Almada Negreiros podemos encontrar nesta exposição?

É uma seleção variada, que tem desde desenhos a pintura, passando por painéis e padrões de azulejos, estudos para vitrais e um vitral, mesmo. Existe também um local pensado para projetar obras que estão em espaços públicos e privados da cidade de Lisboa, que foram fotografados e cujas imagens podemos projetar. Nomeadamente, do ‘Diário de Notícias’ [na Avenida da Liberdade]. Foi feito todo o levantamento fotográfico dos frescos que ele fez para o ‘Diário de Notícias’ e temos dois estudos desses trabalhos para o DN.

E que facetas do artista revela esta mostra?
Entre as obras inéditas destaco uma, particularmente importante, que é uma lanterna mágica composta por 64 desenhos de grandes dimensões e que serão mostradas, tentando chegar a uma proximidade da forma como o próprio Almada os apresentava. Era um divertimento de um arraial de verão e ele apresentava-os em papel de seda – um papel fininho –, esticava-os com duas barras de madeira que segurava e simulava a iluminação do ecrã de cinema com um candeeiro por trás, fazendo suceder os vários desenhos para contar uma história. Essa história é um filme fingindo, porque ele desenha estratégias e dispositivos do cinema mudo. E essa é uma obra que é uma faceta do Almada que não é nada conhecida. Há uma outra lanterna mágica também em exposição, que foi exposta em Portugal apenas uma vez e que é muito pouco vista. É uma obra feita em Madrid e realizada num trabalho de colaboração com outros artistas: um músico espanhol, Salvador Bacarisse e o poeta Manuel Abril. E é uma obra que se cria nessas componentes todas. A parte lírica desapareceu, mas temos música e temos os quadros do Almada. Além dos originais estarem expostos, no dia 23 de março a orquestra da Gulbenkian vai interpretar esta música do Salvador Bacarisse, com a projeção dos desenhos, tal como foi apresentada em 1929. A música será depois gravada e integrada na exposição.

Esta mostra não se circunscreve ao espaço expositivo da Gulbenkian. A iniciativa abarca também conferências e visitas a obras de Almada Negreiros, na cidade, como os painéis das Gares Marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos.
Há algumas coisas que são fora daqui. Temos um ciclo de mesas redondas, com vários investigadores que vão discutir mais do que o trabalho do Almada. Aliás, esta exposição também é um pretexto para pensar a modernidade, os modernismos, como é que eles ocorreram em países ditos periféricos, porque é preciso chamá-los ao discurso da Historiografia da Arte. Esta discussão está em curso e vai estar em debate nessas mesas redondas. Uma delas vai ser na Casa Fernando Pessoa e vai ser especificamente sobre o Almada. Vai-se discutir os manifestos do Almada Negreiros. Ele foi o artista que produziu os únicos manifestos artísticos em Portugal. Há mais dois mas são mais de caráter literário. E vamos discuti-los na semana em que se cumprem 100 anos sobre a conferência futurista do Almada e do Santa-Rita Pintor e onde leu um desses manifestos.

Lisboa , 27/01/2017 - Mariana Pinto dos Santos, curadora da exposição de José de Almada Negreiros - Uma Maneira de Ser Moderno, que irá estar no museu da Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa. Mariana Pinto dos Santos (Gerardo Santos / Global Imagens)
Mariana Pinto dos Santos, curadora da exposição, em frente a uma reprodução dos painéis de Almada Negreiros, a Fundação Calouste Gulbenkian. (Fotografia: Gerardo Santos / Global Imagens)

Estão previstas também iniciativas na Cinemateca, mais ligadas à relação dele com o cinema. Fale-nos um pouco dessa parte.
Sim, depois há o ciclo de cinema que vai ser já mais para o final da exposição e onde vão ser mostrados não só filmes que sabemos que o Almada viu ou eram importantes para ele, mas também filmes sobre ele: os documentários que existem, a entrevista na RTP ao programa Zip-Zip, alguns filmes feitos a partir dele. E o ciclo culmina com a apresentação do multimédia de Ernesto de Sousa, que também é apresentado na Gulbenkian, a 3 de março.

E depois há ainda as visitas a alguns pontos da cidade de Lisboa onde existem obras de Almada Negreiros. Como se vão processar essas visitas?
Nas gares marítimas vai haver um conjunto de quatro visitas – cerca de uma por mês – durante a exposição. São sítios que são visitáveis mas não com muita facilidade e então temos este acordo com o porto de Lisboa e organizámos estas visitas, para poder levar lá, no âmbito da exposição, vários visitantes.

A exposição propriamente dita ocupa dois pisos da Gulbenkian. Como é que ela está organizada?
A exposição está organizada em oito núcleos temáticos que são propositadamente desarrumados cronologicamente e que são uma sugestão de agrupamento e fruição da exposição sem pretender conter ou arrumar a obra deste artista em “gavetas” de classificações. Nem pretende separar géneros. Não temos pintura separada de desenho nem de azulejo, nem o vitral separado de outras formas de produção artística. Era uma coisa que já estava um bocadinho nas grandes exposições do Almada que se realizaram há bastante tempo – em 1984 e 1993 – havia essa tendência para uma certa compartimentação: desenho, obra gráfica, obra pública, a dança…E aqui estão mais misturadas, porque a verdade é que ele fez isso tudo. Por um lado, fez várias coisas ao mesmo tempo. Por outro, coisas que foram tidos como só momentos da vida dele, na verdade foram mais vastas. Foram temas que persistiram. Por exemplo, o tema dos saltimbancos é um tema constante que ele aplica tanto na escrita como a outras linguagens artísticas.

