Amnistia pede”reformas” na justiça para vítimas de violência sexual. Governo admite “falhas”

A Amnistia Internacional manifesta preocupação com a mensagem passada pela justiça portuguesa às mulheres vítimas de violência sexual e pede “reformas” ao governo. A posição da secção portuguesa daquela organização internacional é tomada na sequência do recente acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que determinou quatro anos de pena suspensa a dois homens condenados por abuso sexual a mulher inconsciente, numa discoteca de Vila Nova de Gaia, em 2016.

Num comunicado enviado esta quarta-feira, 3 de outubro, às redações, o organismo refere que o referido acórdão contém estereótipos de género e que transmite uma “mensagem prejudicial às vitimas de violência sexual” e de género sobre o acesso à justiça, em Portugal, pedindo urgência no debate sobre a prevenção e combate a todas as formas de violência contra as mulheres e raparigas na sociedade portuguesa.

“Os argumentos utilizados no referido acórdão suscitam enorme preocupação, transmitindo uma mensagem prejudicial às vitimas de violência sexual de género em Portugal sobre o acesso à justiça, colocando o seu comportamento no banco dos réus, em vez das ações dos perpetradores. Consequentemente, não é menos relevante a mensagem que, a contrario, é transmitida aos responsáveis por atos de violência e o perigo para a prevenção e combate da violência sexual de género em Portugal”, diz o comunicado.

A Amnistia exorta o “Governo Português, bem como os demais órgãos de soberania” a ouvir as vozes da discussão que ocorre no contexto nacional” e a adotar “as reformas, melhorias e todas as ações necessárias para que sejam garantidos os direitos das vítimas, em particular no acesso à justiça, e a efetiva prevenção e combate à violência sexual e de género, em cumprimento das obrigações internacionais a que Portugal está adstrito”.

A secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro, reconhece que “há falhas” na formação dos profissionais que lidam com as vítimas de violência sexual e doméstica, incluindo magistrados e juízes, mas sublinha que estão a ser trabalhadas respostas nesse sentido.

“Não vamos ignorar que existem falhas”, referiu aos jornalistas, à margem da conferência de imprensa de apresentação da ‘Women Building Inclusive Societies in the Mediterranean’, a conferência internacional promovida pela União para o Mediterrâneo, que se realiza, pela primeira vez em Portugal, a 10 e 11 de outubro, na Fundação Champalimaud, em Lisboa.

“Na sequência da análise e trabalho feito pela Equipa de Análise Retrospetiva [de Homicídio em Violência Doméstica] no identificar destas falhas, nós fizemos um protocolo com a Direção Geral da Administração da Justiça e a Procuradoria-Geral da República para formar e capacitar os oficiais de justiça de todo o país, que estão na primeira linha de atendimento a uma vítima que se dirija ao tribunal”.

Sobre ações concretas de formação previstas para juízes e magistrados, conforme previsto no plano de ação para a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica da Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação 2018-2030 “Portugal +Igual”, e anunciado pela ministra da Presidência, Maria Manuel Leitão Marques, em janeiro deste ano, Rosa Monteiro afirmou que “o processo de formação está a ser organizado em parceria com vários organismos públicos”.

A CIG, PSP, GNR, PGR, Secretaria Geral do MAI, e Direção-Geral da Administração da Justiça são alguns dos organismos envolvidos.

“Em relação à formação para magistrados e juízes, nestas áreas da violência contra as mulheres, temos vindo a trabalhar de forma articulada. Existe um protocolo e no próprio plano de formação do CEJ esta formação nas áreas da violência contra as mulheres e violência de género está prevista em várias formações.”

No entanto, a obrigatoriedade da formação para juízes e magistrados “depende da orientação dada pelo CEJ (ao nível da formação inicial de auditores/as de justiça) e do Conselho Superior da Magistratura e da Procuradoria Geral da República, nos casos da formação contínua, respetivamente, de Juízes/as ou Procuradores/as Gerais”, explicou a Secretaria de Estado, ao Delas.pt, numa resposta escrita.

Sobre se decisões como as do último acórdão, a que se somam outros entretanto contestados, podem demover as vítimas de fazer queixa e confiar na Justiça, Rosa Monteiro considera que “a vítima tem de ter a garantia e confiança no sistema”.

“Estamos confiantes de ter um conjunto de respostas de apoio às pessoas que são vítimas, especialmente às mulheres. O investimento público e a qualidade daquilo que oferecemos em termos de resposta de apoio às mulheres tem vindo a crescer. E há um apelo que tem de ser sistemático, no sentido das situações de violência terem de ser objeto de queixa e de denúncia, simultaneamente com a garantia que protegemos as mulheres após essas queixas”, acrescenta a secretária de Estado.

Por outro lado, sustenta que “é demagógico dizer-se que o problema nasceu hoje, assim como é demagógico dizer-se que o problema se vai resolver amanhã de forma automática. Não há nenhum mecanismo, infelizmente, nestas questões – que são questões de transformação cultural profunda e que tem de ser transversal não só à Justiça, tem de ser a todos os nossos sistemas sociais”, conclui.

 

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