Ana Guiomar é Ana em ‘Toda a Cidade Ardia’, a peça que está em cena no Teatro Aberto, em Lisboa, até 30 de julho, e cujo texto, da autoria de Marta Dias, foi feito a partir de poemas de Alice Vieira. Apesar das muitas semelhanças com a vida da escritora, esta não é uma peça biográfica nem a sua personagem é inspirada na autora, garante a atriz. Com ‘Toda a Cidade Ardia’, Ana Guiomar regressa ao palco onde tem desenvolvido a sua relação com o teatro. Não sabe explicar por que foi ficando, mas desde a ‘A Purga’, em 2011, que tem sido convidada para regressar e já vai na quinta peça naquela sala. “. O último dia é sempre uma tristeza e aquela nostalgia, não sabemos quando é que vamos voltar. De ‘O Pai’ para esta foi uma semana”, diz, numa animada entrevista ao Delas.pt. Reconhecida pelos seus papéis nas novelas, Ana Guiomar participa na novela “Amor Maior”, atualmente em exibição no horário nobre da SIC. No mesmo canal estreou-se na apresentação, com o concurso ‘Best Bakery – A Melhor Pastelaria de Portugal’. Como atriz falta-lhe um projeto aliciante no cinema e um desejo antigo no teatro: fazer a peça ‘Romeu e Julieta’. “É um clássico e eu gostava mesmo.”

‘Toda a Cidade Ardia’ (em cena até 30 de julho) é mais uma peça que protagoniza no Teatro Aberto. Fale-nos um pouco da sua personagem, que também dá pelo nome de Ana.
A minha personagem é a Ana, o protagonismo é dividido com a Sílvia Filipe, e esta peça é inspirada em poemas da Alice Vieira, em entrevistas e algumas coisas biográficas. [A personagem] não é a Alice Vieira, é a Ana, e conta-nos a história de vida desta mulher. Vai desde os seis, sete anos até aos 70. Apanha várias épocas, várias fases e conta-nos essa história.

Apesar de esta Ana não ser a Alice Vieira há, de facto, muitas semelhanças com a vida da escritora. Como foi construir a personagem com essas diferentes vertentes, com a parte de ficção, as notas biográficas?
Nós não construímos nada a estudar a vida da Alice Vieira ou a ler entrevistas dela. Não foi nada construindo assim. Nós construímos a peça, as personagens foram aparecendo e trabalhámos com base em algumas coisas nossas também. Acho que as personagens foram mesmo surgindo e foi um trabalho de grupo. Não andámos a ver entrevistas ou gestos da Alice Vieira, nada.

E como é fazer este personagem dividindo, como referiu, o protagonismo com outra atriz? Porque na peça e nas interpretações cruzam-se as diferentes fases e respetivas memórias.
Eu acho que uma das partes interessantes é essa. Primeiro, a maneira como nós, depois em espetáculo, acabamos por trocar a personagem, quando eu assumo o papel de narradora ou quando ela inicia a narrar e depois trocamos e começo eu. Acho que é muito engraçado não haver aquela divisão lógica ou normal, que é “a parte dos 20, 30 [anos] fazes tu, a dos 40, 50, e por aí fora, faz a Sílvia porque é mais velha”. A história acaba por se confundir e as próprias memórias também – para o espetador não, mas para ela. Em algumas cenas, eu represento também um bocadinho a esperança e aquele amor que nunca morre e aquelas memórias que nunca morrem dentro dela e acho que isso acaba por ser interessante e dá uma vitalidade ao espetáculo muito engraçada. Para mim acaba por ser um desafio porque eu tenho algumas partes em que ela já está mais velha e eu estou a narrar aquelas memórias e acaba por ser interessante para mim como atriz falar de algumas por que não passei. Acho que uma das dificuldades também foi essa, de encontrar densidade e verdade naquilo. Quer dizer, a época do 25 de Abril, como é óbvio não a vivi, a parte – bem já estou a contar a peça toda – mas a parte em que ela fica mais velha e acaba por ficar doente. Isso foi talvez até o mais difícil, encontrar essa verdade nas coisas.

