Ana Cloe: “Pôr bonecos a falar sobre estas temáticas é surpreendente”

A atriz Ana Cloe ficou conhecida do grande público em 2006, quando entrou na telenovela Floribella, da SIC, para dar vida a Xana, um dos elementos da banda da protagonista. Depois desse projeto regressou à casa mãe: o teatro. E é aí que tem permanecido.

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Atualmente está no musical Avenida Q, de quinta-feira a domingo no Casino de Lisboa, onde dá vida a uma das protagonistas, a Marta Monstro. Apesar da experiência que já trazia de manipulação de bonecos, locução e dobragem – que faz para videojogos e séries de animação –, não esconde que este espetáculo tem sido um grande desafio.

Na sua opinião, pôr bonecos a abordar temas como o racismo, o desemprego, a homossexualidade e a discriminação é surpreendente.

Como começou a sua aventura na representação?

Ui, isso já foi há muito tempo, ainda no secundário. Não estava num curso artístico, estava no curso científico natural e pensava ser veterinária ou qualquer outra coisa relacionada com animais. Já tinha tido algumas brincadeiras no teatro, mas nessa altura tive aulas de teatro com o Rogério de Carvalho, que é um mestre da área. Com as aulas dele acabei por ter conhecimento da Escola Superior de Teatro e Cinema e percebi que era o que fazia mais sentido.

Os seus pais reagiram bem?

Claro que mostraram alguma preocupação, mas tive sorte porque apoiaram a minha escolha apesar de terem o coraçãozinho apertado.

Houve algum momento da sua vida em que se tenha arrependido?

Não, nunca. Houve momentos difíceis, obviamente, em que havia menos trabalho ou ouvia “nãos”, que estão sempre garantidos na nossa área. Fazemos imensos castings e audições, todas as negas são duras, mas nunca pus a minha escolha em causa porque percebi que só assim é que faz sentido. Aquilo que melhor me define é o facto de ser atriz.

Tornou-se conhecida do grande público em 2016 com a participação na telenovela Floribella, da SIC, mas sempre trabalhou mais em teatro do que em televisão. Foi uma escolha ou em TV existem menos oportunidades?

Na verdade já trabalhava mais em teatro. O regresso ao palco não foi bem um regresso, foi uma continuação. O maior desvio foi mesmo ir para a televisão. Foi uma experiência muito gira, aprendi imenso e é uma coisa que gosto de fazer. Mais tarde tive a oportunidade de fazer a Maternidade [RTP1] e algumas curtas-metragens, mas o teatro está sempre lá. Sou uma atriz freelancer, trabalho nos projetos que vão surgindo e o teatro é o que tem estado sempre lá.

A PlayStation lançou recentemente um jogo com duas protagonistas femininas, o ‘Uncharted: O Legado Perdido’, e a Ana dá voz a uma delas. Como foi essa experiência?

No ‘Uncharted 3’ já tinha dado voz à Cloe, que nesse jogo não tinha tanto destaque. Agora neste novo jogo ela ganhou destaque, é a protagonista, e foi uma bela surpresa poder dar esta continuidade à Cloe, que por coincidência tem o meu nome. É muito giro, trabalho muito em dobragens de desenhos animados e imagem real. Quando é para jogos de computador é sempre uma experiência muito gira e esta personagem é muito engraçada porque é forte, cheia de garra e atitude.

Agora está em cena com o Avenida Q, que tem sido um verdadeiro fenómeno do teatro em Portugal. No início já esperava que este espetáculo conquistasse os portugueses?

A história do Avenida Q já vem de trás, o núcleo duro teve esta ideia há oito anos, mas na altura não foi possível pôr o espetáculo de pé porque é uma megaprodução. De repente, o Gonçalo Castel-Branco [produtor do musical] juntou-se ao Rui Melo [encenador] e ao Henrique Dias [tradução e adaptação das canções] e começaram a viajar na maionese. O Gonçalo teve a ideia genial de fazer o showcase no qual ensaiávamos 20 minutos do espetáculo. Todos estavam a investir tempo sem qualquer garantia de retorno, mas todos tínhamos noção de que este era um projeto muito especial. O Gonçalo foi um ótimo estratega, conseguiu chamar as pessoas que poderiam querer investir. Depois entrou no projeto a Sandra Faria, que é uma produtora incrível, além de ser uma mulher extraordinária, e assim fomos parar ao Teatro da Trindade e agora estamos aqui no Casino de Lisboa.

