Ana Cristina de Oliveira está de volta ao cinema português com ‘Carga’

carga2

Conhecemo-la nos idos anos 90, num anúncio internacional da Levi’s e no videoclip de ‘The Only Thing That Looks Good On Me Is You’, do cantor Bryan Adams. Depois vimo-la ao lado de Gisele Bündchen em ‘Táxi de Nova Iorque’, um ano antes de ter brilhado no filme português ‘Odete‘ (2005). No último ano, Ana Cristina de Oliveira tem marcado presença na ficção televisiva portuguesa, na série ‘Verão M’, da RTP, e na novela ‘Onde Está Elisa’, na TVI. No próximo dia 8 de novembro volta ao grande ecrã, com Sveta, uma das personagens do filme ‘Carga’.

A sua personagem, no filme, é uma mulher que faz parte de uma rede de tráfico de seres humanos, cúmplice do chefe do gangue, Viktor (Dmitry Bogomolov), mas cujo passado se adivinha feito de violência e abusos. “Não conheci ninguém que tivesse passado por essa miséria. Mas tem de se fazer sempre alguma pesquisa. Para já, é tentar imaginar o impossível, o horror”, refere em entrevista ao Delas.pt.

Nesta conversa, falou-se também dos tão falados abusos na indústria cinematográfica, com o caso Harvey Wenstein, e do movimento #Metoo, em relação ao qual a atriz mostra algumas reservas, das diferenças de trabalhar em Portugal e nos Estados Unidos e dos tipos de personagem que gosta de interpretar.

Está quase irreconhecível fisicamente nesta personagem. Sobretudo quando comparamos com as dos restantes atores, a sua parece ter obrigado a uma transformação maior. Foi isso que aconteceu?
O ‘Carga’ foi filmado vai fazer dois anos agora na próxima primavera e já tinha aceitado, meses antes, fazer o filme’. Só que entretanto tive um projeto antes de começar este filme que me deixou física e mentalmente de rastos [risos].E quando aceitei também tive um acidente, em que desloquei o cotovelo e tive de ser operada de urgência. Para além disso, durante a operação deixaram-me cair o bisturi na garganta, onde levei sete pontos. Então não só tenho gesso, porque fui operada duas vezes, e depois gesso, do cotovelo até quase à ponta dos dedos, no braço direito – e eu não sou canhota… Portanto, foi ter acabado de fazer um trabalho que me pôs de rastos, ter o acidente e ter depois esta obrigação de ter aceitado o ‘Carga’ e como estavam os dias programados para eu ir gravar para a Serra da Estrela, tive de ligar para a Joana [produtora] e dizer: “Não sei se vocês vão querer uma Sveta toda partida fisicamente e mentalmente”. E a Joana disse que se calhar isso era bom até para a personagem.

Portanto, aquele braço engessado que se vê não é caracterização?
Não! [risos] Além da medicação que estava a tomar, os antibióticos, os analgésicos. Foi tentar juntar o que já estava a acontecer mentalmente que não era normal, o estar fisicamente deficiente e incorporar isso, até mais ao extremo, com a Sveta. Ou seja, incorporar o que eu já estava a “sofrer”, depois faz-se sempre um background à personagem – é uma personagem do ‘Carga’, mas não tem ali um arco de uma história em que se percebe de onde é que ela vem, quem é que ela foi. Sabe-se no momento e quando ela entra já tem de ter a sua imagem. Dizer só que ela não teve uma vida fácil é quase dizer borboletas e malmequeres.

Ana Cristina no papel de Sveta, em ‘Carga’ [Fotografia: Luís Sustelo]
Como é que definiria ou descreveria a Sveta, considerando isso mesmo, que o espectador não vê, não conhece o caminho que a personagem percorreu até chegar ali?
Primeiro perguntei ao Bruno, o realizador, e à produtora se podia improvisar numa parte. Eles disseram que sim, o que é bom. Senti que nessa parte se calhar podia-se esticar um bocado, numa cena que é entre mim e a Sara Sampaio. Achei que ela aí podia ser mais manipuladora e malvada.