Na peça ‘O Pai’, em que também foi co-protagonista , com o João Perry, e também no Teatro Aberto, também havia esse jogo com o tempo e a mistura das memórias.
Enquanto n’O Pai eu consigo ver a peça de cima e vejo as cenas que faltam para acabar, eu nesta não faço ideia. É grande, mas emocionalmente eu saía pior n’ O Pai porque era uma peça difícil, porque fala de uma realidade da qual nós estamos muito mais próximos, reconhecemos casos e temos avós e pais. É uma sensação de impotência, quase um caminhar na passadeira, nunca se sai do mesmo sítio, é esquisito. Esta peça é diferente. Apesar de emocionalmente ser difícil ou densa, mais nas partes narrativas, porque depois as interpretativas acabam por ser vividas. E eu tenho a parte interpretativa mais jovem, portanto tem mais energia, fisicamente também é um bocadinho esgotante.

A Alice Vieira partilhou a sua vida pessoal e o seu trabalho com o Mário Castrim, jornalista, primeiro colega, depois marido e pai dos seus filhos. A Ana também partilha a sua vida com um colega de profissão, Diogo Valsassina. Encontrou paralelismos entre partes da história de Alice Vieira e a sua?
Não, nada. Até não seria muito humilde da minha parte dizer que havia algum paralelismo na minha vida com a vida da Alice Vieira. Nós não nos inspirámos mesmo nada na vida da Alice Vieira. Não construímos a personagem nada por aí. Até porque a peça é inédita, foi escrita pela Marta Dias, encenadora, e quando ela nos convidou ainda não tinha a peça escrita. Sabia os atores que queria e começou a escrever para nós. Não assentámos nada na Alice Vieira, nem assentámos o trabalho do António Fonseca que há muita gente que pensa que é o Mário Castrim e depois diz, ‘ah, mas o Mário não era bem assim’. É completamente injusto porque não tem qualquer pretensão de todo de ser a vida deles. É só uma inspiração.

Nesse caso, da sua experiência o que é usou para construir a personagem?
Como é óbvio levamos sempre experiências nossas e, neste caso, muitas fragilidades nossas, porque há momentos muito frágeis e muito verdadeiros e eu para encontrar verdade tenho de ir buscar coisas minhas, mas não sei explicar bem que coisas. Também não é justo para mim estar a abrir gavetas e a magoar-me todos os dias porque aquilo não é uma terapia e não é a minha vida.

Esta é a sua quinta peça no Teatro Aberto. Como surgiu e define a relação com esta casa?
Não sei. Fiz uma audição em 2011 para ‘A Purga’ e depois fui ficando, sempre a achar que é a última… Mas eu acho sempre isso também nas novelas. O último dia é sempre uma tristeza e aquela nostalgia, não sabemos quando é que vamos voltar. De ‘O Pai’ para esta foi uma semana [risos].

Mas por que acha sempre que é a última?
Porque gosto de deixar assim…

Por ser uma profissão instável?
Não, não tem a ver com isso, tem a ver com expectativas que se criam, porque sou um bocadinho furiosa-dramática. Acho que nunca devemos… É uma coisa que eu digo na peça: “nada é adquirido para sempre”. Eu acho que tenho tido a sorte de trabalhar ali também porque fui ficando e porque acabaram por confiar no meu trabalho e para mim não há nada nem voto de confiança maior que é trabalharmos com alguém que nos chama uma segunda e uma terceira vez. Isso para mim… [Chamar] A primeira vez [para] trabalhar é bom, mas a segunda e a terceira é espetacular. E depois acho que essencialmente porque confiam no meu trabalho e as personagens têm servido para mim, têm assentado bem.

Em que é que cresceu, como atriz, nestes anos de palco?
Como atriz e a nível pessoal. Muito a nível pessoal, como atriz também porque dá-me muitos alicerces para trabalhar o texto de forma mais rápida e compreender algumas coisas em novela.