O que tem o Avenida Q de tão especial para trazer tantas pessoas ao teatro?

É uma conjugação de várias coisas. O espetáculo já era genial nos EUA, o texto é ótimo, muito pertinente e esta coisa de pôr bonecos a falar sobre estas temáticas é surpreendente e toca as pessoas. Felizmente conseguiram reunir uma equipa à altura aqui em Portugal. Isto não é uma tradução do espetáculo, é uma adaptação e o público reconhece isso imediatamente. Está muito bem adaptado à nossa realidade e reflete efetivamente a atualidade. O próprio Rui Melo, o encenador, fez opções muito inteligentes neste espetáculo. Nos EUA, por exemplo, o espetáculo tem dois protagonistas, ou seja, há dois atores que concentram as personagens principais. A atriz que manipula a Marta Monstro manipula também a Paula Porca e aqui o Rui optou por distribuir mais as personagens por todo o elenco. Resulta num trabalho de equipa fantástico em que todos têm oportunidade de brilhar, de ter o seu momento e sente-se que é um espaço muito equilibrado de partilha e de admiração uns pelos outros. Foram escolhas muito acertadas.

E isto tem mesmo de ser um trabalho de equipa porque há bonecos que são manuseados por mais do que uma pessoa.

Exatamente. O Rodrigo Saraiva e a Inês Aires Pereira, em particular, fazem uma dupla fantástica. Há esse desafio, tão depressa estamos com o protagonismo de um boneco como de repente temos de dar vida a um braço sem que o braço seja o destaque.

Alguns dos espetadores do Avenida Q nunca tinham vindo ao teatro antes deste espetáculo.

Por um lado há uma geração um pouco mais velha que se identifica muito com estes bonecos porque faziam parte do nosso imaginário na infância, de um ponto de vista super inocente e ingénuo, uma realidade cor-de-rosa. De repente vemo-los hoje, com uma vida equivalente à nossa em que se confrontam com a dureza da realidade. Crescer é duro, idealizámos que se estudássemos e tirássemos um curso superior íamos ter um canudo, trabalho e uma carreira com evolução e isso não é, de todo, a realidade hoje em dia. Atualmente o mercado de trabalho é outra coisa, as próprias pessoas mudaram, já não pensam em estabilidade. Pensam em desafios, projetos, realização e em sobreviver. É assim que procuram a felicidade, as utopias vão-se desmoronando mas percebemos que é possível encontrar felicidade na mesma e, em particular, uns com os outros. Isso é o mais importante, isto é um espetáculo de comunhão e é algo muito especial e bonito.

Mesmo no público nota-se uma grande variedade. Tanto há idosos como adolescentes.

Exatamente. Eu estava a dar aulas num curso profissional de artes do espetáculo em que os alunos têm entre 15 e 19 anos e eles próprios também se identificaram muito e ficam surpreendidos pela forma como os temas são tratados. Não é muito usual, muito menos neste contexto e desta forma. É claro que há um lado muito provocatório que chega de uma forma particular a estas idades.

Vêm pessoas de todo o lado ver o Avenida Q. De norte a sul do país e até do estrangeiro. Como lidam com este fenómeno?

Nem sei bem qual é a melhor palavra, é algo que nos faz sentir mesmo realizados. Tantas vezes o teatro tenta chegar às pessoas e não consegue. De repente temos um espetáculo em mãos que não só é divertido como consegue pôr as pessoas a pensar, deixa-nos super realizados com o trabalho que fazemos em palco e as pessoas reconhecem isso. É maravilhoso, é o que todos desejamos para a nossa carreira e para os projetos que fazemos. É raro, mas nós conseguimos isso. Sentimos que temos um presente maravilhoso nas mãos e queremos desfrutar e partilhá-lo ao máximo com o público.

