America Ferrera: “Disseram-me que não havia nada que não pudesse fazer. E eu acreditei”

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Mulheres latinas, de pele dourada e peso a mais, cabelos em desalinho e celulite. As estrelas do filme Real Women Have Curves não são as típicas beldades de Hollywood, e a história debruça-se sobre uma comunidade latina que raramente é o centro da narrativa. Esta foi a película que lançou America Ferrera, que o público conhece como Betty Feia, quando era ainda adolescente. Passaram-se 15 anos desde a sua estreia no cinema, mas o progresso que se esperava então não aconteceu.

Ingrid Oliu, Ivette Rodriguez, Patricia Cardoso, America Ferrera, Lourdes Portillo, Josefina Lopez, Marilyn Atlas, Soledad St. Hilaire and Effie Brown. [Fotografia: Paul Hebert / ©A.M.P.A.S.]

“Mesmo na altura, sabendo naquele momento que era muito especial e o meu sonho estava a tornar-se realidade, não percebi da forma que percebo hoje como este filme foi uma anomalia”, disse America Ferrera, num encontro intimista da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

Ali, no Samuel Goldwyn Theater, com uma figura gigante do Óscar a ornamentar as escadarias, discutiu-se a forma como as mulheres ainda são olhadas como acessórios pela indústria.

[Fotografia: Paul Hebert / ©A.M.P.A.S.]

Eu tinha vergonha do meu corpo”, confessou Josefina López, autora da peça que deu origem ao filme. Na história, que segue a vida familiar da adolescente Ana, há um momento em que as trabalhadoras de uma fábrica de vestidos se despem todas até ficarem só de soutien e cuecas. Nenhuma tem um corpo que corresponda aos padrões de Hollywood, e talvez por isso mesmo o momento é absolutamente libertador.

Uma luta que começou em casa

“As outras atrizes disseram que foi assustador, imaginem como me senti eu aos 17 anos”, desabafou America Ferrera, que na altura era mais pesada. “Lembro-me de entrar tapada com um roupão e ter de me despir em frente a uma equipa maioritariamente masculina.” A mãe não queria que ela fizesse o filme por causa desta cena. America fincou o pé. “Quem é que escreve filmes para miúdas como eu?” perguntou-lhe. “É claro que vou fazer isto.”


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America cresceu com os cinco irmãos e a mãe solteira, em Los Angeles, numa casa que não tinha água quente ou eletricidade às vezes meses a fio. “A minha própria família, os meus amigos e professores, as pessoas diziam-se que ser atriz seria muito improvável”, lembra. Mas a jovem tinha crescido a absorver o sonho americano. “Disseram-me que não havia nada que não pudesse fazer. E eu acreditei.

A televisão como motor lento da mudança

Não havia muitas oportunidades para atrizes latinas como protagonistas então, e hoje está quase tudo na mesma. O que começou a mudar foi a televisão. Betty Feia, que chegou ao fim em 2010, foi uma pedrada no charco. Hoje há várias séries que giram em torno de minoriasBlack-ish, Fresh Off the Boat, Jane the Virgin, até Uma Família Muito Moderna. Para America Ferrera, o que este filme fez foi definir aquilo que queria da sua carreira: ter um impacto positivo no mundo, para lá dos seus sonhos.

“Fez-me perceber que podia ter uma carreira que significasse mais que as minhas aspirações pessoais”, disse. “É tão doloroso pensar em quão pouco aconteceu para as mulheres latinas no cinema. Mas o que me mantém focada é saber que se não escancararmos as portas que podemos escancarar, não faremos justiça às pessoas que vieram antes de nós.”

“Há algo de errado com a sociedade, não comigo”

America falou também de Lupe Ontiveros, atriz latino-americana nascida no Texas que morreu em 2012 e entrou no filme como sua mãe, Carmen. “Abriu-me os olhos. Vi como as pessoas com enorme talento podem por vezes passar as suas carreiras inteiras sem nunca terem uma oportunidade real de expressarem a totalidade do seu talento.” Foi mais ou menos isso que aconteceu com a autora Josefina López, que não conseguiu vingar como atriz porque não correspondia ao “tipo” físico de Hollywood. “Mandei-os lixarem-se”, disse, recebendo grandes aplausos. “Há algo de errado com a sociedade, não comigo.

A gravidade do momento não foi perdida pela anfitriã da noite, a publicista Ivette Rodriguez: “É triste que tenham passado 15 anos”, declarou, sem que tivesse sido dada a devida continuidade a este filme pioneiro. “Tivemos dez dias com uma avalanche de histórias a cair de Hollywood sobre a forma como as mulheres são tratadas, o que é absolutamente deplorável.”

Patricia Cardoso [Fotografia: Paul Hebert / ©A.M.P.A.S.]

Rodriguez falava da tempestade que se abateu sobre a indústria por causa do produtor Harvey Weinstein, que foi denunciado pelo New York Times por causa do seu longo historial de assédio e agressão sexual na indústria.

“Sei que as mulheres neste palco, juntas, podem fazer a diferença e podemos mudar alguma coisa em Hollywood”, declarou Rodriguez. “Precisamos de mais filmes como este.”

Real Women Have Curves foi o primeiro filme realizado por uma mulher latina, Patricia Cardoso, que teve sucesso comercial nos Estados Unidos. No entanto, a realizadora praticamente não conseguiu fazer mais nada desde então. “Foi o início da indústria de longas metragens latinas”, disse a apresentadora da Academia, Lourdes Portillo. “Somos pacientes e também muito persistentes”, ressalvou. “Não vamos desistir.”

Ana Rita Guerra

Imagem de destaque: Paul Hebert / ©A.M.P.A.S.