Ana Cristina Silva: “A maldade do antigo regime também existiu no feminino”

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Fotografia: Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens

A escritora Ana Cristina Silva está de regresso com um novo romance, que coloca frente a frente duas mulheres de lados opostos, durante o Estado Novo. A temível “Leninha”, agente e torturadora da PIDE, e Laura, a única mulher que resistiu às suas torturas. Baseando-se numa história verídica, com algumas partes ficcionadas, em ‘As Longas Noites de Caxias’ (Editorial Planeta), a autora, que é uma das 45 personalidades ouvidas pelo Delas.pt sobre o significado do 25 de Abril na perspetiva feminina, volta a colocar as mulheres no centro da trama política e social.

“Descrever o contexto social como se fosse quase uma personagem é uma maneira de agitar as consciências, o que, do meu ponto de vista, é uma das funções da literatura”, diz em entrevista ao Delas.pt, por email, a autora, distinguida, em 2017, com o prémio Fernando Namora, pelo livro ‘A Noite não É Eterna’. No novo romance, o objetivo não é diferente.

 

Capa do livro, editado em abril. [DR]
Por que quis escrever um livro sobre os presos políticos e as torturas da PIDE, a partir destas duas mulheres: Laura e a inspetora Leninha?
Penso que um romance sobre personagens da PIDE e, em particular sobre a tortura, era um livro que importava que fosse escrito. Houve uma espécie de branqueamento do horror passado nas prisões políticas portuguesas e apenas há alguns anos é que começou a dar-se mais valor aos testemunhos de antigos presos políticos. Há obviamente muitas referências na literatura à PIDE, mas que eu saiba não existe um romance centrado na PIDE e na tortura. Pareceu-me mais interessante escrever no feminino, quer do ponto de vista da presa política, quer do ponto de vista do algoz. Através delas é possível vislumbrar alguns aspetos da sociedade portuguesa na década de cinquenta, sessenta e setenta do século passado. E a maldade do antigo regime também existiu no feminino como se pode ver através da Leninha.

 

Que partes são reais e que partes são ficcionadas?
Há muitas partes reais. A tortura que sofreu Laura Branco corresponde totalmente ao que sofreu uma presa política em concreto. Mas essa presa nunca foi namorada do Ribeiro dos Santos nem esteve presente no julgamento da PIDE que me inspirou para compor a Leninha. A chefe de Brigada Maria Helena foi inspirada na PIDE Madalena Oliveira, há muitas coisas que são reais, nomeadamente as práticas de tortura, a carreira. Outras relativas à vida pessoal dela são ficção.

Como se preparou para fazer este livro? Falou com as pessoas em causa? Que fontes usou?
Para criar a Laura Branco falei com duas antigas presas políticas e inspirei-me no testemunho de uma em particular. Em relação à Leninha, li com muita atenção um artigo da [revista] Sábado sobre a Madalena Oliveira e fui falar com o jornalista que escreveu esse artigo, Pedro Jorge Castro. Para além disso, li vários livros da Irene Pimentel sobre o Estado Novo e sobre a PIDE.

Hannah Arendt falava na “banalidade do mal”. Neste livro há antecedentes familiares que explicam em parte a crueldade da inspetora Maria Helena. Mas não há nos torturadores, de certa forma, também uma banalização, até para desumanizarem o outro, para lá de eventuais influências da sua própria história pessoal?
Sim, concordo consigo. Há uma banalização do mal e uma desumanização do outro que vai além das circunstâncias de uma determinada história de infância. É aliás a negação da humanidade do outro que favorece a violência que atravessa a História da Humanidade, massacres, holocaustos, mortandade, tortura. Há muitas pessoas que crescem em contextos de violência e não se tornam sádicos. E é isso que é a Leninha, uma sádica que se sente poderosa a esmagar os outros, que adora o poder de gerar medo e que na infância fez aquilo que em psicologia se chama a identificação ao agressor. Mas os episódios da infância fazem parte da plausibilidade de um romance, não justificam nada.

Ninguém nasce mau, faz-se mau? E o mesmo vale para o bom?
A nossa história molda-nos, mas também podemos moldar na nossa história. Isso é válido para a maldade, mas também para a compaixão e a empatia.

O que a surpreendeu nestas duas mulheres?
Na Laura Branco, a capacidade de resistir. A sua tortura foi muito prolongada, verdadeiramente horrível (e volto a repetir, o que eu descrevo apesar de ter sido escrito numa linguagem que pretendo literária, aconteceu mesmo). Também procurei aprofundar as razões que lhe permitiram resistir que foram, no essencial, duas. Ela agarrou-se ao amor que a família e amigos lhe proporcionaram (depois da primeira visita levou consigo para a cela uma multidão de pessoas). Além disso, fantasiou que tinha algum poder sobre os pides: andava na cela e eles seguiam o seu percurso, recusou-se a fazer a estátua, etc.

E na Leninha?
Na Leninha o que é relevante é a maldade e a facilidade com esse tipo de personalidades floresce, por assim dizer, em regimes fascistas e em instituições como a PIDE. Descrever a maldade e as suas características através de uma personagem é também alertar os possíveis leitores sobre os perigos e horrores da ditadura fascista. Tendo em conta os tempos bizarros que estamos a viver onde os movimentos de extrema-direita parecem ganhar cada vez mais terreno nunca é demais relembrar.

Os seus livros costumam ter personagens femininas no centro de intrigas/episódios históricos e até reais, como Carolina Loff da Fonseca. O que lhe interessa nesta inter-relação, por que gosta de trabalhar estas duas dimensões?

Há livros que são assim e outros que são complemente ficção. O ‘ A Noite Não é Eterna’, que ganhou o prémio Fernando Namora, é completamente ficcionado. Mas é verdade que, em alguns livros, gosto de usar personagens que existiram e ficcioná-las dentro de um registo psicológico. Provavelmente é isso que me interessa, a dimensão mais psicológica e a vivência interior, os seus conflitos. Por exemplo, na Carolina Loff da Fonseca, no romance ‘Cartas Vermelhas’, foi o facto de uma comunista se ter apaixonado por um PIDE que me suscitou curiosidade. Mas, no entanto, o livro fugiu-me e acabou por se centrar no abandono da filha na União Soviética. Acho, aliás, que é a dimensão mais psicológica que me caracteriza enquanto escritora, a minha tendência para subordinar a narrativa aos conflitos internos.

A política também é um tema recorrente. Por que lhe interessa tanto esta dimensão social?

Os constrangimentos sociais, as desigualdades, os regimes ditatoriais moldam e determinam a vida das pessoas. Descrever o contexto social como se fosse quase uma personagem é uma maneira de agitar as consciências, o que, do meu ponto de vista, é uma das funções da literatura. Isso é evidente, por exemplo, em ‘A Noite Não é Eterna’, onde o carácter opressivo do regime de Ceausescu atravessa todo o romance. Mas também no romance ‘As Longas Noites de Caxias’ existe uma descrição do Portugal fascista na década de cinquenta, sessenta, onde a pobreza, a fome, a impossibilidade dos mais pobres estudarem, a guerra colonial, o carácter opressivo do regime, tudo isso moldava o destino das pessoas.

Sobre que mulheres ou histórias gostaria de escrever ou dedicar um dos seus próximos livros?

Isso ainda está no segredo dos deuses, mas é uma mulher…

 

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