Qual foi o maior desafio deste Avenida Q?

Foi tudo. Apesar de já ter experiência em manipulação de marionetas e bonecos, nomeadamente com companhias estrangeiras, a forma como manipulamos os bonecos neste espetáculo não é a mais tradicional, o manipulador não está escondido do público. Por acaso já tinha trabalhado com uma companhia francesa em que eles assumiam a presença do ator. Foi uma grande escola para mim, foi mesmo muito bom. De qualquer forma é sempre um desafio enorme. Nos outros trabalhos que tive as personagens não falavam muito. Aqui há uma grande dificuldade de articulação da fala com o boneco, o público tem de acreditar que o boneco está vivo e isso é um grande desafio, tecnicamente é mesmo muito difícil. A articulação da boca, em particular com o ritmo das canções, é muito exigente tecnicamente. As próprias canções, que são lindas, também não são assim tão fáceis, temos imensas harmonias. Tudo isto foram grandes desafios. A Marta Monstro, em particular, anda sempre numa correria de um lado para o outro. Saio de cena e tenho de entrar na porta da outra ponta na cena seguinte, mas tudo isto são questões técnicas inerentes ao espetáculo que é exigente.

Houve algum momento embaraçoso em palco?

Já tivemos alguns pequeninos, nada de muito grave. Eu em particular uma vez tive uma branca num verso de uma canção e ao ver que estava a fazer só sons, não conseguia dizer a frase, disfarcei com um espirro, que é algo que nunca acontece aos atores. Se estivermos doentes vamos para palco e há um fenómeno qualquer estranho em que o nosso organismo entra num estado de missão de palco e esquece-se do que está a acontecer. Nunca temos vontade de espirrar em cena. O espirro foi só esquisito porque os atores não espirram em cena, muito menos os bonecos, mas foi o que aconteceu, a Marta Monstro deu um espirro a meio de uma canção. A verdade é que ninguém percebeu, os meus próprios colegas ficaram intrigados com o espirro. Acabou por ser divertido, felizmente não foi nada de grave e consegui apanhar o resto da canção.

A Marta Monstro tem alguma coisa da Ana?

Tem algumas coisas, uma energia engraçada, é apaixonada a falar das coisas. Pode estar super calma, mas de repente entusiasma-se. Há qualquer coisa na energia dela com que me identifico um bocadinho. A voz não tem nada a ver.

É difícil manter esse registo durante um espetáculo de 1h30?

Por acaso pensei que fosse ser mais complicado, mas não. Como tenho também a experiência das dobragens e locuções, a plasticidade da voz é algo que já trabalho há bastante tempo. É um registo que não me é desconfortável, de todo.

O Rui Melo, encenador do Avenida Q, é também o companheiro da Ana. É a primeira vez que trabalham juntos?

Não, já aconteceu algumas vezes. Estamos habituados.

Têm um filho pequeno. É difícil ser mãe e atriz?

Às vezes é particularmente complicado por causa dos horários. Trabalhamos à noite e ele só tem colégio das 9h00 às 17h00. Os horários não são muito fáceis de conjugar, mas tudo se resolve e gostamos muito do que fazemos, portanto não são sacrifícios. As próprias crianças adaptam-se, está tudo a correr bem.

Que mensagem gostaria de deixar a quem ainda não veio ver o Avenida Q?

Não é por eu estar nele, mas este espetáculo é mesmo muito especial. Surpreende todos pela positiva, em particular pessoas que acham que não gostam de musicais. Acredito que depois do Avenida Q continuem a não gostar, mas isto não é um musical tradicional. Isto é diferente e as pessoas não se vão arrepender, de certeza absoluta. Não falo por mim, falo pela experiência que o público tem tido. É esta a opinião que as pessoas partilham, imensas pessoas vêm ter comigo para me dizer que não gostam de musicais e adoraram o espetáculo. É realmente muito diferente e, por isso, é de aproveitar. É raro aparecerem estas experiências, principalmente em Portugal. Não se pode perder.