Tem protagonizado mulheres muito diferentes, mas muito marcantes, em palco, diversas das que normalmente estamos habituados a ver nas novelas. Procura essa complementaridade quando vai para um meio ou para outro, ou tem mais a ver com o papel, com cada personagem?
Eu vou mais pelo papel e pela personagem. Tem calhado assim, não… Nós em Portugal não podemos escolher muito… Quer dizer, podemos escolher algumas coisas mas não é uma coisa de ‘ai agora não, agora só faço a Virgínia Wolf’. A não ser que se tenha uma companhia e que se possa realmente pôr esses projetos de pé. Em televisão é a mesma coisa. Em televisão procuro dar-me bem com as pessoas, aprender e divertir-me. No teatro também, mas há mais tempo. Portanto, não é justo estar a comparar, não é justo dizer que escolho. É uma coisa que vai acontecendo. Posso dizer, “agora fiz três personagens cómicos em novela, não me apetece fazer mais nada cómico”. E aí espera-se e tem-se uma conversa com as pessoas e tenta-se ir por esse caminho e no teatro a mesma coisa. Se calhar simplesmente nunca me aconteceu, vá. Mesmo em teatro, mesmo que seja mais dramático ou mais denso, são tão diferentes! Mas gostava muito de fazer uma comédia em teatro. Acho que me ia divertir. [risos]

E cinema?
Cinema não fiz praticamente nada, só coisinhas muito pequeninas.

Mas gostava?
Gostava. Desde que fosse um papel… Lá está, no cinema é que eu acho que sou um bocadinho mais exigente. Acho que se há tempo, se há boa luz, se há bons planos, se pode escolher bons projetos. Visto que não vamos enriquecer. Porque acho que se o cinema é igual a televisão…

Que projeto é que a poderia convencer?
No cinema?

Sim.
Ai, não faço ideia.

Disse que gostava de fazer uma comédia em palco.
Há ótimas comédias no cinema, então não? Há coisas que eu adorava fazer, mas não sei.

E personagens, há alguma que gostasse de representar já há algum tempo mas que ainda não tenha surgido a oportunidade?
Em teatro?

Por exemplo.
Em teatro, eu acho que me faltam clássicos. Não fiz nenhum. E tenho sempre o sonho…Isto é ridículo, mas pronto eu vou dizer. Tenho sempre o sonho de fazer o ‘Romeu e Julieta’. [risos] É um clássico e eu gostava mesmo. Acho graça àquilo tudo…Adorava.

 

A atriz Ana Guiomar é Ana, na peça ‘Toda a Cidade Ardia’, em cena no Teatro Aberto (Lisboa) até 30 de julho. (Gerardo Santos / Global Imagens)

Recentemente vimo-la num formato diferente, como apresentadora do concurso ‘Best Bakery’. Como foi essa experiência? É outro tipo de representação ou a aí permite-se mais ser a Ana Guiomar?
Aí fui totalmente Ana Guiomar porque aí fui mesmo para me divertir à séria. Estava muito nervosa no início. Achei que não ia conseguir, que não tinha jeito nenhum para falar para as câmaras, pensei: ‘Vou morrer’. Mas depois acabei por me divertir e acho que também era um formato muito diferente do formato de apresentadora, não era formal. A pessoa não tinha de dizer, “Boa noite, Portugal”. E logo aí baixo um bocadinho a guarda e penso, “ah, então estou mais à vontade.” Senti-me quase uma guia, não era bem apresentadora. Eu andava a passear com uma equipa extraordinária com a qual me diverti imenso. Foi uma lufada de ar fresco a nível profissional, porque estava a precisar de ser desafiada – nas novelas também sou porque as personagens são sempre diferentes -, mas de qualquer coisa que te dá medo. E gostei mesmo muito, muito, muito. Identificava-me muito com o formato, porque uma coisa que eu gosto é de cozinhar. Comer então melhor ainda. Doces, hmm, melhor ainda. E adorei a equipa, os dois jurados. Adorei fazer, mesmo.

Por falar em cozinhar, há planos para um novo livro de receitas?
Para já não. Para já só para ir de férias [risos]. Só para aprender a cozinhar em férias as comidas daquele país! [risos].

 

Fotografias. Gerardo Santos /Global Imagens