Fale-nos um pouco sobre o processo de construção da Sveta, de como se preparou para fazer esta personagem.
O bom, às vezes, de fazer filme, em relação a fazer televisão – e quando digo televisão, num formato que se faz em Portugal – é não andar a “encher chouriços”, trabalhar seis dias por semana, mais de doze horas por dia, a fazer 30 a 40 cenas por dia. Como é que uma pessoa prepara o trabalho? Ainda há pouco tempo li uma entrevista de um ator, que nem conheço pessoalmente, em que ele repetiu várias vezes que não era uma máquina. E sim, nós não somos máquinas, ninguém é máquina, ninguém é um génio. Para se fazer um bom trabalho tem se ter preparação. E não é andar a fazer 30 cenas por dia, às vezes em más condições, que uma pessoa dia após dia pode dar tudo, porque esse tudo vai diminuindo. O que é bom no cinema, é que uma pessoa tem essa preparação, tem um guião já completo. Claro que pode haver mudanças e nuances. Mas quando uma pessoa já leu todas as personagens, já leu a história toda, e quando os guiões são bons e têm algum background, não sejam só tretas e histórias que não interessa a ninguém, uma pessoa fica sempre a pensar, não é? É como uma boa reportagem, fica na cabeça. E depois tem-se sempre ali o guião [ao lado], volta-se sempre a ler, e tenta-se, depois cada um tem a sua técnica.

Alguns atores tiveram contacto com pessoas que passaram por experiências semelhantes, na realidade. Foi o seu caso também?
Não, porque não conheci ninguém que tivesse passado por essa miséria. Mas tem de se fazer sempre alguma pesquisa. Para já, é tentar imaginar o impossível, o horror. E depois levar o horror até ao extremo. Eu tenho um bocado a mania, se calhar, de exagerar sempre. Porque acho que é mais fácil exagerar, começar num extremo e depois retrair até chegar a uma coisa que seja credível. Nem sei se sempre consigo isso, mas é isso que eu tento nas minhas interpretações.

A temática deste filme, o tráfico de seres humanos, foi determinante para querer participar nele?
Eu gosto sempre de temas fortes. Já fiz umas coisas soft, mas quando há temas que sejam fortes ou controversos é sempre, e acho que para qualquer ator, muito melhor do que fazer uma coisa para todas as idades, digamos. Qualquer tema deste nível tem de ser debatido, reportado, filmado.

E reportado de uma maneira dura, como um “murro no estômago”, como refere o Bruno Gascon, o realizador deste filme.
Sim, porque isto é um submundo e sabe-se lá as coisas ainda piores que, se calhar, não estão retratadas neste filme. A realidade é sempre muito pior do que a ficção.

Ana Cristina de Oliveira começou a sua carreira internacional como modelo. Entre Paris e Nova Iorque escolheu Los Angeles para dar o salto da moda para a representação [Fotografia: Diana Quintela/Global Imagens]
A violência sexual sobre as mulheres também tem abalado a própria indústria do cinema, com os alegados casos de assédio e violação a várias atrizes pelo produtor Harvey Weinstein…
Pois, aí, se calhar, eu tenho uma forma não muito feminista de olhar para o caso.

Qual é a sua opinião?
Os assédios sempre existiram, não começaram no Harvey, não começou nos anos 90, nem sequer começou no cinema.

Sim, é transversal a várias áreas da sociedade. Talvez se fale mais no cinema por envolver figuras conhecidas.
É. Não vou citar nomes, mas muitas destas atrizes que estão nesta caravana do “hashtag Metoo” já era mais do que sabido, há não sei quantos anos, que faziam “certos favores” para o casting ser muito mais fácil.

Acha que há uma mistura entre vítimas e não vítimas?
É. Para mim é uma mistura, acho que há muita coisa que não é…Mulheres que foram violadas agressivamente vão estar no mesmo patamar que algumas atrizes que até fizeram uns “servicinhos”, para não fazerem dois, três castings e second call e call backs. Porque isso existe, sempre existiu desde que Hollywood existe.

