10 perguntas a Zélia Duncan e Simone a menos de 24 horas do concerto

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Estivemos à conversa com duas das vozes grandes da música brasileira, em Portugal para cantar Amigo é casa, um espetáculo sobre a amizade que irá recordar algumas das canções do álbum e também apresentar um novo repertório, com base nos trabalhos a solo de cada uma.

Cantam juntas como quem fala da vida. Sai-lhe com naturalidade. Entre Zélia Duncan e Simone, a cumplicidade é quase palpável e o tom, mais acima ou mais abaixo, é sempre o certo. Numa hora, a conversa percorreu os caminhos da amizade, da carreira, da tecnologia e da descriminação no Brasil. Aqui, o tom subiu e ficou mais intenso. Como elas.

Hoje, 4 de outubro, Zélia Duncan e Simone sobem ao palco do Salão Preto e Prata do Casino Estoril. A 6, atuam na Casa da Música, no Porto, e no dia 7 estão no Coliseu dos Recreios, em Lisboa.

Zélia Duncan (à esquerda) e Simone (à direita) durante a entrevista ao Delas.pt no Hotel Estoril Palácio (fotografia: João Viegas Guerreiro)

A vossa parceria musical nasce em 2005. Já lá vão 12 anos de amizade. O que mais admiram uma na outra?

Simone: O posicionamento dela perante a vida, a dignidade, honra, caráter. Se assim não fosse, para quê chegar perto? Todos os dias temos de limpar os lixos que o mundo nos traz, é um trabalho constante, por isso temos de ter junto de nós pessoas que também tenham aquela vassourinha especial para limparmos juntos.

Zélia: A Simone, antes de mais, foi e é uma grande inspiração para mim. A aparição da Simone abalou os alicerces da música brasileira e os meus, de jovem cantora, lá em Brasília, que sonhava em viver da música. Você quer quando você vê. E a Simone é uma visão muito luminosa e poderosa no sentido mais bonito dessa palavra. Imagina o que foi para mim, aspirante a cantora, ter a Simone como um ídolo e poder cantar do lado dela. Foi não só um privilégio mas a confirmação de um caminho. Foi a vida dizendo: ‘sim, vai nessa.’ Na Simone, eu só encontro generosidade, amizade e confiança que é a coisa mais importante, inclusive para partilhar o palco.

Como assim?

Zélia: O palco é um lugar perigoso, entre aspas, mas é esse perigo que nós queremos porque é nele que mora o mistério. A música sem mistério não me interessa. E quando você está no palco com um amigo, você pode tudo: pode-se atirar que a qualquer momento uma asa vai nascer. É um privilégio, sempre.

Eventualmente haverá pontos em que diferem. Não somos todos iguais. Quais as vossas grandes diferenças que vos tornam mais completas, mais fortes juntas?

Simone: É o tom musical (risos). Zélia sempre está um tom acima do que eu gostaria de cantar.

Zélia: Não, a Simone é que está sempre um tom abaixo do que realmente pode. A Simone tem um timbre de voz que conforta, que traduz o Brasil. A voz dela é terra, é céu, tem uma consistência linda. Nós procuramos sempre o tom em que as nossas vozes melhor se vão revelar. É o mesmo tom para as duas, por isso tem de haver uma negociação, em que uma puxa pelo melhor da outra.

A minha voz e a dela, juntas, dá uma terceira.

Se estivessem a começar hoje a vossa carreira, sabendo o que já sabem, em que apostariam?

Zélia: Acho que apostaria na mesma coisa. As pessoas procuram fórmulas para tudo, procuram atalhos; detesto isso. Você tem de escolher o caminho, a chegada é o que menos interessa. O que é importante é como vais caminhar, como escolhes crescer… Se houvesse uma fórmula seria essa: fazer o que você acredita e apostar no desconhecido como a única maneira de você crescer.

Simone: Eu errei muito e erraria tudo de novo. Tudo o que fiz, fiz com todo o amor que eu poderia dar naquele momento. Eu não tenho medo. E além do mais: o que é que sei hoje? Eu não sei nada…

Zélia Duncan aos 53 anos afirma que a internet separa as pessoas (fotografia: João Viegas Guerreiro)

Amigo é casa é nome da vossa digressão e do álbum que lançaram em 2008; tem a ver com os alicerces de uma amizade sólida. É mais difícil construi-la nos dias que correm e com a vida que temos?

Zélia: Vou fazer 53 anos este mês e quero acreditar que a essência do ser humano está toda ali, que ser amigo hoje é como ser amigo quando eu era jovenzinha. Sofro de uma certa nostalgia, de um certo saudosismo em relação a algumas coisas que têm a ver com outro tipo de relacionar. Eu tenho uma sobrinha adorável de 25 anos que é uma amiga linda para os amigos. Quando a vejo movimentar-se, acho-a muito melhor do que eu, em tudo. Mais do que nunca precisamos do que é humano, justamente porque a tecnologia parece que está tão à nossa frente…

A Internet separa?