Além dos saltimbancos quais são os outros temas em foco na exposição?
Há outro tema que se chama “Relações recíprocas”, que pretende mostrar que nenhum artista trabalha sozinho e que toda a obra é feita de troca, comunicação e apropriação de coisas que o Almada torna suas e recria, fazendo aí uma coisa que já é diferente. E a colaboração entre artistas era uma ideia que lhe era cara: desde a revista ‘Orfeu’, aos bailados, a essa lanterna mágica que falei, até ao trabalho de colaboração com o arquiteto Porfírio Pardal Monteiro, numa pretensão de arte total. É isso que está em causa nas tentativas de fazer os bailados à semelhança do que faziam os Ballet Russes, em Paris, que iam buscar o Picasso para fazer figurinos, o Eric Satié para a música. Quanto aos outros núcleos, temos um chamado “Ver”, que reflete os seus estudos sobre a geometria que existe nas composições pictóricas desde a antiguidade até ao presente. Depois há um núcleo de auto-retratos, um núcleo de estudos e trabalhos ligados à representação do corpo, do movimento, do rosto, um outro que se chama ‘Performare’, que tem a ver com o lado performativo do Almada, o ‘Espaço público/espaço privado’, que tem a ver com as obras que fez de encomenda para esses espaços e que junta obras que normalmente não seriam vistas em conjunto, como os quadros que fez para o Bristol Club, para A Brasileira ou para a Alfaiataria Cunha estão ao lado de estudos para vitrais, desenhos de azulejos. Encomendas antes e depois do Estado Novo e cujo contraste está aí refletido.

 Mariana Pinto dos Santos, além de historiadora de arte é a editora da obra literária de Almada Negreiros (Gerardo Santos / Global Imagens)

Mariana Pinto dos Santos, além de historiadora de arte é a editora da obra literária de Almada Negreiros (Gerardo Santos / Global Imagens)

Falando em público e privado, de onde vieram as peças para esta exposição?
Parte deste acervo está na Fundação Gulbenkian, que tem um coleção grande de obras do Almada Negreiros e também um depósito com obras suas. Portanto, há uma parte que vem daqui, mas houve também uma investigação grande que permitiu localizar outras obras, algumas já conhecidas mas que já não se viam há muito tempo e outras que são inéditas, de coleções particulares, e que vão ser mostradas pela primeira vez aqui.

E são todas provenientes de Portugal?
Há uma que vem do estrangeiro, do Brasil. Saiu do país em 1975 e que nunca foi exposta cá.

Quando surgiu a ideia de fazer esta exposição e quanto tempo demorou a concretizá-la?
O convite surge no final de 2013, por parte da Isabel Carlos [diretora do Centro de Arte Moderna, à época] e creio que veio de uma vontade da Fundação Gulbenkian, tendo tantas obras do Almada no seu acervo, fazer uma exposição antológica deste artista. O trabalho em concreto para a exposição começa a partir daí, no início de 2014.

E o seu interesse pela obra do Almada Negreiros surge porquê?
Primeiro começo pela obra literária do Almada. Na verdade, eu estudei em mestrado, o Ernesto de Sousa – de quem também vamos mostrar aqui trabalho – mas sempre numa perspetiva de que eles sirvam para pensar o seu tempo e para estabelecer relações. E esta mostra sobre o Almada também permite pensar outras coisas: conceitos de modernismo e de modernidade, relações entre artistas, produção em regimes ditatoriais e antes dos regimes ditatoriais, etc. E no Ernesto de Sousa também aconteceu isso e, às tantas, uma das coisas que ele faz é ter esta relação com o Almada Negreiros e essa relação interessou-me imenso. Do ponto de vista plástico e performativo o meu interesse e estudo pelo Almada surge por via do Ernesto de Sousa.

Apesar de se integrar num movimento, contaminar e deixar-se contaminar por outros artistas, o que é que Almada Negreiros trouxe de novo à arte?

A forma como cada artista se expressa é sempre única. Temos uma série de obras em registo diferentes que são únicas. Por exemplo, os caligramas que fez, que são suis generis e fora de tudo o que se fez nessa altura nesse registo. São trabalhos que faz num registo muito pessoal, que ele envia por carta a uma amiga. Ele não fez aquilo a pensar em expor ou publicar. Fez num registo quotidiano. E esse lado, é um dos mais interessantes de destacar no Almada, a ideia da arte estar sempre a acontecer, sempre no quotidiano. Outro aspeto é ele estar constantemente a desenhar e a oferecer desenhos. Era uma necessidade e acho particularmente curioso destacar no Almada.

E como era o homem para lá do artista?
Há o lado da palavra. Era alguém que quando estava em público e falava tinha sempre um lado teatral, como se estivesse sempre num palco, o que me parece, mais uma vez, que essa mistura entre arte e vida está sempre presente. Também me parece importante destacar a atenção que ele tinha em relação aos artistas mais novos. Nos anos 50, ele está sentado n’A Brasileira, com o Mário Cesariny e o Eugénio de Andrade que eram jovens poetas, então. E está constantemente com eles para saber o que estão a fazer e era até mal visto porque eram artistas homossexuais. E ele não se importava nada com isso. É o primeiro a comprar um quadro ao Júlio Pomar, ainda na escola António Arroio, deveria ter 18 anos. Compra um desenho ao Querubim Lapa para o estimular. A Maria do Céu Guerra tem histórias de como ele falava e de como toda a gente ficava um pouco inebriada.


Na nossa fotogaleria pode ver algumas imagens da exposição e consulte aqui a programação completa da exposição


Imagem de destaque: Paulo Spranger/Global Imagens