Mas não acha que as mulheres agora, por haver esse movimento, também conseguem denunciar casos que antes tinham medo de expor?
Sim, e que denunciem. Mas há muitas que já deviam ter denunciado há muito tempo. Agora também há muitas que, nos anos 90, trabalharam, e não foi pouco, com os mesmos produtores, que foram violadas três ou quatro vezes pelos mesmos produtores, em vários hotéis diferentes, em várias cidades diferentes, e agora acordaram e foram abusadas? Também odeio esta coisa de as mulheres dizerem “juntas somos mais fortes”, porque entra-se numa sala cheia de mulheres e não se vê as mulheres a juntarem-se como os homens se juntam.

Falou nos anos 90. Foi nessa altura que o público português a começou a conhecer ainda como modelo, no célebre anúncio da Levi’s ou no videoclip de uma música do Bryan Adams.
Belos tempos! [Risos]

Além da participação em ‘Carga’, a atriz é protagonista da novela ‘Onde está Elisa?’, da TVI. [Fotografia:Diana Quintela/ Global Imagens]

O que é que a fez querer, entretanto, seguir a representação?
Eu sempre adorei cinema.

O que é que a fascinava, ou fascina, no cinema?
A minha mãe trabalhou no Nimas [conhecida sala de cinema Lisboeta] desde que abriu até mudar de dono. E realmente sempre vi muitos filmes e saí de Portugal com a moda, mas nunca ficava muito tempo nem em Nova Iorque, nem em Paris, dedicada só à moda. Numa altura em que eu até podia ter estendido a minha carreira de manequim por muito mais tempo, entre as duas capitais da moda, que eram Nova Iorque ou Paris, fui muito nova para Los Angeles. Consegui ainda manter trabalhos como modelo, manequim, e fazer anúncios, mas ao mesmo tempo comecei a tirar um curso de atores na Stella Adler [Studio Acting] e fiquei por Los Angeles.

Mas não será fácil singrar nesse meio, sobretudo com a concorrência em Los Angeles. Teve dificuldades ou desafios nesse percurso?
Tive, porque 20 anos depois não estou aqui a pôr hashtags do Metoo.

Alguma vez se viu confrontada com o tipo de situações que o #Metoo relata?
Ah, claro. Mas preferi não ir para os hotéis, o que é que eu ia fazer para os hotéis às dez e meia da noite? Declamar Shakespeare? Hmm…Não.

Quando começou a representar tinha algumas personagens ou tipos de papéis que idealizasse e quisesse vir a fazer?
Há sempre personagens que uma pessoa adoraria fazer. As minhas referências recaem em filmes…Estou a agora a lembrar-me de dois, o filme francês ‘La Femme Nikita’, e a personagem de Nikita, que eu achei que era fantástica, e o ‘Agnes de Deus’, em que entrava a Jane Fonda, com a personagem da Meg Tilly, a freira Agnes. Para mim são sempre personagens que tenham alguma loucura. E a loucura tem várias camadas.

Quais são as diferenças entre trabalhar a ficção em Portugal e nos Estados Unidos e como é que olha para o atual panorama do cinema português?
Em cinema fiz algumas coisas em Portugal, mas também não há muito cinema cá, infelizmente. É pena, porque não está muito fora do que se faz [noutros sítios]. Claro que aqui nós não temos estúdios, tem de se ir buscar subsídios, mas acho que temos ótimos atores, ótimos locations [cenários naturais para rodagens de filmes]. É pena não haver mais cinema português. A televisão podia – e aí acho que não há desculpas – trabalhar mais no formato de Los Angeles, que é mais organizado e mais produtivo para toda a gente, principalmente para os atores, porque é muito desgastante.

Design multimédia: Lília Gomes

Vítor Norte interpreta António, um camionista envolvido numa rede de tráfico

‘Carga’ estreia a 8 de novembro. O Delas.pt dedica um dossier especial ao filme que trata o tráfico humano