A Internet parece que separa, mas eu não sei se separa. Às vezes falamos dos casais que estão nos restaurantes, cada um com o seu telemóvel, mas se não o tivessem, talvez ele estivesse a olhar para o teto e ela para o chão. Temos de aprender a nos relacionar e é essa a questão.

É como na carreira. Posso ter um ótimo site, mas eu preciso fazer com que o visitem. Ou seja, o problema que existe hoje, já existia nos anos 70 ou 80: ‘dá para você me ouvir’? ‘Dá para você me ver?’ Acho que os desafios são parecidos.

“A tecnologia às vezes leva-te para um canto muito chato”, diz Simone (fotografia: João Viegas Guerreiro)

Concorda, Simone?

Eu sou antiga, gosto de falar, de ouvir a voz. Acho que a tecnologia, de uma certa maneira, separa as pessoas. Eu gosto de pegar, de ver, quando eu sinto saudades eu reclamo. A tecnologia, às vezes, leva-te para um canto muito chato.

Vamos agora recuar ao Brasil de 1929 e lembrar a música Malandro, do Francisco Alves, que diz assim: “Se ele te bate/ É porque gosta de ti”. Este tipo de letra já não se ouve, mas ela acontece.

Zélia: O que significa uma hipocrisia terrível, porque acontece a toda a hora. No Brasil, a mulher continua apanhando. Muito. De 11 em 11 minutos, uma mulher é agredida ou estuprada. Agora é um pouco mais falado, mas ainda assim acontece muito mais do que se fala ou se denuncia. No outro dia, no Rio, um homem ejaculou em cima de uma mulher dentro do autocarro. Ele foi preso e solto, porque pagou a fiança. Quatro dias depois, fez a mesma coisa.

No Brasil, estamos a viver um momento tão sombrio que se fazem manifestações na rua para se fechar uma exposição de arte. Mas quando uma mulher é agredida, não há a mesma indignação.

Simone: A música brasileira da década de 30 e 40 depreciava as mulheres. Acho que tudo isto tem muito a ver com a falta de cultura, a falta de base. No Rio de Janeiro, as meninas de 12, 13 anos são mães. Elas pertencem ao homem. Ficou normal. E não é normal.

Enquanto artistas mulheres, no Brasil, alguma vez sentiram descriminação de género?

Simone: Muita. A primeira pessoa que enfrentei, além da vida, foi o meu pai. Eu tinha 9 irmãos. Os homens podiam fazer tudo, sair, ir ao cinema, tudo. Lembro-me que a primeira grande briga que tive com o meu pai foi porque eu queria ir ao cinema ver o filme Dr. Jivago, que começava às 19h e terminava às 21h30. Mas eu, tal como as minhas irmãs, não tínhamos liberdade para sair. O que é que aconteceu: as minhas irmãs casaram para sair das garras do meu pai e eu enfrentei-o. À medida que as batalhas deixaram de ser tão ‘sangrentas’, ele tornou-se no meu melhor amigo, no meu confessor. A partir do momento em que enfrentei o meu pai, em nenhuma situação da minha vida eu entrei de cabeça baixa.

Zélia: Este ano no Brasil houve uma polémica sobre as marchas de carnaval: homofóbicas, machistas, racistas, misóginas. Eu tenho um colega, que eu adoro, que me disse: ‘agora não se pode cantar mais nada, que vocês criticam’. Não, ninguém perdeu o humor. Acontece que não tem mais graça. Não tem graça dizer: ‘O teu cabelo não nega, mulata/ Porque és mulata na cor… Mas como a cor não pega, mulata/ Mulata eu quero o teu amor’. Nós somos brasileiros criativos, então vamos fazer música nova com piadas sobre os políticos corruptos ou sobre como nós votamos mal.

Imaginem que podem chamar uma terceira mulher da música portuguesa para subir ao palco convosco. Qual o primeiro nome que vos vem à cabeça?

Simone: Primeiro eu peço a bênção à Amália, que ela jogue sobre nós o seu manto. Eu conheço alguns cantores: a Cátia Guerreiro, que eu adoro, a Mariza, a Carminho.

Zélia: Ouvi um menino, chama-se Salvador, a cantar uma música brasileira, Nem Eu, do Dorival Caymmi, e achei muito musical, muito envolvido com o que estava cantar. Fiquei emocionada!

Texto Petra Alves / Fotografia João Viegas Guerreiro